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A natureza jurídica da obrigação assumida pelo consignatário no contrato estimatório

Agenda 24/11/2005 às 00:00

O novo Código Civil passa a tratar da figura do contrato estimatório, entre os seus arts. 534 a 537. O contrato estimatório ou venda em consignação pode ser conceituado como sendo o contrato em que alguém, o consignante, transfere ao consignatário bens móveis, para que o último os venda, pagando preço de estima; ou devolva os bens findo o contrato, dentro do prazo ajustado (art. 534 do novo Código Civil).

Apesar da utilização da expressão venda em consignação, não se trata de uma regra ou cláusula especial da compra e venda, mas de um novo contrato tipificado pela codificação privada. Desse modo, com a compra e venda, não se confunde, apesar de algumas similaridades.

A grande discussão que surge quanto ao tema refere-se à natureza jurídica da obrigação assumida pela consignatário. Alguns autores entendem que a obrigação assumida pelo mesmo é alternativa, outros que se trata de uma obrigação facultativa.

A obrigação alternativa é espécie do gênero obrigação composta, sendo esta a que se apresenta com mais de um sujeito ativo, ou mais de sujeito passivo, ou mais de uma prestação. A obrigação alternativa ou disjuntiva é, assim, uma obrigação composta objetiva, tendo mais de um conteúdo ou prestação. Normalmente, a obrigação alternativa é identificada pela conjunção ou, que tem natureza disjuntiva, justificando a outra denominação utilizada pela doutrina.

Já a obrigação facultativa não está prevista no Código Civil. De qualquer modo é normalmente tratada pela doutrina. Maria Helena Diniz dá um exemplo didático dessa obrigação in facultate solutionis: "se alguém, por contrato, se obrigar a entregar 50 sacas de café, dispondo que, se lhe convier, poderá substituí-las por R$ 20.000,00, ficando assim com o direito de pagar ao credor coisa diversa do objeto do débito" (Curso de Direito Civil Brasileiro. 2º Volume, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 124).

Vale lembrar que nessa obrigação o credor não pode exigir que o devedor escolha uma ou outra prestação, sendo uma faculdade exclusiva deste. Conseqüência disso, havendo impossibilidade de cumprimento da prestação, sem culpa do devedor, a obrigação se resolve, sem perdas e danos. Mas se houver fato imputável ao devedor, o credor poderá exigir o equivalente da obrigação, mais a indenização cabível.

Não concordamos com o entendimento pelo qual o consignatário assume uma obrigação facultativa. Filiamo-nos, portanto, a Paulo Luiz Netto Lôbo, para quem "o consignatário contrai dívida e obrigação alternativa" (Do contrato estimatório e suas vicissitudes. In Questões Controvertidas no novo Código Civil. Coordenadores: Mário Luiz Delgado e Jones Figueirêdo Alves, São Paulo: Método, 2004, p. 327). Assim também entendem Caio Mário da Silva Pereira e Waldírio Bulgarelli.

Mas a questão é por demais controvertida, entendendo outros tantos autores que a obrigação assumida pelo consignatário é facultativa (Maria Helena Diniz, Sílvio Venosa e Arnaldo Rizzardo). Todos esses posicionamentos são expostos por Sylvio Capanema, que se filia à segunda corrente (Comentários ao Novo Código Civil. Volume VIII. Coordenador: Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 61).

De qualquer forma, cientes da controvérsia, gostaríamos de expor as razões pelas quais filiamo-nos ao primeiro entendimento (a obrigação do consignatário é alternativa).

Prevê o Enunciado n. 32, aprovado na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal que "no contrato estimatório (art. 534), o consignante transfere ao consignatário, temporariamente, o poder de alienação da coisa consignada com opção de pagamento do preço de estima ou sua restituição ao final do prazo ajustado".

Pelo que consta do enunciado e dos arts. 536 e 537 do novo Código Civil, conclui-se que o consignante mantém a condição de proprietário da coisa. [01] Por outro lado, a obrigação do consignatário só pode ser alternativa, justamente diante dessa transmissão temporária do domínio. Tanto isso é verdade que, findo o prazo do contrato, o consignante terá duas opções: cobrar o preço de estima ou ingressar com ação de reintegração de posse para reaver os bens cedidos. A possibilidade de propositura da ação possessória decorre da própria natureza da obrigação assumida e diante do fato de o consignante, ainda não pago o preço, ser o proprietário do bem.

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Se entendermos que a obrigação do consignatário é facultativa, havendo apenas o dever de pagar o preço de estima e uma faculdade quanto à devolução da coisa, o consignante não poderá fazer uso da ação de reintegração de posse.

Mas, muito ao contrário, a possibilidade de reintegração de posse nos casos envolvendo o contrato estimatório vem sendo reconhecida pela jurisprudência, conforme ementa abaixo transcrita:

"POSSESSÓRIA - Reintegração de posse - Veículo entregue a uma revendedora para venda em consignação - Configuração como contrato estimatório - Art. 534 do novo Código Civil - Alienação, entretanto, do bem sem pagar o preço estipulado pela consignante - Desnecessidade de prévia ação de resolução contratual por traduzir possessória contra atividade delitual - Interpretação da função social do contrato - Art. 421 do Código Civil - Indeferimento determinado, examinando-se, com urgência, o pedido de liminar - Recurso provido para esse fim" (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, PROCESSO: 1226974-0, RECURSO: Apelação, ORIGEM: São José dos Campos, JULGADOR: 10ª Câmara de Férias de Janeiro de 2004, JULGAMENTO: 10/02/2004, RELATOR: Enio Zuliani, REVISOR: Simões de Vergueiro, DECISÃO: Deram Provimento, VU).

Interessante notar que o julgado até dispensa o ingresso de ação visando a resolução do negócio, utilizando-se para tanto da função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil. Assim, a ação de reintegração de posse pode ser proposta imediatamente.

Além disso, podemos concluir que a obrigação assumida pelo consignatário é alternativa traçando um paralelo entre os arts. 253 e 535 do novo Código Civil.

De acordo com o art. 253 do nCC, na obrigação alternativa, se uma das duas prestações não puder ser objeto de obrigação ou se uma delas se tornar inexeqüível, subsistirá o débito quanto à outra. Esse dispositivo prevê a redução do objeto obrigacional, ou seja, a conversão da obrigação composta objetiva alternativa em obrigação simples (aquela com apenas uma prestação).

Assim sendo, se uma das prestações não puder ser cumprida, a obrigação se concentra na restante. Quanto ao contrato estimatório, há regra semelhante, no art. 535 do nCC, pelo qual "o consignatário não se exonera da obrigação de pagar o preço, se a restituição da coisa, em sua integridade, se tornar impossível, ainda que por fato a ele não imputável". Diante dessa equivalência entre os comandos legais entendemos que obrigação assumida pelo consignatário é alternativa e não facultativa.

Expostas as nossa razões deixamos claro que a questão é controvertida e será muito debatida nos próximos anos.


Nota

01 "Art. 536. A coisa consignada não pode ser objeto de penhora ou seqüestro pelos credores do consignatário, enquanto não pago integralmente o preço".

"Art. 537. O consignante não pode dispor da coisa antes de lhe ser restituída ou de lhe ser comunicada a restituição".

Sobre o autor
Flávio Tartuce

advogado em São Paulo (SP),doutorando em Direito Civil pela USP, mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP, professor do Curso FMB, coordenador e professor dos cursos de pós-graduação da Escola Paulista de Direito (SP).Doutorando em direito civil pela USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TARTUCE, Flávio. A natureza jurídica da obrigação assumida pelo consignatário no contrato estimatório. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 874, 24 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7592. Acesso em: 2 nov. 2024.

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