Palavras Chave: Paternidade. Estupro. Alimentos. Aborto. Nascituro.
Congresso Nacional ao aprovar a Lei 12.015/2009, modificara o Título I da parte especial do Código Penal brasileiro, onde se trata dos crimes contra a pessoa.
Dentre essas mudanças está a nova redação do crime de estupro, que entre outras coisas, trouxe a possibilidade de o homem ser sujeito passivo do crime de estupro, acarretando em correlações importantes em outros tipos penais, como no caso do crime de aborto, criando lacunas legislativas e doutrinarias que ainda não foram pacificadas.
Vários foram os paradigmas modificados pelas alterações trazidas pelo Congresso Nacional; uma destas modificações é a extinção da anterior classificação do estupro como crime contra os costumes, agora classificado como crime contra dignidade sexual, a unificação dos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, e a nova tipificação inovadora de que qualquer indivíduo, independentemente do sexo biológico, pode ser sujeito ativo, ou passivo, do crime de estupro.
A história do Direito Penal dos crimes de natureza sexual se confunde com a história da humanidade, apresentando um caráter evolutivo que gradativamente acomoda-se às transformações dos costumes e tradições das sociedades[1].
As constantes modificações no modo de vida dos seres humanos influenciam em sua vida sexual, em como essa será regrada e em como o Estado deverá e poderá interferir.
Toda reforma legislativa no Brasil é demorada e a referente aos crimes sexuais trazida pela lei 12.015/2009 não foi diferente.
O Brasil ratificou o tratado de Roma em 2002 onde se comprometia a modernizar os tipos dos crimes sexuais, no entanto a reforma demorou sete anos, que cria um tipo penal único para a violência sexual, independente de gênero. Essa nova redação estabeleceu um novo paradigma na condução dos delitos sexuais, conferindo à lei “modernidade e adequação à realidade atual”[2]. No entanto, a reforma só aconteceu depois de instaurada uma Comissão Parlamentar Mista de investigação de pedofilia.
Para melhor esclarecer as mudanças trazidas pela lei, André Estefam traz o seguinte quadro esquemático:
É possível perceber que das mudanças que a lei 12.015/2019 trouxe para o delito de estupro 3 (três) devem ser destacadas:
1. A mudança de Bem Jurídico tutelado;
2. A unificação do crime de estupro e atentado violento ao pudor;
3. O estupro ter se tornado crime comum;
Vislumbra-se que mudam os costumes, mudam também os parâmetros de bens jurídicos a serem tutelados e isto faz com que novas reformas legislativas sejam necessárias para que os tipos penais estejam sempre adequados aos anseios da sociedade, como já citado anteriormente.
No Brasil, não muito diferente do que ocorreu em todas as legislações do mundo, o bem jurídico a ser tutelado nos crimes sexuais variava de acordo com os costumes, carências e tendências da sociedade[3].
Assim basicamente pode ser resumida à evolução pelo seguinte quadro:
Legislação |
Bem jurídico Tutelado |
Ordenações Filipinas |
Bons Costumes da Corte |
Código Criminal do Império |
Segurança da Honra |
Código Penal Republicano |
Segurança da honra, honestidade das famílias e ultraje público ao pudor |
Código Penal (redação original) |
Bons Costumes |
Código Penal (alterado pela lei 12.015/09) |
Liberdade Sexual |
Alguns movimentos sociais ganharam força, principalmente nos anos 90, após a Constituição Federal de 1988, com um viés extremamente liberalista. Amparado por estes movimentos, mais uma vez, ao menos no que tange aos crimes sexuais, e especificadamente ao bem jurídico tutelado nestes delitos, o Código Penal brasileiro clama por reforma: Os hábitos da sociedade nos anos 2000 e seus anseios nada têm a ver com a sociedade patriarcal de 1940, bem como os direitos assegurados pela Lei Maior de 1988 que preza por outros comportamentos da coletividade.
A Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009, alterou o Título VI do Código Penal de Dos crimes Contra os Costumes, para Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual, expressão umbilicalmente ligada à liberdade e ao desenvolvimento sexual da pessoa.[4]
Não se deve esquecer que a dignidade da pessoa humana é (supra) princípio constitucional, devendo todo o ordenamento infraconstitucional ser esquematizado e pautado por este. Assim, não poderia ser diferente com o campo do Direito Penal sexual, que com a reforma implementada em 2009, consagrou mais uma vez tal (supra) princípio.[5]
Além da dignidade da pessoa humana, o legislador preocupou-se com a liberdade individual. A liberdade é inerente a todos os cidadãos de dispor de seus corpos, de se relacionarem livremente.[6]
Deste modo à lei 12.015/2009, substituiu os costumes pela dignidade sexual, no Título VI, o que representa uma mudança no bem jurídico tutelado, adequando-o aos tempos atuais. Assim a proteção foi estendida, sobre a dignidade sexual do ser humano, independentemente de gênero e/ou opção sexual. Portanto a norma penal protegerá desde o mais singelo beijo lascivo, às mais sórdidas realizações de fantasias e vontades secretas, quando praticadas sem ofensa a dignidade humana.
A partir de 2009, com o advento da lei 12.015 não resta dúvida que pode o homem ser o sujeito passivo do delito de estupro: Há que ser lembrado que o estupro com sujeito passivo homem pode ser configurado tanto com sujeito ativo mulher, quanto outro homem. Antes de 2009 quando ambos eram homem o crime seria o atentado violento ao pudor, do art. 214, inexistindo estupro praticado por mulher.
Questiona-se a questão de diferença de força física entre um homem e uma mulher, e como poderia uma mulher, na maioria das vezes é mais fraca que o homem obriga-lo a praticar atos sexuais. Se a mulher, por sua natureza estrutural, não pode efetuar uma penetração, não se lhe exclui a possibilidade de constranger o marido à pratica de outros atos libidinosos, v.g, a felação e a heteromasturbação, atos que inserem no amplo campo da satisfação da lascívia (antes considerados como atentado violento ao pudor).[7]
Não restando dúvidas de que o homem pode sim ser sujeito passivo do delito de estupro apesar de difícil configuração, cabe análise de como outros dispositivos legais que versam sobre consequências do estupro poderão ser aplicados.
O art. 234-A, III do Código Penal trata das causas de aumento de pena nos crimes sexuais:
CP, Art. 234-A. Nos crimes previstos neste Título a pena é aumentada:
...
III - de metade, se do crime resultar gravidez;
Assim sendo, a pena da mulher que for condenada por um crime de estupro deverá ou não ser aumentada se ela própria engravidar no momento de aludido estupro? A doutrina se divide, pois parte defende a aplicação do aumento de pena e parte afirma não ser possível a aplicação deste dispositivo legal.
Parece que o legislador não fez qualquer distinção entre o estupro com o autor masculino e outro com uma estupradora, tendo como vítima um homem, se de tais delitos criminais resultarem uma gravidez, desejada ou não pelo criminoso ou pela criminosa.
O Código Penal Brasileiro, ao longo sua existência, fora modificado por diversas leis que algumas vezes causam confusão no interprete; muitas vezes o Congresso Nacional ao instituir um tipo penal, sem ponderar detidamente nos reflexos que essa alteração possa ter na legislação, no entanto, a alteração dos artigos 213 (estupro) e do 234-A, III (aumento de pena resultante de gravides originária de estupro) foram implementados pela mesma Lei[8].
Outra consequência que questiona-se é se é possível e legal a realização do aborto resultante do crime de estupro onde o homem foi a vítima, o qual é permitido nestes casos pelo art. 128, II do Código Penal:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
...
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
No caso do estupro praticado por mulher em desfavor de um homem com consequente gravidez, duas indagações surgem: a decisão de fazer o aborto pode ser do homem que foi a vítima do delito, ou da mulher que engravidara no momento do estupro, mas ela fora a autora do crime?
Para melhor estruturação trataremos de cada caso em separado, mas tal situação já estava prevista no Código Penal desde 1940, ou seja, não fora implementada pela lei 12.015 de 2009.
Posto isso se faz necessário analisar qual era a vontade do legislador naquele momento quando da confecção de tal mandamento, ressaltando que no texto original do art. 213 do Código Penal somente a mulher figurava como sujeito passivo do crime de estupro.
Inevitável lembrar que a ideia que ampara o aborto sentimental é a de impedir que a mulher gere em seu ventre um fruto de uma concepção claramente indesejada.
O legislador brasileiro ao permitir o aborto à mulher vítima de estupro objetivava evitar que, caso o nascimento ocorresse, fosse ela obrigada a conviver com um filho que lhe trouxesse lembranças contínuas daquela violação sexual que sofrera.
Verifica-se a possibilidade de ser feito o procedimento do aborto, na mulher estupradora, por pretensão do homem vítima deste delito, haja vista que o nascimento da criança trará imensas consequências legais e emocionais para a vítima do estupro, mesmo sendo a vítima um homem.
Ao colocar o homem na qualidade de vítima de crime de estupro e a mulher na qualidade de estupradora, apesar de querer o legislador equiparar a mulher ao homem, tratando-os com a desejável igualdade prevista na Constituição Federal de 1988, é estranho o homem discutir um aborto, haja vista que o tipo penal reza ser preciso a autorização da gestante[9].
Outra situação questionável é a da mulher, autora do crime de estupro, que nela resultar gravidez, desejar realizar o aborto; a gestante criminosa, (como está descrito no tipo do art. 128, II do Código Penal), estaria autorizada a realizar tal procedimento abortivo?
Considerando-se o fator histórico, à época da elaboração de mencionada norma legal, não havia falar-se na mulher como sujeito ativo do crime de estupro, ela era sempre a vítima, a novel possibilidade somente adveio no Brasil com a Lei 12.015/2009.
Sob o prisma ético não seria jamais compreensível que se admitisse ceder à tutela da vida humana intrauterina em prol do simples desejo de uma criminosa (estupradora) que violou a dignidade e a liberdade sexual de outrem (homem), se fizer um aborto violará também a vida humana intrauterina, apenas para satisfazer sua vontade de não zelar pela integridade física da futura criança[10], pois, “in casu”, a autora do delito de estupro se valeria da própria torpeza, para cometer outro delito contra a vida daquele que se encontra em fase de gestação.
O artigo 2° do Código Civil estabelece que a obtenção de personalidade jurídica do nascituro surge com nascimento com vida, todavia o ordenamento jurídico brasileiro adotou, e outorga ao nascituro uma categoria específica de direitos assegurando-lhe dentre outros direitos[11], à assistência pré-natal[12], alimentos provisionais (Lei 5.478/1968), desenvolvimento saudável e digno no útero materno e o consequente nascimento com vida, o mais sublime e formidável dos direitos.
Entendemos que o permissivo do art. 128, II do Código Penal, chamado de aborto sentimental, deva ser implementado exclusivamente nos casos onde a mulher for a vítima do crime de estupro; de outra banda entendemos que não seja adequada, sob qualquer prisma, a prática do aborto sentimental, quando a própria gestante for autora do delito de estupro, pois seria tal entendimento uma prévia autorização para que ela, que praticara um crime de estupro, agora tenha a possibilidade de praticar sob proteção legal, outro crime, um crime contra a vida, ou seja, o aborto.
CONCLUSÃO
Em 2009, a Lei 12.015, trouxe significativa reforma para o Direito Penal Sexual, destacando-se três delas: o bem jurídico tutelado, a unificação do crime de estupro e do atentado violento ao pudor, e o estupro ter modificado em crime que o homem e/ou a mulher podem ser autores e/ou vítimas.
Com relação ao bem jurídico dos crimes sexuais é notório que a legislação pátria protegia até então a moral e os bons costumes, passando a proteger a partir da modificação legislativa de 2009, a dignidade sexual do ser humano.
Todo ser humano tem direito à dignidade, sendo este, um princípio constitucional previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988, baliza das demais legislações infraconstitucionais.
Por dignidade sexual se entende por ser a liberdade de livre escolha de como, com que, quando e, porque se relacionar sexualmente, devendo somente o Estado interferir quando esta liberdade de escolha for de alguma forma reduzida ou cessada por outrem.
O crime de estupro é a forma mais perversa de violação da dignidade sexual do ser humano, estando previsto no art. 213 do Código Penal, lembrando que este foi um dos tipos legais modificados pela Lei 12.015/2009.
Não resta dúvida quanto ao sujeito passivo do crime do crime de estupro, pode este ser homem, diferentemente do que ocorria na redação anterior do art. 213 do CP, no entanto, outras dúvidas com relação à aplicabilidade de outros dispositivos legais tais como, o art. 234-A, III do Código Penal e o art. 128, II, do mesmo diploma legal surgiram.
O art. 234-A, III, do Código Penal, versa sobre o aumento de pena se do estupro resultar gravidez. Questiona-se se tal dispositivo teria aplicação somente do caso de ser a mulher vítima do estupro ou se também aplicar-se-ia tal aumento no caso do homem vítima do crime em tela. A doutrina ainda se divide, no entanto, parecer ser mais correto prezar-se pela aplicação do aumento da pena em ambos os casos.
Com efeito, o art. 128, II, do mesmo Códex, traz o permissivo para o aborto sentimental ou terapêutico, aquele que a gravidez foi resultado de um estupro, com o consentimento da gestante.
Na situação acima exposta, qual seja, o homem como sujeito passivo do crime de estupro, duas situações podem ocorrer quando do estupro resultar gravidez, o homem deseja o aborto, ou a mulher (sujeito ativo) o deseja. Para as duas situações a doutrina é pacífica em entender que não se faz possível a realização do procedimento de aborto. No primeiro caso, pois, o homem não pode dispor do corpo da mulher e no segundo caso, pois, o legislador quando criou tal permissivo, "o espírito da lei" deixa evidentemente claro que pensou-se exclusivamente na mulher que foi vítima do crime de estupro.
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[1] A história da sexualidade humana é a própria história do mundo. Assim, desde que o mundo é mundo, seres humanos e animais são dotados de corpos sexuados e as práticas sexuais obedecem as regras, exigências naturais e cerimonias humanas, (GRECCO, 2011, p.8).
[2] É a legislação penal adequando-se ao já antigo art. 5º caput da Constituição Federal de 1988, que determina sermos todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, assim como ao art. VII da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que sustenta o princípio da isonomia. (FAYET, 2011, p. 39)
[3] Vimos na evolução histórica da legislação concernente ao estupro a modificação do objeto protegido pelas normas, atendendo aos anseios de seu tempo. Assim, as ordenações Filipinas protegiam, sem referi-los, aos “bons costumes da corte.” Já o Código Criminal do Império, de 1830, nominou a primeira seção do capítulo que guardava a “segurança da honra” de estupro, e sob essa rubrica jaziam as figuras do defloramento, do estupro propriamente dito, do atentado violento ao pudor e da sedução. Com a República, a proteção passou a ser “segurança da honra, honestidade das famílias e ultraje público ao pudor”, estabelecendo o estupro e o atentado ao pudor no capítulo da “violência carnal”, em 1890; e mais tarde, no Código de 1940, o bem jurídico tutelado identificou-se aos “bons costumes”, vindo o estupro e o atentado ao pudor no capítulo protetor da “liberdade sexual”, “no particular aspecto da violabilidade carnal da pessoa, contra atos violentos”. (FAYET, 2011, p. 45)
[4] A liberdade sexual tem sido o bem jurídico aventado pela doutrina moderna como sendo o único digno de tutela nos crimes sexuais, por não apresentar qualquer conotação moral. Nesse sentido, tem se manifestado a doutrina Portuguesa e Espanhola p. ex. onde ocorreram recentes alterações legislativas na tutela sexual. No Brasil, referida concepção tem ganhado adeptos. (GRECCO, 2011, p. 57)
[5] A dignidade da pessoa humana deveria se caracterizar pela necessidade de autodeterminação de uma pessoa poder escolher sua disponibilidade sexual. (SILVEIRA, 2008, p. 167)
[6]A liberdade sexual é o único bem digno de tutela nos crimes sexuais; o direito penal sexual tutela bens individuais, vale dizer, a liberdade sexual individual, e não bens coletivos como a ordem social da vida sexual ou a moral sexual pública, conforma limitação constitucional; sendo liberdade sexual o bem jurídico protegido e sabendo-se ser a liberdade pessoal tutelada pelo Código Penal, deve a liberdade sexual, com suas especificidades, ser tratada no seio da dos crimes contra a liberdade geral. (GRECCO, 2011, p. 63)
[7] PIERANGELI e SOUZA, p. 11.
[8] Lei nº 12.015, de 2009.
[9] Partindo dessa premissa, se a vítima do estupro é o homem, pode não ser de sua vontade que a mulher criminosa dê à luz um filho seu. Apesar de não ser ele a pessoa a suportar os reflexos físicos da gravidez, a paternidade implica uma série de obrigações de ordem jurídica, ética, moral e até mesmo financeira, para não falar de outras. Nessa ótica, poder-se-ia cogitar de uma mulher que dolosamente realiza a conduta criminosa, intencionando engravidar para obter um vínculo com o homem e, ainda, uma pensão futura para o filho comum ou até mesmo para chantagear alguém de ótimas condições financeiras. Inobstante tais situações, vemos que o problema fundamental é de ordem psicológico-sentimental. Assim, por mais que possa parecer justo o homem vítima de estupro pleitear o aborto sentimental, por mais que se queira equiparar sua condição à da mulher vítima, tal hipótese não encontra qualquer amparo no ordenamento legal. As consequências da paternidade indesejada e resultante de crime poderão ser minimizadas na esfera cível, no que diz respeito às obrigações daí decorrentes. (ESTEFAM, 2011, S.P.).
[10] CABETTE, 2009, S.P.
[11] Ex.: possibilidade de receber doação (artigo 542 do CC) e de ser curatelado (artigo 1.779 do CC).
[12] Artigo 8° do Estatuto da Criança e do Adolescente Lei 8.069, de 13 de julho de 1990: É assegurado a todas as mulheres o acesso aos programas e às políticas de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo e, às gestantes, nutrição adequada, atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério e atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal integral no âmbito do Sistema Único de Saúde.