INTRODUÇÃO
Neste estudo, visa-se a expor os requisitos essenciais e dispensáveis da denúncia, oferecida pelo Ministério Público no âmbito do processo penal, a fim de investigar os prejuízos decorrentes do seu descumprimento para a defesa, sob a ótica acusatória, prevista na Constituição Federal de 1988.
DESENVOLVIMENTO
Como consabido, a inicial acusatória, em atendimento ao disposto no artigo 41 do Código de Processo Penal, deverá conter a “exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”.
Além desses requisitos, a doutrina indica a necessidade de outros, tais como: “endereçamento da peça acusatória, sua redação em vernáculo, a citação das razões de convicção ou presunção da delinquência, assim como a subscrição da peça pelo Ministério Público ou pelo advogado do querelante, sem olvidar da procuração com poderes especiais, e do recolhimento de custas, no caso de queixa-crime”[1].
Fato é que o julgador criminal, na sua atividade típica, sujeita-se à imprescindível análise de existência desses requisitos, de sorte que a falta de um requisito essencial já se mostra suficiente para o reconhecimento da inépcia formal da peça acusatória.
A conclusão pela essencialidade ou não do requisito, de logo se diga, não se encontra no âmbito da discricionariedade do magistrado, razão pela qual a falta de exposição do fato criminoso, individualização do acusado e redação da peça em português torna a denúncia ou queixa-crime completamente maculada, em tal nível que não se admitirá outro caminho senão o da rejeição da inicial acusatória[2].
Nesse ínterim, não é incomum que a acusação se olvide de observar os requisitos mínimos para o oferecimento de uma denúncia, imputando a alguém a prática de um delito em total desacordo com o que dispõe o artigo 41 do Código de Processo Penal. É dizer: por algum lapso, pode o Ministério Público, durante o exercício da sua atividade persecutória, diante do extenso volume de atribuições funcionais que lhe incumbe, deixar de cumprir, com o rigor necessário, alguns dos requisitos.
De qualquer forma, saliente-se, não pode o cidadão suportar esse ônus. Por isso mesmo, ao contrário do que pregam alguns membros integrantes do Ministério Público em suas manifestações, o cumprimento dos requisitos – ao menos dos essenciais – constitui uma moeda de duas faces: de um lado, representa um dever para a acusação; de outro, um direito do acusado em vê-los integralmente cumpridos.
Mostra-se inarredável, portanto, que da denúncia se possa extrair o conjunto dos seguintes elementos basilares: a) descrição de um fato; b) qualificação jurídico-penal desse fato; e c) atribuição desse fato ao acusado[3].
Nos casos de evidente negligência por parte da acusação, a jurisprudência, sobretudo do Superior Tribunal de Justiça, é uníssona no sentido de reconhecer a inépcia formal da denúncia, conforme se observa do aresto a seguir transcrito:
PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO. INÉPCIA DA DENÚNCIA EVIDENCIADA. DESCRIÇÃO DOS FATOS DE FORMA A NÃO VIABILIZAR O PLENO EXERCÍCIO DO DIREITO DE DEFESA. PREJUDICADO O EXAME DAS DEMAIS ALEGAÇÕES. RECURSO PROVIDO.
1. É inepta a denúncia que não expõe de forma clara os fatos tidos como delituosos, inclusive indicando o local do delito, de maneira a permitir a perfeita compreensão da acusação e a articulação defensiva.
2. Recurso provido, em que pese o parecer ministerial em contrário.
(STJ, RHC 21537/SE: RECURSO EM HABEAS CORPUS, Rel. Min. Napoleão Maia Nunes Filho, DJ-e: 20/04/2008).
Com lastro na legislação processual penal, nas lições doutrinárias e na jurisprudência pretoriana, portanto, observa-se que o descumprimento do artigo 41 do Código de Processo Penal – e aqui, frise-se, é irrelevante averiguar a razão ensejadora de tal descumprimento – exige que o magistrado exerça um controle, de ofício ou por provocação, sobre a regularidade da pretensão acusatória, reconhecendo a inépcia da inicial acusatória.
A despeito da possibilidade de reconhecimento da inépcia após o recebimento da denúncia, deve-se registar que um novo juízo de saneamento prestigia higidez processual, as garantias processuais e a economia do processo penal, haja vista que dar continuidade a uma ação penal natimorta, sem qualquer amparo probatório e jurídico, configura constrangimento ilegal e viola o direito à ampla defesa e ao contraditório.
Por isso, nada melhor para a preservação de um processo penal acusatório, em consonância com a sistemática constitucional, do que um juízo de prelibação, mesmo que a posteriori, ou seja, após o recebimento da denúncia e o oferecimento de resposta à acusação pela defesa técnica.
Em tais casos, destarte, não há que se falar em preclusão lógica ou preclusão pro judicato, porquanto adotar tal posicionamento implica, necessariamente, a deflagração de um processo penal eivado de vícios, nulo, em manifesto prejuízo à defesa.
Ademais, os princípios do contraditório e da ampla defesa não podem se situar apenas no plano teórico, sendo indispensável que se lhes confira um caráter pragmático, apto a convencer o magistrado, sob pena de cerceamento do direito de defesa.
Bem por isso, com arrimo na Lei n. 11.719/2008, que introduziu ao Código de Processo Penal, especificamente nos artigos 396 e 396-A, a obrigatoriedade de citação do acusado para responder à acusação, “tornou-se perfeitamente factível que o Juiz reveja a decisão pela qual recebeu a denúncia, para rejeitá-la em seguida, quando sua convicção é modificada por algum elemento trazido pela defesa em sua resposta escrita” (TRF-1ª Região, RSE 0014895-66.2008.4.01.3800, 3ª Turma, Rel. Des. Fed. Tourinho Neto, unânime, e-DJF1 de 28/02/2011, p. 64).
CONCLUSÃO
Apoiando-se na argumentação deduzida, lastreada na legislação, na doutrina e na jurisprudência, nota-se que a impossibilidade de se verificar da denúncia (i) a descrição de um fato; (ii) qualificação jurídico-penal desse fato; e (iii) atribuição desse fato ao acusado, enseja a inépcia da inicial acusatória, por descumprimento ao disposto no artigo 41 do Código de Processo Penal, hipótese que deve ser reconhecida, de ofício ou por provocação, pelo Juízo perante o qual se processa a ação penal.
REFERÊNCIAS
LIMA. Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 5. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017.
Notas
[1] LIMA. Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 5. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 290.
[2] Idem. Ibidem.
[3] Idem. Ibidem, p. 293.