É sabido que a história humana não é uma linha darwiniana evolutiva, mas sim cheia de percalços e tropeços, com avanços e retrocessos nas mais diferentes áreas. Neste texto, busca-se indagar: em que estágio estão os direitos sociais no Brasil?
É indubitável o avanço da Lei imperial nº 3.353, sancionada em 13 de maio de 1888, conhecida como Lei Áurea, que promoveu a abolição da escravidão no Brasil. Foi dado um direito fundamental, a liberdade, para parcela desfavorecida da população brasileira.
A despeito do seu viés humanitário, possuía interesse econômico por detrás: criar mercado consumidor, aquecer a economia das metrópoles com pessoas que tivessem recursos para comprar os bens e serviços produzidos. Afinal, a economia é uma máquina que não pode parar, quanto mais pessoas demandam produtos e serviços, mais rápida e pujante fica a economia daqueles que aproveitam desta aceleração.
Após aquele marco do período imperial e transcorrido décadas, mais de um século, de lutas e reinvindicações, logrou-se êxito em rol mínimo de direitos e garantias para classe trabalhadora, consolidada no Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, a denominada Consolidação das Leis do Trabalho. Cada direito e garantia esculpido visa, em suma, proteger o trabalhador de excessos porventura praticados pelos empregadores. Outro marco relevante para o avanço dos direitos sociais.
A Constituição Federal de 1988, a atual lei maior de regência do Brasil, não se furtou também de explicitar que é fundamento da República Federativa do brasil, dentre outros, a “a dignidade da pessoa humana”, “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” e os “os valores sociais do trabalho”[1].
Cabe anotar que, no art. 1º da Constituição Federal, os valores sociais do trabalho estão dispostos antes da “livre iniciativa”, o que denota que a observância dos direitos sociais deve ser o norte para a liberdade empresarial. Demais disso, os direitos sociais, esculpidos no art. 7º da CF, dentre os direitos e garantias fundamentais, possui status de cláusula pétrea, conforme preconiza no art. 60, § 4º, da lei maior[2].
Além da sua rigidez, esse rol da Constituição Federal, que encarta vários direitos relevantes para proteger o trabalhador, como jornada de trabalho máxima e férias, é meramente exemplificativo, pois podem existir outros direitos “que visem à melhoria de sua condição social”[3].
Em outros termos, depreende-se que ocorreu inegáveis avanços a favor da classe trabalhadora, a mão de obra criada com o fim da escravidão, para acelerar a economia.
Esse cenário modificou-se com a Lei 13.467, de 2017, a denominada reforma trabalhista, que recrudesceu e reduziu os direitos dos trabalhadores, além de outras medidas processuais para inibir reclamações trabalhistas.
Basta anotar que foi criada previsão, posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal – STF[4], que admitia que trabalhadoras grávidas e lactantes desempenhassem atividades insalubres mediante a apresentação de atestado médico. Ora, além de patente retirada de direitos das mulheres, um risco à saúde do rebento. Mandou bem o STF ao cassar este dispositivo leonino.
Há diversas outras ações em curso no STF questionando a constitucionalidade de dispositivos da reforma trabalhista. Como dito, não se pode olvidar que a Constituição Federal protege, ou deveria proteger, os direitos sociais, com status de cláusula pétrea, contra os arroubos empresariais.
É fato que a reforma trabalhista foi um duro golpe nos direitos sociais dos trabalhadores, em prol do empresariado, com mecanismos que reduzem direitos e inibem reclamações. Tanto é verdade que, um dos pontos, promoveu ataque frontal aos sindicatos, para reduzir as suas receitas e, por consequência, seu poder de insurgência. Sindicato fraco é sinônimo de trabalhador sem representação adequada para discutir e lutar pela manutenção dos direitos.
Outro ponto que vem demonstrando ser uma nova derrota para os direitos sociais é a precarização das relações de trabalho. Cada vez mais é comum a figura do “parceiro empresarial” ou “microempreendedor individual” que nada mais é do que trabalhador sem direitos sociais. É a própria aniquilação dos direitos sociais que foram moldados durante séculos de reivindicações trabalhistas.
Para melhor entender essa afirmação, cabe distinguir emprego e trabalho. Emprego é o funcionário com carteira assinada, com todos os seus direitos e garantias protegidos por lei. Neste caso, a relação deve preencher os requisitos do art. 3º da CLT, qual seja, serviço de natureza não eventual a empregador, sob dependência deste e mediante salário[5]. Já a relação de trabalho não se enquadra nos requisitos e, por conseguinte, não se subordina, a princípio, a CLT.
É neste último caso que entra os “parceiros” ou “microempreendedores”, pessoas que agem por sua conta e risco, sem qualquer direito que o proteja. Prevalece a “liberdade empresarial” para tratar com terceiros. Caso típico na atualidade é o motorista de aplicativo que é “parceiros” cadastrado como pessoas física ou microempreendedor em plataformas online que disponibilizam para os consumidores transporte.
Os riscos do negócio é dele (veículo, combustível, seguro, manutenção, etc.), sem qualquer direito ou garantia (salário, férias, FGTS, etc.) trabalhista, porém parcela do que auferem de renda, valor significativo que pode chegar a até trinta por cento ou mais, é destinada para o gestor do aplicativo, a título de publicidade do serviço e manutenção da plataforma online.
Em pesquisa empírica, sempre que utilizo o transporte por aplicativo, que é, em regra, muito mais barato do que o taxi convencional, procuro saber quantas horas de trabalho o motorista costuma ficar online, trabalhando no aplicativo. As respostas são sempre de estarrecer: em média, não raro, a jornada destes profissionais chega a dezesseis horas por dia, sem um dia sequer de descanso, de domingo a domingo.
Aí cabe perguntar: Qual tempo o motorista de aplicativo terá para o lazer, para a família, para a qualificação profissional? Qual tempo ele terá para buscar outros meios de subsistência, se assim desejar? Qual tempo, enfim, ele terá livre?
Lembro-me do início do transporte por aplicativos. A propaganda era: faça uma renda extra como motorista de aplicativo, reforce a sua renda no final do ano para pagar suas contas. Infelizmente, fruto de uma economia em franca queda e falta de oportunidades, a renda extra se tornou a principal, em razão dos alarmantes números, crescentes, de desempregados.
É a mais triste faceta do capitalismo selvagem, tido como neoliberal, que não respeita o rol mínimo de direitos trabalhistas, aproveitando-se da hipossuficiência do desempregado para conseguir lucro fácil, às custas do trabalho de outrem.
Enquanto para o consumidor é ótimo, afinal se tem um serviço de melhor qualidade a preço bem baixo, porém para o trabalhador é uma proximidade, com verniz de “liberdade empresarial”, novamente à escravidão, que nada mais é que a ausência de direitos que guarneçam o indivíduo de um mínimo de garantias. A prisão nova não é com grilhões, mas online, para tentar buscar o sustento da família, pois, não se olvide, ninguém trabalha dezesseis horas diárias por puro prazer, salvo se for masoquista.
Essa forma de trabalho acabou, em certa medida, chancelada pelo STF[6] que decidiu com base na livre iniciativa e na livre concorrência. Alguns ministros argumentaram que se tratava de movimento “disruptivo”, “destruição criativa” dos monopólios.
É certo que a discussão, a questão de mérito, era a regulação do serviço por leis estaduais e municipais, mas esqueceu-se de discutir também a “destruição criativa” dos direitos sociais.
Falou-se também que o transporte por aplicativo é uma forma, num momento de desemprego, de buscar atingir o “pleno emprego”, conforme prevê o art. 170, VIII, da Constituição Federal, mas esqueceu-se que motorista de aplicativo não é empregado e o trabalho, por si só, não pode ser equiparado a emprego. Pensar dessa forma pode levar também a defender a mendicância também como busca por pleno emprego. Falacioso argumento, portanto, que deve ser rechaçado[7].
Dentre os princípios gerais da atividade econômica, da livre iniciativa, esta a “existência digna, conforme os ditames da justiça social”. Por isso, avalizar o afastamento total dos direitos sociais de trabalhadores que estão desempregados e buscam seu sustento por meio de transporte por aplicativos não encontra guarida, à toda evidência, na Constituição Federal, mesmo sob o argumento da livre iniciativa.
O Tribunal Superior do Trabalho – TST já decidiu que o descumprimento reiterado de normas trabalhistas, com várias irregularidades cometidas pelo empregador, “transgride valores fundamentais à própria coletividade, dando ensejo à reparação por dano moral coletivo, independentemente da demonstração efetiva do dano”. No caso julgado, entendeu-se que as condutas ilícitas, por não observar os direitos sociais, macularam a proteção constitucional dada à dignidade da pessoa humana e ao valor social do trabalho, além de fomentar lógica perversa de depreciar as condições de trabalho para manter a competitividade no mercado[8].
Espera-se que essa matéria também chegue à baila para o STF discutir o tema específico e, quem sabe, buscar rever seus conceitos sobre o que seria pleno emprego. Em outras palavras, buscar compatibilizar direitos sociais com a livre iniciativa, valorizando um sem descurar do outro.
Pleno emprego se consegue com economia aquecida, empresas produzindo no máximo, gerando renda para todos, e não retirando direitos sociais dos trabalhadores, reduzindo renda dos menos favorecidos. Senão estar-se-á, apenas, retrocedendo a tempos obscuros que não devem regressar jamais.
À luz do exposto, vê-se que, no Brasil, ocorreu vários avanços sociais ao longo do tempo, mas parece que, no momento, vivenciam-se retrocessos nos direitos sociais, para não dizer aniquilação, que deve ser revisto o quanto antes, para que a economia volte a crescer para todos os segmentos sociais e não apenas para os mais abastados.
Notas
[1] Art. 1º da CF/88.
[2] Art. 60, § 4º, da CF/88: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV - os direitos e garantias individuais”.
[3] Art. 7º, caput, da CF/88.
[4] ADI 5938.
[5] Art. 3º da CLT: “Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”.
[6] RE 1.054.110 e ADPF 449.
[7] Art. 170 da CF: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: VIII - busca do pleno emprego”.
[8] TST-E-ED-ED-ARR-3224600-55.2006.5.11.0019, SBDI-I.