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Direito fundamental à sacralização de animais no candomblé à luz do direito brasileiro

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2. OS ASPECTOS JURÍDICOS

Superada a fase da análise do cotidiano do culto, consegue-se realizar uma abordagem mais nítida sobre o ponto de tangência entre o Direito Fundamental à liberdade religiosa e os aspectos de proteção aos animais resguardados pelo Direito Ambiental.

2.1. A liberdade religiosa como garantia individual

O hábito do Estado em ter uma religião oficial não é novo. Desde a conversão de Constantino e a queda do Império Romano, o cristianismo se tornou a religião lícita, imperial e oficial. THomas Hobbes, uma das inspirações para a Constituição Brasileira, pensava a religião como questão essencialmente nacional, a ser resolvida pelo monarca (MACHADO, 2013). Em oposto a isso, John Locke pensava a religião elemento de foro privado, que devia ser blindada de qualquer interferência estatal e deste sistema imiscível. Com a revolução francesa, radicaliza-se a ideia de separação do Estado e da religião (MACHADO, 2013).

Retomando a história da norma brasileira, afere-se um caminhar, desde o tempo do império, a um conceito estabelecido de liberdade religiosa, vide a Constituição de 1824 (BRASIL, 1824), que definia a liberdade de culto no Brasil, desde que não ferisse a moral ou os bons costumes.

Sem dúvida, na visão do Estado nesse período, se enquadravam as religiões de matriz africana nessa ressalva.

Mesmo no texto constitucional de 1891, já republicano, foi mantido o requisito da “moral e dos bons costumes” ao culto religioso, apesar de garantir a separação entre a igreja e o Estado (BRASIL, 1891).

A garantia da liberdade religiosa encontra acosto no Art. 5º, inciso VI da Constituição Federal de 1988, que afirma que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e às suas liturgias” (BRASIL, 1988).

A mera citação ao Texto Magno seria suficiente para fazer cair por terra qualquer questionamento sobre a legalidade de limitações infraconstitucionais ao exercício de culto. Porém, o Decreto-Lei nº 2848 de 7 de dezembro de 1940, o Código Penal (BRASIL, 1940), especifica ainda mais a matéria, e em seu art. 208 tipifica como crime “Escanecer de alguém publicamente por motivo de crença ou função religiosa, impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso, vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”, e fixa para o delito a pena de detenção de um mês a um ano, ou multa, podendo ser aumentada em um terço se houver o emprego de violência (BRASIL, 1940).

Para o Direito Brasileiro, os Tratados Internacionais que tratem de Direitos Humanos recebem tratamento privilegiado (SORIANO, 2002, p108-109). O Pacto de San Jose da Costa Rica, assim versa sobre liberdade religiosa:

Artigo 12. Liberdade de consciência e de religião

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.

2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças.

3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral pública ou os direitos ou liberdades das demais pessoas.

4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções (SORIANO, 2002, pp. 108-109).

Assim, o ordenamento jurídico absorve matérias de liberdade religiosa comumente, inclusive de refugiados, nos termos da Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 (SORIANO, 2002).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, talvez o mais conhecido tratado internacional, dá a plena dimensão da liberdade religiosa ali assegurada, quando garante o direito ao gozo das prerrogativas ali analisadas a qualquer pessoa, independente de religião (GALDINO, 2006).

A liberdade religiosa é, portanto, a possibilidade de adorar suas divindades conforme sua consciência. Observa-se a presença da liberdade religiosa como direito fundamental na Constituição dos países democráticos, além de serem tocadas por Tratados de Direito Internacional. É, portanto, simultaneamente uma liberdade pública e uma prerrogativa individual. Existe em três formas de expressão simultâneas: liberdade de crença, liberdade de culto e liberdade de organização religiosa (SORIANO, 2002).

2.2. A legalidade da sacralização

A Instrução Normativa nº 3, da Secretaria de Defesa Agropecuária, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que fez criar o Regulamento Técnico de Métodos de Insensibilização para Abate Humanitário de Animais de Açougue, afirma em seu item 11.3 que é facultado o sacrifício de animais de acordo com preceitos religiosos (BRASIL, 2013).

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A doutrina muitas vezes costuma arguir a ilegalidade da prática do sacrifício animal nas religiões de matriz africana embasada nos artigos 32 e 37 da lei 9605/98, que tipifica como crime a morte ou os maus tratos a animais silvestres (BRASIL, 1998). A lei, contudo, em momento algum menciona a prática de rituais religiosos, e certamente, a intenção do legislador foi proteger os animais de violência gratuita, e não da simples morte.

Muito embora a imensa maioria dos juristas defenda que a garantia da permissão do sacrifício de animais é parte fundante do direito à liberdade religiosa, a matéria não é plenamente pacífica na doutrina do direito.

Letícia Martel (2007), por exemplo, defende um limite ao exercício constitucional da liberdade religiosa, afirmando que o crescente esforço pelo direito dos animais proibiria o sacrifício nas religiões de matriz africana (MARTEL, 2007).

O jurista Fábio Oliveira (2008) comunga da mesma opinião, cometendo em sua fala erros de compreensão religiosa e sociais nítidos, onde alega que o direito à vida dos animais superaria a prática religiosa, e que pensar o contrário seria a representação de um pensamento especista. Além disso, o autor afirma que é impensável aceitar que um Deus possa aceitar a morte de um ser vivo(OLIVEIRA, 2008 apud AMORIM, 2014).Visto o que foi citado, além da plena miopia das questões sociais, o autor ainda apresenta um pensamento de concepção de divindade restrito às concepções de moral ocidental.

Com visão muito mais nítida do tema, Thiago Catana e Sergio Amaral recomendam que mesmo que se deva guardar o direito dos animais, não pode o Estado restringir o direito ao sacrifício nos cultos, sob o risco de ferir o princípio constitucional (CATANA; AMARAL, 2006).

Da mesma visão comunga Machado (2009), que defende que o alcance da questão religiosa transcende mera cultura, mas representa um encontro com o sagrado, fundamental para a religiosidade de matriz africana (MACHADO, 2009 apud AMORIM, 2012).

Andrea Rachel também acredita que não há conduta tipificada como ilegal, visto que não há nenhuma especificidade na Lei 9605/98, sendo, portanto um caso de exclusão da tipicidade da conduta (RACHEL, 2012).

Aldir Guedes Soriano atenta para um conflito entre a liberdade religiosa e o Direito Ambiental, no tocante à imolação de animais em rituais religiosos. Pondera com a visão biocêntrica, que acentuaria o conflito. Contudo, conclui que o sacrifício de animais não colidiria com o Direito Ambiental, pois não há nenhum argumento que aponte para um sofrimento incabível dos animais, e mesmo se houvesse conflito prevaleceria a preservação da cultura (SORIANO, 2002).

Observa-se, portanto na literatura jurídica uma forte tendência ao reconhecimento da legalidade da sacralização de animais nas religiões de matriz africana, com argumentos que ignoram os dados históricos, culturais e antropológicos apresentados anteriormente por parte daqueles que apresentam posição contrária.

2.3. Análise das posições do judiciário

A literatura jurídica atenta para dois julgados do Supremo Tribunal Federal que tratam da questão da liberdade religiosa.

O “caso de Siegfried Ellwanger” (Habeas Corpus nº 82.424-2-RS) apresenta um condenado por racismo por editar e distribuir livros com conteúdo de anti-semitismo. Seus advogados apresentaram ao STF “habeas corpus sob alegação de que os judeus não são uma raça, desejando assim que fosse retirado o critério da imprescritibilidade, suspendendo-se a execução da sentença e por fim, julgando o caso prescrito (OLIVEIRA, 2010). Em que pese a decisão do Tribunal ter pouca referência à liberdade religiosa, reconheceu que o crime de racismo pode ser descrito como a discriminação por cor, raça, etnia, religião ou procedência nacional. Afere-se no caso em tela, portanto, que tal qual acontece com o Candomblé, a intolerância religiosa tem raiz racial, sendo uma das manifestações mais evidentes do racismo (OLIVEIRA, 2010).

O outro caso é uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (nº 2.805-5) proposta pelo Governador do Rio Grande do Sul em face da Lei 11.830/2002, que propunha a flexibilização de critérios que firam preceitos religiosos durante processos seletivos para investidura de cargos, funções e empregos na administração pública, além da flexibilização das folgas dos servidores, desde que cumprissem a carga horária estabelecida, em virtude de religião. Alegava que a lei incorria em vício ao instituir regras ao regime dos servidores públicos estaduais, além da laicidade do estado, que segundo o requerente, não poderia ficar ao dispor de uma religião. A Assembleia Legislativa do estado defendeu que a norma tem acosto do Pacto de San José da Costa Rica, e que todas as ações administrativas estão subordinadas à liberdade religiosa. Segundo a Corte, a norma tangia matéria de competência exclusiva do Executivo, e a lei foi de iniciativa de membro do Poder Legislativo, julgando assim procedente a ADIN (OLIVEIRA, 2010).

Veio à cena um caso também no estado do Rio Grande do Sul (2005), que se referia à Lei Estadual 12.131/04, a norma decidia não enquadrar como crueldade os tipos definidos no Art. 2º do Código Estadual de Proteção aos Animais (Lei 11.915/03). Frente à mencionada inclusão do artigo, o Poder Executivo do Rio Grande do Sul decidiu editar decreto determinando que apenas animais para consumo alimentício poderiam ser mortos, além de impetrar Ação Direta de Inconstitucionalidade, sustentando que a lei é inconstitucional formal e materialmente. Defende que o estado não pode desrespeitar as normas formais estabelecidas pela União. Questiona ainda o princípio da isonomia, ao passo que a norma acolhe apenas a religiosidade de matriz africana. Segundo o entendimento firmado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, não há inconstitucionalidade formal, pois caso assim ocorresse, seria atingido todo o Código, não apenas o parágrafo em tela. Além disso, o relator demonstra em seu voto que inexiste qualquer norma no Direito brasileiro que só autorize a matar animais para fins alimentícios, citando inclusive a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos que autorizou, ainda que a norma local proíba expressamente o sacrifício, a realização de rituais da Santería, religião de matriz africana dos povos provenientes de Cuba. Insatisfeito com a decisão, o Ministério Público Federal do Rio Grande Do Sul interpôs o Recurso Extraodinário 494601, repetindo o argumento de que a lei feriria o principio da isonomia, ousando falar em discriminação em favor do povo de santo, além de arguir sobre uma suposta ilicitude do sacrifício da qual o estado não poderia legislar (RIO GRANDE DO SUL, 2005).

O processo, que ainda aguarda julgamento, é uma afronta ao Estado Democrático de Direito e mostra que a parte autora sequer dedicou-se a fazer uma pesquisa normativa e social sobre o tema abordado. Não há como se falar em discriminação se o processo histórico é ignorado, e seria impossível na fenda temporal que nos encontramos, após séculos de perseguição aos povos trazidos de África, defender a existência de qualquer desarmonia em favor do povo de Candomblé. Além disso, o argumento da ilegalidade da sacralização, como exposto ao longo deste trabalho, carece de lastro normativo, o que torna uma aberração o acolhimento do Recurso Extraordinário por parte do Supremo Tribunal Federal.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observa-se que não resta nenhuma dúvida sobre a real condição das Religiões de Matriz Africana na condição de culto religioso. Não são adequados conceitos que mirem diminuir o prestígio do culto ou mesmo excluir seus Direitos Fundamentais.

A garantia da liberdade religiosa dos povos de matriz africana, mais do que o cumprimento de um preceito jurídico, representa uma reparação que visa ressarcir uma cultura que foi por tantos séculos privada de seus direitos e garantias fundamentais. O dever do estado deve vir no sentido da produção de possibilidades que assegurem aos povos de axé a liberdade de manifestar sua cultura e principalmente aquilo que têm de mais sagrado: sua religiosidade.

Proibir a matança é atentar contra uma instituição há séculos experimentada por populações que têm na relação com a natureza, o contato com o Sagrado. Desta forma, observa-se que a relação dos povos de santo com a natureza é do mais profundo respeito, e que jamais seria admitida na religião qualquer forma de crueldade. O animal que é morto serve de alimento para aquela comunidade, e muitas vezes atende mesmo outras pessoas da comunidade onde o templo se localiza.

Mesmo os sacerdotes destoantes das correntes majoritárias do povo de santo não condenam o culto, apenas opta por não praticá-lo. Ao assim proceder, não obsta de forma alguma a liberdade de culto, apenas exerce a sua própria.

Do ponto de vista jurídico, não se apresenta nenhuma fonte do Direito que consiga demonstrar categoricamente ilegalidade do abate ritual dos animais, e mesmo aquelas que citam corretamente a lei, erram em aplicação, pois carecem de adequação ao caso concreto.

Observa-se, no Direito uma opinião majoritária na literatura que tende a aceitar a sacralização de animais nas religiões de matriz africana, com argumentos históricos, culturais e antropológicos apresentados que refutam aqueles que apresentam posição divergente.

O dever da Ciência do Direito neste caso é de promoção da igualdade, reparando as garantias que historicamente foram tiradas, e promovendo a plena igualdade racial, cultural e de religião.

Sobre os autores
Matheus Queiroz Maciel

Advogado, Assessor da Prefeitura Muncipal de Lauro de Freitas, Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Saúde, Ambiente e Trabalho pela UFBA

Euripedes Brito Cunha Junior

Professor de Direito da Informática e de Ética Profissional da Universidade Católica do Salvador, mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela UCSAL, advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACIEL, Matheus Queiroz; CUNHA JUNIOR, Euripedes Brito. Direito fundamental à sacralização de animais no candomblé à luz do direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5858, 16 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74927. Acesso em: 21 nov. 2024.

Mais informações

Orientador: Prof. Msc. Eurípedes Brito Cunha Júnior, professor de Direito da Informática e de Ética Profissional da Universidade Católica do Salvador, mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela UCSAL, advogado.

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