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Direito fundamental à sacralização de animais no candomblé à luz do direito brasileiro

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A garantia da liberdade religiosa dos povos de matriz africana, mais do que o cumprimento de um preceito jurídico, representa uma reparação que visa a ressarcir uma cultura que foi, por séculos, privada de seus direitos e garantias fundamentais.

Resumo: O presente trabalho propõe-se a discutir as questões relativas à garantia da liberdade religiosa, em específico à religiosidade de matriz africana em seus rituais de matança de animais. Por séculos com seu direito de culto reprimido, muitas vezes com a proibição da sua religião, o Povo de Axé acostumou-se a viver num ambiente de perseguições, sendo por muitas vezes forçado a abrir mão dos seus próprios cultos, ou sincretizá-lo com outras religiões dominantes no período. Um dos seus aspectos mais secretos e controversos é justamente o sacrifício de animais na religião. De um lado, os ambientalistas, além de seguidores de outras religiões e outros setores pouco ligados à religião de matriz africana tentam proibir essa prática, e de outro, os militantes, religiosos e demais sujeitos favoráveis à liberdade religiosa irrestrita tentam mantê-la e garanti-la como direito. Ao fim deste texto, objetiva-se justamente elucidar à luz do ordenamento jurídico brasileiro, qual a faculdade jurídica para exercício deste instituto religioso.

Palavras-chave: Religião. Sacrifício. Liberdade Religiosa. Candomblé. Ordenamento Jurídico.

Sumário: Introdução. 1. Religião. 1.1. Conceito de religião. 1.2. Candomblé. 1.3. Intolerância religiosa e a relação histórica do estado e da lei com o candomblé. 1.4 O sacrifício nas religiões. 2. Os aspectos jurídicos. 2.1. A liberdade religiosa como garantia individual. 2.2. A legalidade da sacralização. 2.3. Análise das posições do judiciário. Considerações finais. Referências.


INTRODUÇÃO

Candomblé é o nome genérico utilizado para designar todas as religiões de forte influência de cultura dos povos que foram trazidos ao Brasil durante o período da escravização. Durante muito tempo esses cultos foram proibidos, mantendo-se na ilegalidade. As populações trazidas de África criaram muitos meios de preservação de seu culto, como sincretizar suas divindades com santos católicos, o que hoje se compreende como um processo de imposição cultural.

Apesar da atual garantia dos direitos religiosos pela norma jurídica, muitos mecanismos, inclusive do Estado, servem como promotores de uma atmosfera de pleno domínio dos cultos judaico-cristãos. A formação de bancadas evangélicas, a presença de símbolos do cristianismo em órgãos públicos dentre outros aspectos, evidenciam uma preferência velada do mecanismo estatal por uma crença. Muitas vezes, através do seu braço armado, o preconceito que é usualmente mais bem escondido escancara-se e mostra sua face mais cruel. Mesmo as crianças são hostilizadas em seu ambiente escolar quando em cumprimento de preceitos religiosos, sendo muitas vezes impedidas de acessar o ambiente escolar.

Um dos mais importantes institutos das religiões de matriz africana é a sacralização de animais, meio dos religiosos agradarem suas divindades oferecendo animais que depois de abatidos, têm cada parte do seu corpo aproveitado pela comunidade. Apesar disso, o ritual muitas vezes serve de pretexto para que setores mais conservadores destilem seu ódio contra o Povo de Axé.

Desta forma, o Direito, em função de abusos ainda cometidos pela estrutura do Estado, precisa debruçar-se sobre as questões relativas à liberdade religiosa, e deve estar sempre ao dispor para defender e garantir a pluralidade de culto. Contudo, a análise histórica apresenta uma ciência muito pouco comprometida com as reais necessidades do Candomblé, e também estudos etnográficos que por si só ferem o princípio do segredo na religião.

Em outras ocasiões, o Candomblé é colocado no lugar do exótico, do primitivo, ou mesmo do errado, adotando uma ótica ocidental purista e preconceituosa. Da mesma maneira, seja por desconhecimento, falta de interesse ou mero intuito de destruição, juristas defendem posições absurdas do ponto de vista da liturgia da religião, atribuindo ao culto de matriz africana características e práticas que não existem, o que termina por limitar a liberdade religiosa. Fundamentalmente, é essencial que se analise, dentro dos limites do Awó3, o que realmente acontece nos rituais, para emitir opiniões sobre as posições que vem sendo adotadas pelos operadores do Direito. Para tanto, a compreensão real do Candomblé e a transposição dos limites que a cultura hegemônica impõe são indispensáveis na análise fática.

Consta do trabalho de uma análise de literatura, normas jurídicas, peças processuais e julgados do Poder Judiciário, com vistas a fundamentar a posição sobre o acolhimento pelo ordenamento jurídico pátrio dos rituais de sacralização de animais nas religiões de matriz africana. No primeiro recorte, o texto dedica-se a abordar as questões relativas à religiosidade, com vistas a munir de informações sobre a religião para que na etapa seguinte, se consiga analisar sob a ótica jurídica o instituto da sacralização despido de preconceitos e apenas à luz do conhecimento antropológico e jurídico.


1. RELIGIÃO

O estudo sobre a religiosidade é matéria prioritária nos espaços acadêmicos das ciências sociais, por vezes colocada como parte fundamental da estrutura social de um povo, por vezes como manifestação de um suposto primitivismo daquela sociedade. Antes de tratar da análise antropológica sobre a pluralidade religiosa, é fundamental determinar o conceito do termo. O jurista português Paulo Pulido Adragão define alguns requisitos básicos que poderiam juridicamente determinar o conceito de religião, que são:

1. Crença numa realidade transcendente, divina; 2. O apelo a autoridades e conteúdos veritativos de origem e valor extra-racional; 3. Uma concepção global do mundo e da vida que implica uma determinada doutrina moral; 4. As necessárias manifestações externas, pessoais e comunitárias, de homenagem à divindade, denominadas tradicionalmente culturais ou litúrgicas (ADRAGÃO, 2002).

Além disso, adverte o autor que a necessidade da definição de um conceito objetivo para o termo corre no leito da necessidade de evitar um conceito objetivista, que poderia trazer tanto um argumento restrito a auto definição, restringindo o conceito a uma concepção pessoal e pouco científica.

A religiosidade de matriz africana cumpre todos os requisitos por ele delineados para que seja conceituada como “religião”, discordando da decisão do Juiz da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, no processo tombado sob o número 0004747-33.2014.4.02.5101, que defendeu que o Candomblé e a Umbanda não fossem qualificados como religiões, sendo assim legítimo qualquer tipo de violação aos seus cultos, por não possuírem um livro sagrado (BRISOLLA, 2014).

O pensamento do magistrado – posteriormente retificado – era fruto da influência de uma ideia de que a humanidade vive em estágios evolutivos, onde alguns povos estão além de outros. Tal ideia ganhou força com a corrente da antropologia denominada “evolucionismo social”, que foi impulsionado por figuras importantes do pensamento científico do século XIX, como Lewis Henry Morgan, Edward Tylor e James Frazer. Comungam os três autores da visão da história e dividido em etapas que se seguem e se justificam (CARMO JÚNIOR, 2011).

Émile Durkheim, em seu estudo sobre “As formas elementares da vida religiosa” propõe que se deixe de lado toda a concepção da religião em geral, e que seja considerada apenas em sua realidade concreta, buscando destacar seus aspectos comuns, pois a religião só pode ser definida por aspectos observáveis em todo lugar que haja religião (DURKHEIM, 2006).

O despacho do magistrado, portanto, afrontava veementemente o pensamento do cientista social quando tenta limitar seu conceito de religião àquelas que assim para ele próprio parecem. Se vivo fosse, Durkheim (2006) certamente refutaria a limitação do conceito, principalmente quando, linhas depois, declara que “[...] não temos nenhum direito e nenhum meio lógico de reter uns para manter só os outros”.

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Completa a discussão sobre essa dificuldade preliminar (que perdura até os dias de hoje) o autor passa a discorrer sobre algumas características próprias que conceituam a religião. A primeira que trata é a do sobrenatural, em suas palavras “o mundo do mistério, do incognoscível, o incompreensível” (DURKHEIM, 2006). Segue o autor dizendo que, portanto, a religião poderia seria o ponto oposto à ciência, o que parece ser uma visão extremamente epidérmica do tema. Enquanto para os antigos gregos havia uma divergência doutrinária sobre a função do cérebro (PRIMO, 2010), as populações religiosas africanas já compreendiam o Ori1, como sede da mente.Em seguida o próprio Durkheim afirma que o mistério é um limite, pois para quem crê naquelas força “sobrenatural”, aquela é a explicação mais simples e lógica que pode existir, tal qual os conceitos já bem firmados pela ciência, e que mesmo a atribuição de uma consciência a uma força não visível a olhos menos treinados significaria uma irracionalidade.

Durkheim (2006) segue a obra atribuindo uma segunda característica própria do conceito de religião: a existência da divindade, um deus ou uma deusa ao qual o ser menor se vincula. Reconhece o autor, porém, que a restrição a caracterização do ser vinculado excluiria uma grande quantidade de manifestações nitidamente religiosas, o que permite neste estudo mencionar o culto aos Eguns2, parte da religião de matriz africana dedicada a cultuar os ancestrais que viveram em terra como seres humanos comuns. Como solução a esse problema, o sociólogo sugere substituir a palavra “deus” por “ser espiritual” que seriam “seres conscientes, dotados de poderes superiores ao que possui o comum dos homens”, o que alcançaria uma quantidade muito maior de expressões religiosas (DURKHEIM, 2006).

Define Durkheim (2006) que a religião se baseia “[...] num sistema mais ou menos complexo de mitos, de dogmas, de ritos, de cerimônias”.

Desta maneira, ao se observar as células formadoras da religião, percebe-se que existem aspectos que não são próprios de nenhuma religião específica, que podem ser restos de religiões desaparecidas ou mesmo mesclas de religiões devido a aspectos locais. Outro aspecto fundante da religião para Durkheim é a ideia da coletividade que compartilha daquelas crenças e ritos. Mais uma vez, a ideia do autor prova a insuficiência de acúmulo intelectual para decisão do juiz. Não há, pois,uma ideia mais firme de coletividade do que uma “família de santo”, composta por pais, mães, filhos e muitas vezes até algumas tias e tios que se agregam.

Finalizando essa discussão, Émile Durkheim (2006) define “religião” como um sistema solidário de crenças e práticas relativas a coisas sagradas, e portanto, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem na mesma comunidade moral aqueles que a aderem, chamada igreja. A ideia de religião não pode se separar da igreja, pois é coisa eminentemente coletiva.

Nunca é demais recordar aos nossos olhos viciados que a “igreja” mencionada pelo autor não é o espaço físico cristão de culto, mas justamente a ideia de coletividade já mencionada.

1.1. Candomblé

Do século XVI ao século XIX, negros e negras foram trazidos de África violentamente para o Brasil através do processo de escravização. Com essas pessoas, vieram seus costumes, danças, hábitos, e obviamente, sua religiosidade. Antes de qualquer coisa é necessário deixar nítido que diversos povos, com cultura e religião próprias, foram trazidos e fez-se, em consequência, uma religiosidade de matriz africana heterogênea, com rituais bem diferentes, embora muitas vezes observem-se algumas semelhanças. Assim, estabeleceram-se casas de culto que se denominam “Angola”, “Congo”, “Nagô”, “Banto”, “Ketu”, “Jeje”, “Ijexá”, dentre tantas outras denominações, sendo, porém, as nações Yorubás majoritárias (BASTIDE, 2009).

Essas nações por muitas vezes se fundiram em algumas casas, inclusive abrindo suas portas para outros aspectos religiosos, como o espiritismo, o catolicismo, e alguns aspectos do esoterismo, dando origem a religiões próprias, como a Umbanda, atualmente reconhecida também como religião de matriz africana (BASTIDE, 2009)

O termo “Candomblé” vem do Bantu, derivada da palavras “ka-ndón-id-é” ou “kán-domb-ed-é”, e deriva do verbo “kolumba” ou “kandomba”, que indica a ação de venerar, adorar, orar e evocar. Para estas populações, a divindade residia na própria natureza, e o meio de estabelecer o equilíbrio era justamente devolvendo à ela, por meio de oferendas, aquilo que ela poderia oferecer (MACHADO,2012).

Mais uma vez, é lícito destacar que o Candomblé não é apenas uma forma de culto, mas simum conjunto de “nações” que guardam entre si a semelhança de sua origem (BASTIDE, 2009).

A Nação Angola refere-se aos povos Bantu - palavra que é plural de Muntu ou Ntu e significa ser humano-, e são civilizações localizadas em regiões que vão do centro ao sul da África. Outras raízes religiosas, como o Bakongo, também tiveram acolhimento por esta nação. Por sua vez, a Nação Ketu, de culto aos Orixás, é a mais popularizada, e é aquela trazida pelas populações da Nigéria e parte do Benin, de língua e cultura Yorubá, também tratada tanto academicamente quanto nos costumes como “Nagô”. Finalizando o rol de Nações mais populares, encontra-se o Candomblé de Nação Jeje, de povos do Daomé (atual Benin), com língua ewê-fon (MACHADO, 2012).

Apesar de na ponta da língua do povo da Bahia vir a referência ao Orixá quando se fala do Candomblé, discorda da análise o Professor Luis Nicolau Parés, que pensa que a nação Jeje é o pilar central da formação do Candomblé da Bahia (PARÉS, 2006). A argumentação do insigne professor reside em duas linhas: o intenso tráfico de africanos e africanas da Costa da Mina (parte do Golfo de Guiné, litoral da África Ocidental) para a Bahia de Todos os Santos e as fontes documentais produzidas no entorno do envolvimento da polícia e da elite política com o Candomblé do século XIX (COUCEIRO, 2006). Em que pese a análise do professor, o que se observa no cotidiano da religiosidade, levando-se em consideraçãoo lugar de fala de quem vive o cotidiano do povo de santo, ouve-se muito falar em culturas “Jeje-Nagô”, e mesmo nos Terreiros de Nação Ketu, determinados Orixás dançam ao som de cantigas de língua Ewé-Fon. Para o autor, o “processo de nagoização” só se deu a partir dos anos 1860 (PARÉS apud COUCEIRO, 2006) Mira-se portanto, apesar da intenção nítida da presente pesquisa em diferenciar as culturas africanas, a simbiose por elas ocorrida durante o processo histórico.

1.2. Intolerância religiosa e a relação histórica do estado e da lei com o candomblé

Não raras vezes o Candomblé foi, e continua sendo desrespeitado em seus cultos, o que fez com que muitas casas fossem instaladas em locais mais afastados da cidade, longe dos olhos de grupos (inclusive do Estado), que se desagradavam da não-hegemonia judaico-cristã na religiosidade. Para tanto, o Candomblé se instalou em localidades periféricas, ou mesmo na zona rural, locais que o culto se colocava “escondido” da repressão. A não aceitação da religião alheia deu-se o nome de “intolerância religiosa”, termo que é insuficiente, pois não reflete o verdadeiro respeito, mas a aceitação de um mal que outrora era evitado (CORRÊA, 2008).

As origens da intolerância religiosa são nitidamente raciais, demonizando a religiosidade de uma população como meio de desmerecê-la. A mais nítida prova disso éa obrigação da adoção do sincretismo religioso por parte dos religiosos e das religiosas de matriz africana, que foram forçados a relacionar as próprias divindades a outras que não lhes eram próprias, como os santos católicos. Obrigados a cultuar o cristianismo, os religiosos de matriz africana colocavam imagens de santos católicos em cima do altar, e não deixavam a vista seu objeto de culto. Quando questionados se praticavam sua religião, negava, dizendo cultuar a divindade a eles imposta que guardava alguma semelhança com outra de sua fé (MACHADO, 2012).

Como espaços de resistência, os terreiros por muito tempo funcionaram como espaço de pouso ou de refúgio para populações escravizadas, ou mesmo para intelectuais em tempos de perseguição política, como foi o caso do escritor e etnógrafo Édison Carneiro, que com a perseguição política sofrida durante o Estado Novo, refugiou-se no Ilê Axé Opo Afonjá, na época dirigido por Mãe Aninha (COUCEIRO, 2006).

Em 27 de fevereiro de 1857, foi editada na cidade da Bahia a postura nº 59, que proibia batuques, danças, reuniões de escravos em qualquer lugar ou hora, sob pena de oito dias de prisão. Os livres e libertos, contudo, deveriam necessariamente pagar uma licença a polícia, para que pudessem realizar seus rituais, mesmo de Candomblé. (PARÉS, 2006)

Durante as batidas policiais nos terreiros, seja para buscar escravos fugidos, encontrar transgressores da norma ou mesmo para reprimir manifestações religiosas de “classes perigosas”, eram instauradas investigações e mesmo processos criminais (COUCEIRO, 2006).

Para contornar a repressão, o povo de santo em vários momentos recrutou figuras importantes da sociedade como Ogãs3, cargo sacerdotal do culto, como meio de evitar a prisão de seus adeptos e garantir o prosseguimento do culto (PARÉS, 2006). Um dos casos interessantes mencionado por Júlio Braga e citado por Henrique Barbosaem seu artigo, mostra a situação de um subdelegado, novo em suas funções, que tentou impedir a realização de uma cerimônia religiosa do Candomblé e lá encontrou um inspetor de quarteirão na condição sacerdotal. Notando o cerco policial, o Ogã6 se rebelou, e não permitiu a intervenção no culto (BARBOSA, 2010).

Mesmo com todos os artifícios e as oscilações da permissividade do Estado, o professor Robert Daibert (2015, p. 9) colheu relatos de torturas extremamente cruéis:

Na manhã do dia 12 de agosto de 1743, o Tribunal do Santo Oficio de Lisboa submeteu Luzia Pinta a uma sessão de tortura. Após ter seu vestido arrancado, ela foi deitada em um potro, espécie de estrado de madeira com saliências pontiagudas, sobre o qual seu corpo foi amarrado com correias de couro. Como era de costume, nesse tipo de tortura essas cordas eram puxadas com intensidade de modo a comprimir o torturado contra as pontas de seu leito. Luzia era natural de Luanda, Angola, onde viveu antes de ser levada para o Brasil pelo tráfico negreiro no início do século XVIII. Os inquisidores tentavam desvendar os significados dos serviços espirituais que ela prestava à população de Minas Gerais em um ritual identificado como calundu. O recurso à tortura era usado para descobrir possíveis evidências de um pacto demoníaco em suas práticas religiosas. Ao final, ela conseguiu escapar da morte, mas não foi considerada inocente. Na ausência de provas explícitas, seu pacto foi presumido. Sentenciada pela “abjuração de leve suspeita de ter abandonado a fé́ católica”, Luzia foi para sempre proibida de retornar a Sabará, e foi ainda condenada a quatro anos de degredo no Algarve (DAIBERT, 2015, p. 9).

No final do século XIX, eram comuns os relatos de intolerância religiosa praticadas inclusive dentro das igrejas. Era o período imediatamente posterior à abolição da escravidão no Brasil, e os setores dominantes não permitiriam perder o domínio sobre os ex-escravos. Um padre em Cachoeira, por exemplo, dedicava seus sermões dominicais ao destilar seu ódio contra o candomblé, usando termos como “antro de miséria e torpezas inomináveis” e “negras e funestas feitiçarias”, além de emitir um documento no qual relacionava pais e mães de santo, seus locais de culto e a eles atribuía adjetivos pejorativos (SANTOS, 2009).

O jornal “O Alabama”, periódico bissemanal, era conduzido por uma das figuras mais conservadoras de meados do século XIX. De cunho extremamente moralista, se dizia contra os ladrões e os maus costumes, dentre os quais enquadrou a prática do Candomblé. Em suas publicações, eram comuns termos como “deitar e tirar diabos” e “estúpidos sacrifícios a ídolos grosseiros” (LIMA, 2010).

As décadas de 1920 e 1930 tiveram peso fundamental na estruturação do Candomblé da Bahia. As casas mais tradicionais, ainda com não tanto tempo de fundadas, ao mesmo tempo em que tentavam estabelecer seu culto, criavam meio de driblar a repressão policial. Nesse período, Iyalorisás de forte influência como Mãe Aninha e Mãe Meninha do Gantois subiram ao posto, o que colaborou fortemente para o fortalecimento da religião (BARBOSA, 2010).

A imprensa da época, como a atual, não se intimidava de advogar para os setores mais conservadores da sociedade e, portanto, não foram poucas as vezes em que foram editadas matérias pejorativas sobre os rituais do Candomblé. Um forte exemplo do fato é um texto publicado no jornal A Tarde em 16 de agosto de 1921, intitulada “Pai–de–Santo (sic) foi bater no xadrez”. Na reportagem, o jornalista nitidamente apoia a intervenção policial no espaço sagrado (BARBOSA, 2010). Já nos primeiros anos do século XX, existem relatos da imprensa disposta a varrer as “heranças do africanismo”, na presunção de continuar a caminhada da civilização, que consistia num progresso material e cultural (SANTOS, 2009).

A esta altura, já é perceptível com nitidez plena que a intolerância religiosa data de muito tempo e nitidamente tem uma raiz no racismo. Apesar de todos esses relatos, Nina Rodrigues (2006) em sua obra, racista ele próprio como era de seu costume, discorda de que havia perseguição contra o povo de santo:

A persistência do fetichismo africano como expressão do sentimento dos negros bahianos e seus mestiços, é facto que a exterioridade do culto catholico apparentemente adoptado por elles, não conseguiram disfarçar nem as associações hybridas que com esse culto largamente estabeleceu o fetichismo, nem ainda nas práticas genuínas da feitiçaria africana, que ao lado do culto christão por ahi vegeta exuberante e válida. A existência na Bahia de crenças fetichistas tão profundas, de práticas tão constituídas como as da África, não occultas e disfarçadas, mas vivendo à plena luz do dia de uma vida que tem arrhas de legalidade, nas licenças policiaes e nas grandes festas annuas ou candomblés (RODRIGUES, 2006, p.76 ).

Apesar de parecer parte de uma realidade primitiva e distante, a intolerância religiosa encontra-se fortemente presente ainda nos dias de hoje no cotidiano do povo de santo. Em 2010, a Iyalorisá Bernadete de Sousa teve sua casa de Candomblé invadida por policiais militares da 70ª CIPM, que a agrediram, pisaram em seu pescoço, a jogaram em cima de um formigueiro, e a prenderam numa cela junto com homens, enquanto ela, em boa parte dos momentos, estava incorporada com Oxóssi, seu Orixá de cabeça, que ouvia que “só assim pro demônio sair desse corpo” (LYRIO; GAUTHIER, 2010).

1.3. O sacrifício nas religiões

O sacrifício é presença quase unânime nas religiões pelo mundo, embora atualmente convencione-se considera-lo bárbaro e imoral (CERQUEIRA, 2013).

O islamismo, por exemplo, tem no sacrifício parte da celebração em memória ao sacrifício de Abraão no monte Moriá. Os judeus, em sua páscoa, também sacrificam animais (MACHADO, 2012).

O cristianismo, embora não mais sacrifique animais nem humanos, teve em Jesus Cristo, sua principal figura religiosa, o sacrifício definitivo, em substituição ao que os hebreus costumavam realizar. Apesar disso, comem o pão e bebem o vinho, em memória deste momento. Se a Bíblia for encarada como documento histórico e, por consequência, científico, será encontrado no livrodo Gênesis a oferenda de Abraão a Javé daquilo que tinha de melhor, seu único filho Isaac, quando no momento exato um anjo enviado por deus o substitui por um cordeiro (MACHADO, 2012).

Religiões mais antigas, como a praticada pelos povos Incas e Astecas, realizavam comumente sacrifícios humanos, como parte de sua adoração ao Deus Sol (CERQUEIRA, 2013).

No candomblé, conforme esclarece o antropólogo francês Roger Bastide (2009) o sacrifício de animais é ritual reservado, justamente com o intuito de preservar a cerimônia dos olhos de pessoas que, sem entender o verdadeiro teor da cerimônia, possam julgá-los uma afronta a qualquer tipo de princípio. Ademais, o sacrifício no Candomblé é parte dos Awó4, segredos que fundamentam a religião e só podem ser revelados aos iniciados e às iniciadas, recordando o aspecto de que se absorve a religião através da vivência, e não por uma literatura sagrada (BASTIDE, 2009).

Justamente por isso, são em pequeno número os estudos etnográficos que tratam da questão da matança se comparada à quantidade de pesquisas sobre, por exemplo, os rituais públicos em que as pessoas “viram no santo”, transe onde há a incorporação do Orixá. Para desfazer por definitivo o mito da crueldade, Bastide (2009) define ainda que o sacrifício ocorre por pessoa especialmente designada na

hierarquia do terreiro, que traz em si a preparação necessária para realizar o rito do sacrifício do modo correto para agradar a divindade que ali está sendo homenageada. Além disso, conforme expõe Amorim (2014), o animal sacrificado não sofre, sob pena de não ser aceito pelo Orixá. Após a realização do ritual, as partes dos bichos não utilizadas, ao contrário do que pensa o senso comum, não são descartadas, e tudo que ele provê é aproveitado, desde o couro, usado para encourar os atabaques, até a carne, que serve para alimentar a comunidade.

Ao contrário das religiões de matriz judaico-cristãs, o Candomblé não segrega o material do espiritual, só sendo possível, inclusive, alcançar o segundo através do primeiro, e neste leito encontra estrutura o instituto da sacralização de animais (MACHADO, 2012).

Em um desses poucos relatos, Miriam Rabelo (2015, p. 239) relata o que observou durante uma celebração dedicada à Oxum:

Ao cair da tarde, filhos e filhas da casa já estavam reunidos para o corte dos bichos (a matança) para Oxum5. Os assentamentos desmontados foram descobertos. Iaôs6 sem obrigação de três anos e abiãs7 sentaram-se em esteiras no barracão, distantes da cena principal comandada pela mãe de santo, pelo axogum (ogã responsável pelo sacrifício) e por algumas equedes8 mais velhas. Entre esses dois grupos estavam os demais rodantes, equedes e ogãs. O sangue dos bichos regou (alimentou) o otá9 e misturou-se à água do quartinhão10. Veículo de axé11 atraiu os orixás dos abiãs e iaôs – entre eles duas Oxuns que deram voltas dançando no barracão. Depois do sacrifício, os bichos foram tratados como de costume, os ogãs cuidaram da cabra e as equedes das aves. As partes internas dos bichos – também chamadas de axés – foram retiradas e preparadas na cozinha, sendo separadas cabeça, patas e extremidades. Algumas equedes agachadas puseram-se, então, a arrumar esse material em tigelas de barro. Ao final, o conteúdo depositado na tigela foi coberto por uma espessa camada de penas.

Um dos religiosos do Candomblé que não costumava apreciar o ritual do sacrifício foi o Pai Agenor Miranda, conhecido por seu dom no jogo de búzios. No documentário Um vento sagrado (2001), declarou:

Todo mundo sabe que eu não sou um admirador de matança. Eu sou das folhas, eu tiro as folhas, mas não mato a árvore. E (inaudível) os animais quando se mata tira-se uma vida.[...] Eu vou condenar quem mata? Não! Eu não mato. A Carteira de Identidade é intransferível.

Permite-se notar que o sacerdote não condena a prática do ato litúrgico, apenas opta por não praticá-lo embora o reconheça como parte fundante da religião.

Sobre os autores
Matheus Queiroz Maciel

Advogado, Assessor da Prefeitura Muncipal de Lauro de Freitas, Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Saúde, Ambiente e Trabalho pela UFBA

Euripedes Brito Cunha Junior

Professor de Direito da Informática e de Ética Profissional da Universidade Católica do Salvador, mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela UCSAL, advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACIEL, Matheus Queiroz; CUNHA JUNIOR, Euripedes Brito. Direito fundamental à sacralização de animais no candomblé à luz do direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5858, 16 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74927. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Orientador: Prof. Msc. Eurípedes Brito Cunha Júnior, professor de Direito da Informática e de Ética Profissional da Universidade Católica do Salvador, mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela UCSAL, advogado.

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