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O princípio do juiz natural e o incidente de deslocamento de competência instituído pela EC nº 45/2004

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Agenda 17/11/2005 às 00:00

Sumário: I. Introdução. II. Federalização dos crimes contra direitos humanos. III. O Princípio do Juiz Natural. IV. A análise do art. 109, §5º, da Constituição Federal, frente ao princípio do juiz natural. V. Conclusão. VI. Bibliografia.


I. INTRODUÇÃO

A Emenda Constitucional 45/2004 trouxe a chamada "Reforma do Judiciário", tendo como principal motivo tornar mais célere o Judiciário brasileiro.

Uma das inovações introduzidas na Constituição Federal de 1988 por essa emenda foi a possibilidade do deslocamento de competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal, visando assegurar o cumprimento de tratados internacionais de direitos humanos dos quais seja o Brasil signatário. Vejamos o texto:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

V-A As causas relativas a direitos humanos a que se refere o §5º deste artigo;

§5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.

Essa norma veio como conseqüência da equiparação dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo Congresso Nacional às emendas constitucionais (art. 5º, §3º) e da inserção da garantia à celeridade de tramitação dos processos (art. 5º, LXXVIII), ambas alterações também introduzidas na Constituição Federal pela EC 45/04.

Assim, buscou-se trazer o julgamento dos crimes onde há grave violação contra os direitos humanos para a competência da Justiça Federal e, conseqüentemente, sua apuração para a Polícia Federal (art. 144, §1º, IV, CF)

Essa federalização tem o escopo de trazer para o âmbito da União o cumprimento de obrigações relativas à erradicação de crimes contra direitos humanos contidas em Tratados Internacionais e de impedir a estagnação na elucidação de determinados crimes pelas autoridades locais, às quais muitas vezes faltam tecnologia e interesse na apuração dos fatos.

Todavia, esse novo §5º do art. 109 tem causado certa polêmica no meio jurídico, pois a instituição deste Incidente de Deslocamento de Competência (IDC) estaria eivado de inconstitucionalidade, ao argumento de que feriria o pacto federativo e o princípio do juiz natural.

Sob esta ótica, em maio de 2005, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), apoiada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), propôs a ADIN nº 3.486/DF, visando obter a declaração de inconstitucionalidade desta norma. Esta ADIN foi conseqüência direta do uso feito pelo Procurador-Geral da República Cláudio Fonteles do IDC no caso do assassinato da missionária Dorothy Stang (IDC 1/PA), alegando ter ocorrido um assassinato brutal, conseqüência da incapacidade do Estado do Pará em defender a vida da missionária, que reiteradas vezes pediu sua proteção. O IDC 1/PA foi indeferido por unanimidade em 08/06/2005, pela Terceira Seção do STJ.

Pretendemos aqui demonstrar a base das duas posições, a que acredita que o §5º do art. 109, Constituição Federal, viola o princípio do juiz natural ou mesmo o pacto federativo, e a que crê ser constitucional tal artigo, para, ao final, nos posicionarmos.


II. FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMEs CONTRA DIREITOS HUMANOS

Pelo que se depreende do art. 109, §5º da Constituição Federal, cabe ao Procurador-Geral da República a intervenção, mas ele apenas pode suscitar o deslocamento de competência, e não decidir sobre o cabimento do mesmo.

Presentes os requisitos constitucionais, o Procurador-Geral da República submeterá a questão à Terceira Seção do STJ [01], que decidirá pela alteração ou não da jurisdição. Ressalte-se que a opção feita pelo constituinte derivado de caber ao STJ essa decisão está totalmente em consonância com a previsão do art. 105, I, "d", CF, já que se trata de conflito de competência entre Justiça Federal e Justiça Estadual.

Ao dizer que o IDC pode ser suscitado em qualquer fase do inquérito ou do processo, significa que a ação penal pode ser deslocada inclusive na fase recursal. Para Eugênio Pacelli de Oliveira, nada impede que a decisão do STJ de deslocar a competência para a Justiça Federal seja revista pelo STF, pela via de Recurso Extraordinário ou de habeas corpus [02].

O deslocamento pode ser feito mesmo se o acusado goza de foro especial por prerrogativa de função. Assim, e.g., se o acusado é um juiz de direito, presentes os requisitos a competência poderá ser deslocada para o Tribunal Regional Federal.

À Polícia Federal já cabia investigar crimes em que houvesse violação dos direitos humanos objeto de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário desde a Lei 10.446/02, que estabeleceu essa atribuição em seu art. 1º, III. Vale dizer, passou a ser competência conjunta da Polícia Federal e da Polícia Estadual a investigação desses crimes. Com aplicação do art. 109, §5º, essa competência conjunta deixará de existir, passando a Polícia Federal a substituir a Estadual na persecução, por ser a polícia judiciária da União (art. 144, §1º, IV, CF).

De acordo com o art. 109, §5º, a competência estadual para o julgamento de causas relativas a direitos humanos permanece como regra, passando a ser federal apenas se concorrerem os seguintes requisitos específicos:

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(i) existência de grave violação a direitos humanos;

(ii) a finalidade de garantir o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja signatário;

(iii) a inércia ou incapacidade das autoridades responsáveis de responder ao caso específico.

Para Eugênio Pacelli, a aferição da gravidade da violação a direitos humanos não diz respeito à violência em si, e sim ao "grau de repercussão da conduta, em relação à efetiva possibilidade de intervenção da Administração e das autoridades federais para a repressão e prevenção de tais delitos" [03].

Crimes contra os direitos humanos seriam aqui aqueles incriminados no direito pátrio e no direito internacional (em tratados e afins dos quais seja o Brasil signatário) pelo bem jurídico tutelado (integridade física, psíquica, dignidade da pessoa humana, etc.), pela natureza da violação (tortura, seqüestro, etc.) e pelo reconhecimento internacional da lesão aos direitos humanos como tal. Servem como exemplos as previsões do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), do Pacto de San José da Costa Rica (1969), do Tratado Sobre Violência Contra a Mulher (1995), da Convenção Interamericana Sobre o Tráfico Internacional de Menores, entre outros.

Todavia, no julgamento do IDC 01/PA pelo STJ, no qual foi negado o deslocamento da competência da investigação e julgamento do caso do assassinato da missionária Dorothy Stang da Justiça Estadual para a Federal, o Min. Rel. Arnaldo Esteves Lima afirmou não haver necessidade de definição de quais seriam os crimes que incorreriam em grave violação dos direitos humanos, uma vez que "todo homicídio doloso, independentemente da condição pessoal da vítima e/ou da repercussão do fato no cenário nacional ou internacional, representa grave violação ao maior e mais importante de todos os direitos do ser humano, que é o direito à vida, previsto no art. 4º, nº 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário por força do Decreto nº 678, de 6/11/1992" [04]. Sustentou, outrossim, que o constituinte derivado, ao não os definir, optou por não restringir a alguns crimes os de grave violação aos direitos humanos, devendo esta definição ser extraída do caso concreto.

Já a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de Tratados internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil seja parte diz respeito ao tangenciamento, no âmbito das relações internacionais, dos deveres assumidos pelo Estado brasileiro.

Para o Procurador da República Vladimir Aras [05], a omissão ou demora injustificada na elucidação no crime é um pressuposto implícito à norma em comento, porquanto não haveria razão para o deslocamento se os órgãos estaduais estivessem cumprindo adequadamente seu dever na persecução penal. Essa posição nos parece correta, pois se fosse unicamente para trazer para o âmbito federal essas causas não haveria uma responsabilidade subsidiária da União, e sim uma responsabilidade exclusiva.

Ademais, esse requisito encontra-se pacificado pelo julgamento do IDC 01/PA, no qual consideraram os Ministros ausente um dos requisitos para a incidência do dispositivo em tela, qual seja, a inércia ou incapacidade das autoridades responsáveis de responder ao caso específico, caracterizada pela "incapacidade do estado em cuidar do crime por descaso, desinteresse, ausência de vontade política e a falta de condições pessoais ou materiais, entre outras" [06].

Neste mesmo julgamento, o Min. Relator Arnaldo Esteves Lima aduziu que "tais requisitos – os três – hão de ser cumulativos, o que parece ser de senso comum, pois do contrário haveria indevida, inconstitucional, abusiva invasão de competência estadual por parte da união federal, ferindo o estado de direito e a própria federação, o que certamente ninguém deseja, sabendo-se, outrossim, que o fortalecimento das instituições públicas – todas, em todas as esferas – deve ser a tônica, fiel àquela asserção segundo a qual, figuradamente, ‘nenhuma corrente é mais forte do que o seu elo mais fraco’".

De fato, não fere o pacto federativo o deslocamento da competência de um ente para outro, se presentes os requisitos, já que haverá sempre a possibilidade de não haver esse deslocamento, bastando a atuação de forma competente da Justiça Estadual na investigação e no julgamento do crime.

Além disso, é a União a responsável pela assinatura de Tratados internacionais, de modo que é ela quem vai responder pela apuração dos crimes perante os órgãos internacionais (art. 21, I, Constituição Federal). Por exemplo, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, concluída em São José da Costa Rica em 1969, à qual aderiu o Brasil em 1992, dispõe que a Corte Interamericana de Direitos Humanos pode conhecer dos assuntos relacionados com o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados pactuantes. O Brasil também pode ser responsabilizado perante outros organismos internacionais, pelo que se faz necessário garantir o cumprimento dos Tratados, dada a crescente internacionalização dos direitos humanos.

Assim, não caracteriza intervenção da União nos Estados a busca pelo efetivo cumprimento das obrigações contidas em Tratados internacionais, mormente após terem estes adquirido o status de norma constitucional, valorizando ainda mais o papel da União em demonstrar internacionalmente o cumprimento dos compromissos assumidos. Há um dever internacional de persecução penal a ser cumprido.

A federalização dos crimes contra direitos humanos resulta de grande interesse público na resolução desses casos, pelo que não pode ser considerada afronta ao pacto federativo essa priorização dos interesses nacional e internacional sobre o local. A razão de ser dessa competência subsidiária é ver cumpridas as obrigações constantes em Tratados internacionais, devendo esta finalidade, associada à condição de norma constitucional a que foram elevados os Tratados e Convenções sobre direitos humanos (art. 5º, §3º, CF), prevalecer sobre a atribuição primária da Justiça Estadual.

Impende salientar que nosso ordenamento jurídico comporta hipóteses de intervenção federal que poderiam ser comparadas à federalização instituída pelo art. 109, §5º. Servem de exemplo a intervenção federal para assegurar os direitos da pessoa humana (art. 34, VII, "b", CF), a competência da Polícia Federal para apurar infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional (art. 144, §1º, I, CF), e a hipótese de deslocamento de competência por conexão entre crimes de competência estadual e crimes de competência federal, prevalecendo a competência da Justiça Federal (Enunciado nº 122, STJ).


III. O Princípio do Juiz Natural

Antes de analisarmos a constitucionalidade do §5º do art. 109 quanto ao princípio do juiz natural, impende o analisarmos à luz da Constituição Federal de 1988.

O princípio do juiz natural é uma garantia trazida ao Direito Brasileiro em dois aspectos: a proibição de juízo ou tribunal de exceção (ad hoc), prevista no art. 5º, XXXVII, Constituição Federal, e o respeito absoluto às regras objetivas de determinação de competência, a teor do art. 5º, LIII. Segundo Alexandre de Moraes, "a imparcialidade do Judiciário e a segurança do povo contra o arbítrio estatal encontram no princípio do juiz natural uma de suas garantias indispensáveis" [07]. Vejamos o texto constitucional:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;

LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

Dessarte, o juiz natural deve ser interpretado em sua plenitude, abrangendo seus dois aspectos, pelo que o juiz natural é o órgão do Poder Judiciário cuja competência, previamente estabelecida, derive de fontes constitucionais [08].

A proibição à instituição de juízo ou tribunal de exceção (ad hoc) significa que não pode ser o tribunal criado ex post facto, fora dos quadros do Poder Judiciário, para o julgamento de um determinado caso concreto ou pessoa. Assim, "a jurisdição somente pode ser exercida por pessoa legalmente investida no poder de julgar, como integrante de algum dos órgãos do Poder Judiciário" [09].

Aos juízes do Tribunal ad hoc faltaria a presunção de independência e imparcialidade, ao passo que o juiz natural é previsto abstratamente, em conformidade com o art. 10 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948 [11], que diz:

Artigo X

. Todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Essa imparcialidade do juiz natural é presumida pelas garantias constitucionais concedidas pela Constituição, que são a vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, bem como pelos mecanismos infraconstitucionais de manter a imparcialidade, como o estabelecimento de hipóteses de impedimento e suspeição.

A autoridade competente a que se refere o inciso LIII do art. 5º, CF, é o juiz constitucionalmente competente para processar e julgar. Se tivesse sido deixado para o legislador infraconstitucional, ao invés do constituinte, a fixação da competência jurisdicional, haveria a garantia do juiz legal, e não a do juiz natural. O juiz natural é inafastável por legislação infraconstitucional, uma vez que a distribuição de competência é estabelecida na própria Constituição.

Ressalte-se que a Constituição fixa apenas as competências absolutas (ratione materiae e ratione personae), sendo a competência de foro regida exclusivamente pela lei processual federal, de modo que esta não se impõe como exigência do juiz natural. Essa fixação constitucional das competências garante, outrossim, a imparcialidade do juiz.


iv. A ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DO art. 109, §5º, Constituição Federal, frente ao princípio do juiz natural

Os direitos e garantias fundamentais consagrados no art. 5º da Constituição Federal não são ilimitados. Pelo princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas, esses direitos são limitados pelos demais direitos consagrados na Constituição.

Assim, os direitos fundamentais são relativos, de modo que, havendo conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve buscar harmonizar os bens jurídicos em conflito, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada um [12].

Poder-se-ia dizer que no art. 109, §5º, há um conflito entre o princípio do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII, CF) e os princípios da celeridade do processo (art. 5º, LXXVIII) e da proteção aos direitos humanos (art. 5º, §2º, CF c/c Tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário). Apesar de, como demonstraremos a seguir, não haver violação ao princípio do juiz natural, fazendo uma análise da norma baseada na proporcionalidade e na razoabilidade podemos dizer que a celeridade e a proteção dos direitos humanos, embora de forma restrita, devem prevalecer sobre o juiz natural, porquanto a proteção aos direitos humanos, em especial, tutela o bem jurídico máximo, que é a vida.

Apesar de gerar certa incerteza jurídica esse deslocamento de competência, por só ocorrer se presentes os requisitos, furtando ao acusado a possibilidade de saber previamente por qual juízo será julgado, o IDC do art. 109, §5º não fere o princípio do juiz natural, pois não institui juízo de exceção, não violando a imparcialidade do órgão julgador.

Ora, não é tribunal de exceção porque a justiça federal é parte do Poder Judiciário estabelecido, conforme disposto no art. 92, CF. Do mesmo jeito que não se pode confundir tribunal de exceção com prerrogativa de foro em razão da matéria, não é possível dizer que a competência subsidiária da Justiça Federal em razão da matéria seja uma previsão constitucional de tribunal de exceção.

No julgamento do IDC 01/PA, foi citado acórdão do STF proferido no HC 67.851/GO, que traz a seguinte ementa:

"´´Habeas corpus´´. Júri. Juiz natural. Tribunal de exceção. Desaforamento. Reaforamento. 1. Não é de ser conhecido o ´´habeas corpus´´, no ponto em que se impugna o desaforamento deferido, porque pretensão idêntica já foi repelida por duas vezes pelo supremo tribunal federal. 2. Juiz natural de processo por crimes dolosos contra a vida e o tribunal do júri. Mas o local do julgamento pode variar, conforme as normas processuais, ou seja, conforme ocorra alguma das hipóteses de desaforamento previstas no art.424 do C.P. Penal, que não são incompatíveis com a constituição anterior nem com a atual (de 1988) e também não ensejam a formação de um ´´tribunal de exceção´´. 3. Não se justifica o restabelecimento da competência do foro de origem (´´reaforamento´´), se permanecem as razões que ditaram o desaforamento. ´´H.C.´´ conhecido, em parte, e nessa parte, indeferido" [13]. (sublinhado acrescentado)

Deste acórdão se extrai que, do mesmo modo que o desaforamento previsto no art. 424 do CPP não caracteriza tribunal de exceção, não há que se dizer que o deslocamento de competência o caracteriza, pois o Tribunal do Júri continuará sendo o juiz natural se o crime for de sua competência, como no caso da missionária Dorothy Stang. A mudança da Justiça Estadual para a Federal em nada comprometerá a imparcialidade do Tribunal do Júri, pois, independentemente da esfera em que este seja constituído, estará em conformidade com sua atribuição constitucional (art. 5º, XXXVIII).

Aliás, o contrário também pode acontecer, com a transferência da competência federal para a estadual no julgamento de causas previdenciárias nas localidades onde não houver Vara Federal (art. 109, §3º, CF), e nem por isso fala-se em inconstitucionalidade por violação ao juiz natural.

A Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público), na sua moção de apoio à eficiente atuação do Ministério Público do Pará [14], sustentou que a federalização dos crimes violaria a ampla defesa, pois a mídia poderia provocar o pré-julgamento do caso, o que demonstraria um aparente tribunal de exceção, com um juiz natural comprometido.

Não procede a alegação, pois os juízes, como já dito, têm garantias constitucionais justamente para manter sua imparcialidade. É claro que todos têm suas próprias ideologias e sofrem influência de seu meio, mas cumpre ao juiz procurar ser o mais imparcial possível, até porque tem o acusado presunção de inocência. E se a mídia pode comprometer a imparcialidade de um juiz federal, o mesmo pode acontecer com um juiz estadual. Além disso, a Justiça Federal, assim como a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, certamente serão menos influenciados por questões políticas e econômicas locais do que as autoridades estaduais, possibilitando uma condução do processo mais idônea.

Ademais, o juiz natural "configura hipótese de competência absoluta, inafastável por vontade das partes processuais, revelando a natureza pública do interesse em disputa, somente se admitindo a sua flexibilização por oportunidade de aplicação de norma da mesma estatura, ou seja, de norma ou princípio igualmente constitucionais" [15]. No caso, tem-se no §5º do art. 109 uma norma de afastamento da competência absoluta da Justiça Estadual para os crimes em que haja grave violação de direitos humanos, ou seja, tem-se uma norma constitucional excepcionando uma regra, criando uma competência subsidiária. Para Eugênio Pacelli de Oliveira, não se pode excluir a competência da Justiça Estadual da abrangência do juiz natural, porque, embora seja residual a sua competência por ser definida pela regra da exclusão, trata-se de competência absoluta, isto é, cujo afastamento somente poderá ocorrer por força da aplicação de normas ou princípios constitucionais, quando firmada em razão da matéria (crimes estaduais) [16].

Sobre a autora
Clarissa da Silva Souza

bacharelanda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Clarissa Silva. O princípio do juiz natural e o incidente de deslocamento de competência instituído pela EC nº 45/2004. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 867, 17 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7577. Acesso em: 23 dez. 2024.

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