2. O Estado violador de direitos
O tipo errado de tratamento pode ter consequências muito graves para o Estado. Ele entende, muitas vezes, que é difícil proteger porque as ameaças parecem vir principalmente da polícia, e o Estado usa a polícia para proteger os defensores dos direitos humanos admitidos nos programas sociais. Assim, do ponto de vista estatal, as mesmas pessoas que estavam atrás de uma acusada também seriam responsáveis por protegê-la. Fica o questionamento sobre como os Direitos Humanos geralmente lidam com isso, considerando que o Estado é uma das maiores violadoras de direitos humanos. Paira por aqui o silêncio.
A mídia apresenta trabalhadoras do sexo como vítimas de uma máfia violenta e perigosa, nas principais estações, em locais horríveis, onde as mulheres supostamente são sexualmente exploradas e trabalham. A notícia em torno das prisões não mencionam o abuso policial e a violência contra as profissionais do sexo durante o ataque. Em vez disso, a cobertura serve aos interesses da polícia, fornecendo justificativas para suas ações, silenciando tentativas de reabrir o local e redefinindo as trabalhadoras do sexo que estão no local como vítimas de extorsão. Essas notícias recorrentes aumentam drasticamente a necessidade de proteção.
Uma coisa fica clara, no entanto: do ponto de vista do programa defensor dos direitos humanos, a gravidade da situação exige medidas de proteção mais rigorosas do que elas podem fornecer. Essa proteção está em construção e deve combater a violência estatal.
O Estado viola em vários níveis com tentativas de fazer correto por trás de uma “cortina da legalidade”. Primeiro, violando seus direitos e os de todas as mulheres, as profissionais do sexo devem ser “gerenciadas” como possíveis vítimas de violações por parte de atores, inclusive, não estatais. Não violado pelo Estado. Segundo, nenhuma das reclamações de trabalhadoras do sexo da violência estatal resulta em qualquer ação disciplinar contra a polícia, nem mesmo uma investigação sobre o que verdadeiramente aconteceu.
Apesar da prova de flagrantes violações processuais e violência, o Estado não abre investigação nem procura protegê-la contra futuras ameaças. Embora nunca saibamos, também suspeitamos que as pessoas que a ameaçam sejam a própria polícia. Finalmente, enfrentando essa série de falhas do Estado em respeitar e proteger precariamente, buscamos proteção, benefícios e mecanismos estatais para vítimas de violência. Em cada caso, os programas seguir regras claras e criar condições que protejam as vítimas do próprio Estado.
No contexto da violência institucional contra profissionais do sexo, não é que o Estado não atue, mas sim que é muito estratégico quando escolhe fazê-lo. Em suas tentativas de fazer justiça denunciando a violência do Estado e buscando proteção como ativista, nenhum dos canais “corretos” funciona. Ao mesmo tempo, a recusa em seguir as regras confusas e ser o tipo de vítima que o Estado está disposto a proteger está diretamente relacionada à dificuldade em obter proteção.
Diferentemente da experiência de muitos no Brasil, o acesso inicial aos sistemas do governo pode ser bastante rápido - cordas são arrancadas para abrigar, se necessário, e a avaliação de emergência é rápida. No entanto, em cada um desses casos, a burocracia muda tudo rapidamente porque a pessoa às vezes é apresentada como o tipo de vítima que cada um desses serviços protege.
3.Categorização das vítimas
Existe verdadeira categorização das vítimas que revela os tons morais do humanitarismo e das políticas de migração que servem como mecanismos classificatórios, decidindo quais corpos são dignos de resgate e proteção.
No contexto das trabalhadoras sexuais nigerianas detidas na Europa, os processos de entrevista policial basicamente obrigam as mulheres a adotar uma narrativa de vítima para evitar serem categorizadas como migrantes indocumentados e acusadas de violar as leis de imigração. É uma dinâmica semelhante ser capturada entre as “máfias” e a “ajuda” e uma das razões pelas quais tão poucas profissionais do sexo se identificam como vítimas do tráfico sexual; não são as vítimas que aqueles procuram “salvar” ou, pois, em alguns casos, visa deportá-los, querendo ou não.
A burocracia nesses exemplos funciona como um processo de exclusão social através do qual o estado escolhe quem merece proteção e quem merece punição. No entanto, existem duas diferenças importantes entre o caso comum brasileiro e a construção de vítimas no contexto do tráfico sexual: 1) sua condição de vítima da violência do Estado; e 2) ela não foi “salva”, ela ativamente buscou reparação e justiça depois que o estado a violou.
Essas distinções acrescentam camadas adicionais de complexidade ao pensamento sobre a construção e o gerenciamento das vítimas. Em vez de categorizar as vítimas merecedoras, o Estado tenta ensinar “como ser” por meio do gerenciamento dela. Enfim, a burocracia funciona não apenas como um processo de mordaça, mas também como um processo de gestão através do qual as vítimas são moldadas para se ajustarem aos limites dos programas sociais e penais disciplinares.
Tentativas de fazer o correto podem ser descritas como “uma arte de governar que é a arte de não fazer”. De fato, a arte de não fazer faz muito. É recorrente que um dos aspectos mais ameaçadores do caso seja o completo silêncio e a falta de ação do Estado em resposta a tantas ações ilegais flagrantes dos seus agentes públicos.
O fracasso do Estado e as ameaças trabalham juntas. Por um lado, as trabalhadoras do sexo, são silenciadas por ameaças e, indiretamente, pela lentidão dos processos legais que tentam reabrir seus locais de trabalho. Por outro lado, a única instituição estatal investida em pelo menos a tentativa de defender as mulheres senti-se ameaçada pelo silêncio absoluto da instituição que deveria ter sido responsável por denunciar a violência, mas, em vez disso, é o órgão do governo responsável por ela. Triste contradição na realidade brasileira.
O modo de operação do estado, no entanto, está muito longe de ser uma estratégia oculta, dinâmica ou desconhecida, para aqueles que são mais afetados por ela. A dificuldade em buscar proteção é verdadeiro desperdício de tempo porque o Estado não funciona, ou funciona para eles, para eles mesmos, para os governadores, políticos, congressistas e vereadores, para eles - eles têm políticas, proteção, tudo, mas a sociedade civil não tem nada.
A expectativa da não ação do Estado é sentimento sólido para o cidadão comum. O tratamento diferenciado para quem não é do poder, este o pensamento de qualquer do povo. No entanto, por mais que se duvide da capacidade do estado de trabalhar a seu favor, relevante e urgente insistir em continuar na luta para transformar esta realidade.
O reconhecimento do Estado, em seus termos, de que seu povo é merecedor de proteção por meio da promoção de Direitos Humanos é algo que motiva a continuar na luta. No entanto, niguém deve se submeter nem se dispor a se adaptar às suas categorias de vítimas para receber o tipo de proteção que o Estado está disposto a oforecer.
Qualquer documento oficial não representa a vítima do Estado, ao mesmo tempo em que reconhece que não é suficiente para sua proteção. Aqui, o direito deve adequar-se ao caso concreto, conforme cada necessidade e história de vida do cidadão. Somos diferentes e com expectativas diferentes deste Estado opressor tão excludente.
Uma puta exigindo seus direitos interrompe, quebra e desafia as máquinas classificadoras do estado. No entanto, cabe ao cidadão consciente transformar a experiência em um “constrangedor ruído” sobre os fracassos do sistema estatal e forçá-lo a proteger conforme, como parte de seu ativismo para fazer direito.
Nâo seja apenas mais uma vítima de violência institucional, sentindo os passos crueis do poder punitivo da proteção, enquanto busca justiça. Seja poderoso ser transformador e faça retaliação por tudo que tenha sofrido de forma a prosperar esta sociedade.
Conclusão
Exploro o que é fazer certo em ambos os lados da equação estatal e ativista, sob o argumento que, no contexto da violência institucional contra as vítimas da forma estatal, o Estado não faz o que deveria; e ainda sai do seu caminho para fazer o que não deveria.
Refiro-me a este modo de agir preterindo cidadãos, conceito que também se baseia na extensa literatura que analisa a construção da vitimização em suas várias formas e contextos sociais. Ao contrastar isso com os esforços para o alcançar o direito, descubro o que acontece quando as vítimas resistem e tentam obrigar o Estado a agir em nome da justiça, em vez de seus próprios interesses. Propus o uso do termo gestão de vítimas como algo que incorpora o Estado brasileiro como aquele que administra seus sujeitos como uma maneira de “ensinar a ser”.
Qualquer do povo dever recusar-se a ser o que o Estado queria quer que sejamos e, penalizar seu povo por nada. A experiência desta leitura é um reflexo de uma das muitas verdades de quem luta por mais de duas décadas contra a vitimização do povo, pois as verdadeiras vítimas não têm um direito a qualquer coisa e sim a um complexo e justo conjuto de direitos.
Direitos não são prestações materiais, mas sim relações sociais por excelência, por essa razão, o socorro às minorias sociais vai de encontro com os preceitos de Direitos Humanos. O direito que ampara a vítima com qualidade não espera o futuro ou assistência política, mas sim a existência de um conjunto de ações sociais que garantam a psicologia social e justa do ambiente de socorro.
Referências
BECCARIA, Cesare Marchese. Dos delitos e das penas. Tradução: Paulo M. Oliveira. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão – causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
GRECO, Rogério. Direitos humanos, sistema prisional e alternativas à privação de liberdade. São Paulo: Saraiva, 2011.
PEREIRA, Marcos A. Beccaria. O precursor do Direito Penal moderno. Coleção pensamento e vida, vol. 5. Ed. Escala, 2011.