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O desaparecimento de Fernando Santa Cruz na ditadura militar brasileira

Agenda 03/08/2019 às 09:33

O artigo discute fato concreto, com suas implicações criminais, diante da lei de anistia.

Segundo se lê do Wikipédia, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira (Recife, 20 de fevereiro de 1948 – Rio de Janeiro, desaparecido em 22 de fevereiro de 1974) foi um estudante e militante do movimento estudantil brasileiro, símbolo da resistência contra a Ditadura Militar. De acordo com um de seus irmãos, João Artur, Fernando não era ligado à luta armada, mas era membro da Ação Popular (AP). Quando Fernando desapareceu, seu filho Felipe Santa Cruz (desde 2019 presidente da Ordem dos Advogados do Brasil) tinha apenas dois anos de idade.

Marcelo Santa Cruz, outro irmão, falou sobre a época da prisão de Fernando à Comissão da Verdade: “A gente considerava que tinha sido o DOI-CODI. Calcula-se que Fernando foi morto em função de ser o contato de Jair Ferreira de Sá e por não ter delatado os pontos (contatos). A Corte Interamericana catalogou o caso com o nº 1844”.

Segundo se informa, em 1974, Fernando, que adotava o nome Carlos, junto com a sua mulher, decidem passar o carnaval na cidade do Rio de Janeiro. Nesta passagem pelo Rio, Fernando decide visitar amigos que faziam parte da resistência política contra a ditadura militar, pertencentes à Ação Popular Marxista-Leninista (APML), que, em decorrência das atividades contrárias a ordem vigente, eram obrigados a viver na clandestinidade. No dia 23 de fevereiro, Fernando saiu da casa do seu irmão Marcelo para o encontro com os amigos às 16 horas daquele sábado de carnaval. A volta estava marcada para às 18:00. Entretanto, Fernando Santa Cruz nunca mais foi visto. Quando o apartamento de um de seus amigos, Eduardo Collier, foi inspecionado por agentes de segurança do governo, presumiu-se que Fernando havia sido levado pelos agentes do DOI-CODI-RJ. Sem se identificarem ao porteiro do prédio, reviraram todo o apartamento e apreenderam uma grande quantidade de livros de conteúdo ideológico, imaginando-se que se tratava de uma ação repressiva de natureza política, porém, não se sabe ao certo o que de fato ocorreu, dado que sem identificação, tanto poderiam ser agentes do governo quanto militares disfarçados em missão de cunho secreto.

De imediato, começaram as buscas, ao mesmo tempo, teve início a busca junto às autoridades militares por parte da família e dos advogados. A falta de informações não colaborou para o intento. A procura se estendeu pelos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, nos I e II Exércitos, respectivamente. A Igreja, através do Cardeal D. Paulo Evaristo Arns, o advogado Sobral Pinto, escritor Alceu Amoroso Lima, tentaram investigar, sem, contudo, obterem resultados concretos.

Igualmente inúteis foram os habeas-corpus impetrados pelos advogados junto à Justiça Militar. Nem a presença de militares insuspeitos como os marechais Juarez Távora e Cordeiro de Farias, muito menos o envolvimento direto de entidades internacionais como a Organização dos Estados Americanos e a Anistia Internacional, conseguiram surtir efeito junto às autoridades brasileiras.

Um relatório divulgado pelo Ministério da Marinha informou que Fernando Santa Cruz estava desaparecido desde 23 de fevereiro daquele ano. Um ano mais tarde, a mãe de Fernando, dona Elzita, enviou uma carta ao Ministério da Justiça pedindo informações sobre o filho, mas nunca teve resposta..

Sabe-se hoje que os dois foram mortos por agentes do Estado, mas os corpos nunca foram encontrados.

Há duas versões sobre o destino deles: ou tiveram corpos enterrados como indigentes ou tiveram os corpos incinerados.

Trata-se de possível crime de ocultação de cadáver.

Prevê o artigo 211 do Código Penal:

D estruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele:

P ena - reclusão, de um a três anos, e multa.

A destruição é a primeira modalidade do crime em discussão. Destrói-se um cadáver, queimando-o, tratando-o por processos químicos, por ação compreensiva, esmagamento, etc, mesmo que não seja possível reduzi-lo a detritos ou resíduos.

A segunda modalidade envolve a subtração que significa tirar a coisa da esfera de proteção, guarda ou disponibilidade de outrem. Como revela Magalhães Noronha2 é a retirada do cadáver da situação normal e regular em que se encontra, sob a proteção da família, parentes, amigos, vigias do cemitério etc. Mas não se exige o apossamento como no furto. O crime pode ser cometido por guardas, vigias do necrotério, parentes do defunto etc.

Ocultar equivale a esconder, fazer desaparecer o cadáver sem destruí-lo. É conhecida a lição de Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, volume VIII, pág. 73).distinguindo a ocultação da subtração de cadáver, ensinou que aquela somente pode ocorrer antes do sepultamento; pressupõe que o cadáver ainda não se ache no lugar de seu destino. Nessa lição tem-se que a ocultação só pode ocorrer antes da inumação, mas pode a subtração pode dar-se antes ou depois do sepultamento, pois se durante um velório, pessoas tiram o corpo do ataúde e fogem com ele, haverá subtração.

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É crime de ação múltipla, sendo que a prática das várias ações mencionadas no tipo penal dá lugar apenas a um delito.

O crime pode ocorrer no cemitério, no hospital, em logradouro público etc.

O cadáver é o corpo humano privado de vida, morto. É o que viveu como o que nasceu sem vida, o natimorto. Exclui-se, portanto, o feto e a mola hidatiforme(é um distúrbio da gravidez em que a placenta e o feto não se desenvolvem adequadamente). O primeiro que não chegou a maturação necessária, não se pode tornar cadáver. A segunda é formação degenerativa do ovo fecundado, onde nunca houve vida. O objeto material do crime é o cadáver, corpo que ainda conserva a aparência humana, e não os restos em completa decomposição (RT 479/303).

Para Magalhães Noronha (Direito Penal, volume III, 10ª edição, pág. 92., pág. 93), cadáver é o corpo que conserva a aparência ou a forma humana. Não se inclui nesse contexto a vítima de um grande esmagamento, em que os ossos fossem triturados, ficando reduzido, de todo, a uma pasta informe e irreconhecível. Já se decidiu que, para fins do artigo 211 do Código Penal, os restos humanos em estado de quase completa esqueletização não são considerados cadáver (RT 479/304).

A destruição a que se refere o artigo 211 do Código Penal não é apenas de todo cadáver senão de parte dele (RT 526/350). Assim não ficarão excluídos da tutela legal os membros, o tronco, que, ás vezes, são sepultados(oriundos de sinistros aeronáuticos, ferroviários etc quando os corpos se despedaçam). Para Magalhães Noronha(Direito Penal), já o mesmo não acontece, em se tratando de braço, ou perna amputados, partes do corpo vivo.

Fabbrini Mirabete(Manual de Direito Penal, volume II, 25ª edição, pág. 396.) cita casos em que se tem decidido pelo crime em apreço: o abandono, em terreno baldio, de vítima de atropelamento que estava sendo socorrida e que vem a morrer(RT 537/202); atirar no natimorto na fossa(RT 478/308); o abandono em terreno baldio para encobrir o crime(RT 784/530); o arremesso do corpo às águas de córrego ou rio(RT 350/112, 402/113); a subtração pelo agente funerário que pede remuneração para devolver o corpo(RT 522/324).

Não se reconheceu esse crime, no caso da condução de um corpo de um lugar para outro, para despistar a polícia(RT 275/144).

O elemento subjetivo do crime é o dolo que não será específico.

Para a consumação do crime não se exige a destruição total do cadáver. Há destruição se lhe arrancam a cabeça e os membros, deixando incólume o tronco, como bem lecionou Magalhães Noronha(obra citada), Na subtração, consuma-se o delito, com a tirada do corpo de sua esfera ou órbita de proteção e tutela. Na terceira modalidade – ocultação – consuma-se o crime tão logo haja o desaparecimento do cadáver. Já se entendeu que se configura a destruição mesmo que seja só de parte do cadáver(RT 526/350). O Supremo Tribunal Federal decidiu que retirar o cadáver do local onde deveria permanecer e conduzi-lo para outro em que não será normalmente reconhecido, configura-se, em tese, o crime de ocultação(RT 784/530), tratando-se de crime permanente que subsiste até o cadáver ser descoberto.

Porém, já se entendeu que não se tipifica se o agente, imediatamente após haver escondido o cadáver, comunica o fato à autoridade, pois não procurou manter a ocultação, o que revela ausência de dolo(RT 552/361).

Se a destruição é de várias partes do cadáver o crime é único. Se alguém destrói vários cadáveres pratica diversos crimes.

Com relação ao início do prazo da prescrição da pretensão punitiva, dispõe o artigo 111, III, do Código Penal, que nos crimes permanentes, a prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr, do dia em que cessou a permanência. Assim o crime de sequestro referenciado não estaria abarcado pelo marco temporal da Lei de Anistia de 1979, uma vez que o delito segue sendo perpetuado. Nessa visão o crime cometido não estaria colhido pela prescrição.

Porém, dir-se-á que há a anistia, diante de lei editada em 1979. Se houver denúncia ajuizada, certamente haverá reclamação ao STF, suspendo o curso de uma eventual ação penal.

O STF, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, considerou constitucional a Lei 6.683/1979 (Lei da Anistia). .

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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