4. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO INQUÉRITO POLICIAL
Como instrumento apto ao Estado iniciar a persecução penal de forma extrajudicial, o inquérito policial. A investigação criminal consiste em uma atividade preparatória à ação penal, tendo um caráter preliminar e informativo para fornecer subsídios para a acusação realizar a propositura da ação, uma vez que é necessária justa causa para seu início.
O inquérito policial, sendo o instrumento apto a formalizar e concretizar toda a investigação criminal, não pode ser um utilizado de forma leviana ou temerária, devendo ater-se a princípios que norteiam seu desenvolvimento, pois pode acarretar uma coação ilegal praticada pelo Estado contra o indivíduo.
Segundo ensina Guilherme de Souza Nucci13:
“O Estado pode e deve punir o autor da infração penal, garantindo com isso a estabilidade e a segurança coletiva, tal como idealizado no próprio texto constitucional (art. 5º, caput, CF), embora seja natural e lógico exigir-se uma atividade controlada pela mais absoluta legalidade e transparência. Nesse contexto, variadas normas permitem que órgãos estatais investiguem e procurem encontrar ilícitos penais ou extrapenais. O principal instrumento investigatório no campo penal, cuja finalidade precípua é estruturar, fundamentar e dar justa causa à ação penal, é o inquérito policial”.
Desse modo, demonstra-se a relevância do inquérito policial, que constitui a primeira parte da persecução criminal do Estado visando propiciar justa causa para propositura e instrução da ação penal.
Uma vez instaurado o inquérito policial, este se sujeita ao devido processo, previsto no artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal. Em razão disso, a doutrina identifica diversos princípios emanam do inquérito policial, sendo eles variáveis entre os doutrinadores, principalmente no tocante a sua classificação, pois alguns aumentam ou diminuem sua denominação, ou até mesmo os agrupa ou os divide em razão de novas legislações, vindo a dar nova nomenclatura.
A seguir, são tratados de alguns dos princípios constitucionais inerentes ao inquérito policial, que buscam compatibilizá-lo com os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Cidadã de 1988, de forma não exaustiva já que, como já explicado, a doutrina trata de forma diversa o assunto.
4.1. Princípio da verdade real
Pelo princípio da verdade real, entende-se que a Autoridade Policial que conduz as investigações possui o poder discricionário de investigação para apurar os elementos de prova necessários para dar início à ação penal, buscando sempre a verdade real dos fatos, uma vez que uma verdade meramente formal não é apta a fornecer convencimento ao juiz daquilo que realmente ocorreu.
No inquérito policial o que se busca é descobrir a verdade dos fatos, de maneira imparcial e visando coletar provas da autoria e materialidade de um fato delituoso, a fim de propiciar elementos necessários à propositura da ação penal em face do delinquente. A esse respeito, Ricardo Cardozo de Mello Tucunduva14 explica que:
“Surgiu a preocupação com a busca da verdade real ou material, em vez da procura da verdade meramente formal, com escopo do processo e como fundamento da sentença. Hoje, para decidir, o magistrado precisa estar plenamente convencido acerca do que realmente ocorreu e, nesse processo moderno, o interesse em jogo é tanto das partes, como do Juiz e da sociedade em cujo nome atua.
Todos agem, assim, com o escopo de chegar à pacificação social, à felicidade, ao Bem Comum. A eliminação dos litígios, de maneira legal e justa, é do interesse tanto dos litigantes como de toda a comunidade”.
Como na persecução penal está em jogo direitos fundamentais da pessoa, tais como vida, liberdade, honra, integridade física, etc, que podem ser afetados em razão de uma condenação criminal, não cabe a satisfação meramente com uma verdade formal documentada nos autos, sendo necessária uma investigação mais profunda buscando a realidade dos fatos que caracterizam a infração penal, bem como do descobrimento irrefutável da autoria delitiva. Sebastião Paulo da Silva Filho15 expõe que:
“Por força de um poder indisponível e de ordem pública, o princípio da verdade real é mais intensamente buscado no processo penal, especialmente quando são colhidas ainda na fase do inquérito as informações probatórias do delito, tais como: levantamento de local de crime, apreensões de instrumentos nele utilizado, exame de corpo de delito, reconhecimentos, provas periciais e quanto ao indiciado, são feitos o reconhecimento pessoal – quando possível, o interrogatório, identificação datiloscópica, nota de culpa. De todas estas providências e demais outras, dependendo do caso concreto, estará evidente a conjugação de elementos necessários à aplicação do princípio da verdade real”.
4.2. Princípio do devido inquérito legal
O artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, prevê que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. A esse respeito, pode-se expor acerca do princípio do devido inquérito legal, uma vez que o inquérito não é um processo, mas sim um procedimento preliminar extrajudicial preparatório à propositura da ação penal em que não há partes, ou seja, não há defesa ou acusação, mas há a figura do Delegado de Polícia que preside o feito e de forma discricionária tem o poder-dever de investigar e coletar todas as informações e provas relacionados com o delito a ser apurado.
Desse modo, o devido inquérito legal configura-se como sendo a existência de um procedimento legalmente previsto para apuração das infrações penais e de sua autoria que deve respeitar e estar alicerçado nas normas vigentes, sobretudo nos direitos e garantias fundamentais da pessoa.
4.3. Princípio da legalidade
Pelo princípio da legalidade, entende-se que conforme disposto no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Dessa forma, toda atividade desenvolvida no inquérito policial deve estar revestida de legalidade, sendo que enquanto ao particular somente é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se houver previsão legal, à Polícia Judiciária é permitido praticar algum ato no inquérito policial somente quando a lei prever e dentro dos limites que lhes são assinalados.
A prática de qualquer ato que não esteja revestido de legalidade no inquérito policial sujeita à nulidade do feito e, por vezes, até a nulidade de todo procedimento dependendo do caso.
No tocante a esse assunto, assevera Sebastião Paulo da Silva Filho16:
“A investigação policial no desempenho da fase primária da persecutio criminis é uma atividade revestida de legalidade, desde que desenvolvida pelo órgãos oficiais da Segurança Pública e dentro dos limites que lhes são assinalados pela Constituição Federal e pela legislação complementar. Já dissemos que o registro de nascimento, de direito, da Polícia Judiciária, que por sua vez é a mesma Polícia Civil, foi referendado na nossa Constituição Federal de 1988, quando diz: ‘As policias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares’.
A ação da polícia civil no desempenho de suas funções está plenamente regulada e prevista em lei, daí o seu caráter de princípio da legalidade. A autoridade policial que tiver conhecimento da prática da infração penal deverá de imediato tomar as providências cabíveis. Isto é, não poderá haver prisão arbitrária, ou seja, fora dos casos de situação de flagrante delito ou por ordem escrita da autoridade judiciária, que seria o Mandado de Prisão. Assegurar os direitos e garantias individuais aos presos indiciados. Cautelas na determinação de diligências, essencialmente quanto à colheita de provas e etc”.
4.4. Princípio da obrigatoriedade
Pela obrigatoriedade, o Delegado de Polícia deve instaurar inquérito policial sempre que a infração penal a ser investigada se tratar de crime de ação penal pública incondicionada, conforme disposto no artigo 5º, do Código de Processo Penal.
Assim sendo, quando a Autoridade Policial ao tomar conhecimento de um delito de ação penal pública incondicionada tem o dever legal de instaurar ex officio o inquérito policial, visando dar formalidade às investigações criminais decorrentes disso.
Ainda que o artigo 5º, do Código de Processo Penal, disponha genericamente que o Delegado de Polícia deve instaurar obrigatoriamente inquérito nos crimes de ação penal pública, entende-se que tal regra se aplica somente aos crimes de ação penal pública incondicionada, uma vez que no caso de crime de ação penal pública condicionada a representação o artigo 5º, parágrafo 4º, do Código de Processo Penal impõe que não poderá ser iniciado o inquérito policial sem a devida representação do ofendido ou daquele que puder representá-lo.
Nos crimes de ação pública a autoridade policial é obrigada a realizar as investigações criminais por meio do inquérito para que, após sua conclusão, seja remetido aos titular imediato da propositura da ação penal, que depois de verificar a justa causa da ação fica obrigado a oferecer a respectiva denúncia iniciando dessa forma a ação penal.
O princípio da obrigatoriedade tem origem no brocardo nec delicta maneant impunita, ou seja, os delitos não podem ficar impunes. Decorre da indisponibilidade da persecução penal a ser realizada pelo Estado, sendo o Delegado de Polícia obrigado a instaurar o inquérito policial quando tiver conhecimento de um delito de ação penal pública incondicionada, não podendo este ser paralisado indefinidamente ou arquivado senão a pedido do titular da ação penal, tendo prazos previstos em lei para sua conclusão.
Logo, a Autoridade Policial está obrigada a iniciar de ofício as investigações quando tomar conhecimento de um delito de ação penal pública por meio do inquérito policial, independentemente de quaisquer critérios políticos ou sociais e, uma vez instaurado as investigações não podem ser interrompidas por sua vontade. Nesse sentido, diz Sebastião Paulo da Silva Filho17:
“Demonstramos razões suficientes para admitir que a autoridade de polícia judiciária tem sempre o dever de agir, instaurando procedimento policial investigatório que servirá de base para a ação penal e nisto estarão seus atos inseridos no princípio da obrigatoriedade ou da indisponibilidade, sob pena de responder administrativamente – conforme lei orgânica pertinente ou até criminal – prevaricação, não podendo deixar de praticar atos de ofício, por ser indisponível o seu dever funcional de dar início a apuração dos fatos e uma vez iniciada, não poderá paralisa-la e nem mandar arquivar os autos”.
4.5. Princípio da defesa
O artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, prevê como direito fundamental que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Neste regramento, tem-se a matriz constitucional do princípio do contraditório e da ampla defesa, contudo, ressalta-se mais uma vez que o inquérito policial não é um processo, mas sim um procedimento e, dessa forma, não há a incidência completa deste direito fundamental em razão do próprio sistema processual inquisitivo que nele vigora.
Como no inquérito policial não há partes, ou seja, não há litigantes, não está presente nele o contraditório, sendo que a Autoridade Policial é a responsável por coletar todos os elementos de prova e informações necessárias para subsidiar a ação penal, em que nela estará presente o contraditório, quando passará a existir um processo em que haverá o sistema processual penal acusatório.
Sendo o inquérito policial um procedimento presidido por Delegado de Polícia de carreira, de fundamental importância para dar início à ação penal, o sistema penal adotado durante essa fase preparatória para autorizar o processamento do agente é o inquisitivo.
Na presidência do inquérito policial, o Delegado de Polícia coleta provas de duas ordens, as renováveis e as não renováveis. As primeiras devem ser minuciosamente repetidas em juízo, uma vez que estão sujeitas ao contraditório real ou frontal.
As provas não renováveis estão sujeitas ao contraditório diferido. O juiz nos termos do artigo 155, do Código de Processo Penal, formará sua convicção com base nas provas produzidas em contraditório judicial, salvo no caso das provas não repetíveis, cautelares e antecipadas, sendo estas consideradas as provas não renováveis, que são realizadas no inquérito policial e, por sua natureza, não são repetidas em juízo, tendo o seu contraditório somente no curso da ação penal.
É plenamente permitido ao juiz mesclar a avaliação de provas colhidas em sede de inquérito policial, com a devida complementação em juízo, uma vez que o trabalho desenvolvido inquisitorialmente é absolutamente imprescindível à continuidade do sistema processual acusatório.
Durante o inquérito policial, o Estado necessita lançar mão de instrumentos legalmente previstos para garantir a descoberta do autor do delito e a elucidação da infração penal. Conforme vai conseguindo colher provas, o sistema vai permitindo mais garantias e defesas ao investigado.
Em razão disso, no inquérito policial não há a ampla defesa, mas sim a defesa, pois ao investigado não é permitido se defender de tudo aquilo que é apurado no inquérito policial.
Ao investigado, pode este requerer à Autoridade Policial que preside o inquérito policial a realização de diligências, oitiva de pessoas, acareações, realização de perícias, entre outras, que demonstrem não ser ele o autor da infração penal ou que não ocorreu um delito, caracterizando assim a presença do princípio da defesa, uma vez que a parte pode levar ao inquérito policial elementos para configurar a sua inocência.
Logo, o princípio da defesa é uma mitigação da ampla defesa, já que não é em todos os atos do inquérito policial que a lei permite ao investigado praticar algum ato em sua defesa.
Em razão disso, cabe a hipótese de uma pessoa que vem sendo acusada de ser autora de uma infração penal vir a solicitar à Autoridade Policial a instauração de inquérito policial com a intenção de ficar demonstrado no inquérito que ela não foi a autora da infração, bem como podendo requer as diligências necessárias à sua defesa.
De acordo com o artigo 14, do Código de Processo Penal, “ o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade”, logo, a Autoridade Policial pode discricionariamente indeferir quaisquer diligências requeridas durante o inquérito policial, salvo no caso de requerimento para realização de exame de corpo de delito, em razão do disposto no artigo 184, do Código de Processo Penal. Isto demonstra mais uma vez a presença da defesa no inquérito policial, porém, não sendo ela realizada de forma ampla.
4.6. Princípio da presunção de inocência
A Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso LVII, prevê como direito fundamental que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Por esse princípio, entende-se que durante o inquérito policial o investigado tem a prerrogativa constitucional de não ser considerado culpado pela prática da infração penal até que haja uma sentença penal condenatória transitada em julgado.
Esse princípio impõe ao inquérito policial que mesmo havendo uma apuração robusta acerca da certeza da autoria e materialidade do delito, ainda assim somente após finalizada a ação penal com o trânsito em julgado da sentença condenatória é que o indiciado deve ser tido como culpado do delito. Assim sendo, não pode o indiciado, mesmo confessando o delito, ser tratado como culpado.
A presença de tal princípio possibilita a concretização da verdade real, pois como no inquérito policial não se pode alegar de plano que o indiciado é culpa, deve-se buscar todos os elementos que forneçam fundamento a formação de sua culpa.
Tal principio também está esculpido na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que prescreve no artigo XI:
“todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.
Também o artigo 8º, item 2, do Pacto de São José da Costa Rica, prevê que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.
A presença da presunção de inocência, entretanto, não obsta a realização das diligências necessárias ao descobrimento da verdade real dos fatos, tampouco a decretação de prisão temporária, preventiva ou de qualquer medida cautelar durante o inquérito policial, haja vista serem medidas necessárias para garantir a elucidação dos fatos e a correta aplicação da lei penal.
Nas palavras de Sebastião Paulo da Silva Filho18:
“Uns dizem ‘estado de inocência’; outros ‘presunção de inocência’ e outros em ‘presunção de não culpabilidade’. De qualquer forma, toda pessoa acusada da prática de delito tem seu direito assegurado de não ser condenado ou trancafiado numa cela sem que se obedeça a estes princípios legais e através do devido processo legal, assegurada a mais ampla defesa”.
4.7. Princípio do respeito à coisa julgada
O inquérito policial não pode ser instaurado para se apurar algum fato ou autoria de um delito no qual já tenha ocorrido o devido processamento penal para julgamento do fato. Isto é, o inquérito policial não pode voltar a investigar aquilo que tenha sido objeto de uma ação penal já proposta em que se tenha formado coisa julgada.
No entanto, tal fato se opera quanto aos fatos imputados ao acusado naquela ação penal, pois se a Autoridade Policial vier a tomar conhecimento de fatos novos que indicam a ocorrência de delito diverso ou se tomar conhecimento de ser outra pessoa a autora do delito apurado, deverá instaurar o procedimento para a devida investigação criminal.
Dessa forma, o inquérito policial deve respeitar a coisa julgada, uma vez que a matéria já foi esgotada judicialmente, tendo o estado cumprido todas as fases da persecução penal, mas à vista de fatos novos pode instaurar novo procedimento para apurar a ocorrência de um delito não discutido na ação penal ou para indiciar aquela pessoa envolvida no delito que não foi levada a julgamento.