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Pressupostos para uma análise crítica do sistema punitivo

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Agenda 22/11/2005 às 00:00

3. CONSTRUÇÃO histórica DA PUNIÇÃO

            3.1 O Brasil Colônia

            O objetivo deste capítulo é oferecer alguns apontamentos históricos que julgamos necessários para que se proceda a uma análise crítica do sistema punitivo brasileiro. Evidente que não se pretende aprofundar na análise da formação histórica e sócio-econômica brasileira, pois, além de não possuirmos suporte teórico sobre o tema, foge dos objetivos deste trabalho.

            Porém, é essencial que vislumbremos, ainda que de maneira superficial, os caminhos engendrados pela nossa formação social e que propiciaram a construção de um senso comum punitivo historicamente determinado, como veremos. Ter-se-á sempre em mente o característico da contradição como guia do desenvolvimento social brasileiro, que forjou novas manifestações sociais frente aos imperativos históricos colocados pela própria dinâmica das lutas sociais.

            O modo de produção capitalista pode ser considerado pelas suas forças produtivas e relações de produção daí derivadas, como categorias abstratas que nos permitem reconhecer, aqui e ali, as suas manifestações comuns como próprias de um sistema econômico dominante.

            Este caráter abstrato, no entanto, presta-se apenas para fins de formação do conhecimento sobre o modo de produção capitalista. Em um primeiro momento, a abstração integra-se como parte do processo de formação do conhecimento. Posteriormente, é necessário voltar-se para a base material das relações sociais, para que aquelas categorias abstratas qualifiquem-se pelo real e adquiram uma natureza concreta, determinando uma configuração específica do objeto.

            Dessa maneira, o modo de produção capitalista não se manifesta de uma única forma, antes se constrói de maneira específica em cada formação social, mas, sempre havendo uma ligação estrutural que possibilita uma consideração total deste modo de produção das condições materiais de existência do homem, a única perspectiva possível para sua análise, ou seja, a perspectiva que permite o entendimento de que o desenvolvimento dos atuais países industrializados deu-se na condição do subdesenvolvimento de outros.

            Isto é especialmente fecundo quando se conclui que, historicamente, um dos fatores que possibilitou o desenvolvimento da grande indústria e do mercado financeiro inglês foi o ouro explorado no Brasil por Portugal, e que era transferido para a Inglaterra como parte do acordo comercial luso-britânico, o tratado de Methuem, conformador de nossa condição de colônia mercantilista, próprio de toda a formação econômica da América Latina. Celso Furtado11 comenta que:

            Numa época dominada pelo mais estrito mercantilismo e em que era particularmente difícil desenvolver um comércio de manufaturas, a Inglaterra encontrou na economia luso-brasileira um mercado em rápida expansão e praticamente unilateral. Suas exportações eram saldadas em ouro, o que adjucava à economia inglesa uma excepcional flexibilidade para operar no mercado europeu. Encontrou-se a Inglaterra, assim, pela primeira vez, em condições de saldar o seu comércio de materiais de construção e outras matérias-primas, que recebia do norte da Europa, indiretamente com manufaturas. Dessa forma, a economia inglesa adquiriu maior flexibilidade e tendeu a concentrar suas inversões no setor manufatureiro, que era o mais indicado para uma rápida evolução tecnológica. Por outro lado, recebendo a maior parte do ouro que então se produzia no mundo, os bancos ingleses reforçaram mais e mais sua posição, operando-se a transferência do centro financeiro da Europa de Amsterdã para Londres. Segundo fontes inglesas, as entradas de ouro brasileiro em Londres chegaram a alcançar, em certa época, cinqüenta mil libras por semana, permitindo uma substancial acumulação de reservas metálicas, sem as quais a Grã-Bretanha dificilmente poderia haver atravessado as guerras napoleônicas.

            Assim, a formação colonial brasileira deve ser contextualizada, inserindo-a como uma das peças do então embrionário sistema capitalista. Esta totalidade imprimida à análise não pode deixar de concluir pela dependência de nosso desenvolvimento econômico, sempre atrelado a interesses externos. Porém, para que isto ocorresse, foi necessária uma adequação do colonizador português ao novo território, de maneira a possibilitar a criação de mecanismos que permitissem esta inserção econômica nos moldes em que foi construída a empresa colonial brasileira.

            O processo de colonização aqui efetivado foi de índole essencialmente exploratória, e os mecanismos sociais que sustentaram a tarefa colonizadora desenvolveram até as últimas consequências este caráter exploratório, pois, do contrário, a colônia seria praticamente inviável. Será a partir da necessidade de estruturar mecanismos sociais fortes o suficiente para propiciar uma colonização baseada na exploração que se erguerá o sistema punitivo brasileiro.

            Na verdade, neste momento, fica deficiente a própria expressão "sistema punitivo", na medida em que o sentido de sua atuação não era sistêmica, enquanto conjunto articulado de instituições cuja atuação era justificada e legitimada por um ordenamento jurídico-penal único.

            Embora houvesse a tentativa da metrópole de unificar sua atuação punitiva, a grande extensão territorial propiciava que cada local adequasse às suas necessidades as orientações que vinham de Portugal. Eugenio Raul Zaffaroni e Nilo Batista12 sobre a influência das legislações portuguesas na colônia informam-nos que:

            Diversamente das (Ordenações) Afonsinas, que não existiram para o Brasil, e das (Ordenações) Manuelinas, que não passaram de referência burocrática, casual e distante em face das práticas penais concretas (...), as Ordenações Filipinas constituíram o eixo da programação criminalizante de nossa etapa colonial tardia, sem embargo da subsistência paralela do direito penal doméstico que o escravismo necessariamente implica.(negrito nosso)

            Considerado na sua totalidade, o sistema punitivo brasileiro traz a marca da colonização, do território largado à própria sorte que, por caminhos próprios construiu um sistema punitivo específico para estas mesmas suas condições, apto a responder ao que necessitavam, seja pela não punição daqueles que de alguma forma poderiam contribuir com a tarefa colonizadora, seja pela punição daqueles considerados como a mácula do sistema.

            Sobre a utilização da punição conforme as circunstâncias, Luis Francisco Carvalho Filho13 destaca que:

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            Os relatos da administração Tomé de Souza indicam que ele exerceu o poder de punir conforme as conveniências do momento. Ainda no ano da fundação de Salvador, morto um colono por um índio e exigida a entrega do "criminoso", este, por ordem do governador-geral, foi amarrado à boca de um canhão e atirado "pelos ares, desfeito em pedaços". O simbolismo do ato seria captado por Robert Southey:8 "Mais humano para o padecente, mais terrível para os espectadores, não há suplício imaginável. Encheu de terror os Tupinambás e foi útil lição aos colonos [...]". Porém, para dois franceses presos no sul do país, em 1550, por contrabando de pau brasil – atividade que a Coroa considerava intolerável –, o futuro seria diferente. Em carta ao rei, Tomé de Souza se justificaria depois: "Não os mandei enforcar porque tenho necessidade de gente que não me custe dinheiro", ressaltando, no entanto, que "daqui por diante se fará o que Vossa Alteza mandar.

            É interessante perceber que a manipulação de punições caso a caso, sem a centralização de um ordenamento penal demonstra o sentido de construção de uma cultura punitiva própria que será desenvolvida durante toda nossa história, e não será estranho concluir que o potencial ideológico daí derivado fará com que a tortura seja até hoje prática comum nos porões das delegacias. É claro que a prática da tortura está ligada à previsão legal da confissão como prova em nosso sistem processual penal. Mas, a despeito desta previsão legal, a tortura está intrinsicamente relacionada à noção de punição como prática do poder econômico, político e cultural. Assim, embora a justificação da punição esteja ligada à prática do poder econômico, político e cultural, sua manifestação concreta não se deu nos termos que do que se passava no continente europeu, que por essa época considerava a punição como vingança do soberano, pois a conduta que se concluía por crime era, em última instância, uma afronta ao soberano.

            A justifica para a punição era no sentido de manter condições úteis para a exploração da empresa colonial, seja no sentido de não punir a mão-de-obra necessária, seja no sentido de punir com toda sua força os sujeitos representativos da distância cultural com a metrópole. O sistema punitivo colonial, ao atrelar a punição ao fator econômico, construiu-se punindo eficazmente o escravo, o índio e o peão, as máculas do sistema, perfeitamente substituíveis como força produtiva.

            Das sesmarias produtoras de cana-de-açúcar emergiu uma autonomia punitiva própria dos segmentos sociais ali dominantes. Talvez a maior expressão disto seja o pelourinho das senzalas, onde eram açoitados os escravos que de alguma forma infligiam as regras de conduta social do engenho. A unidade produtiva da colônia, o engenho, foi o ambiente onde era exercida a punição.

            E, na esteira da delimitação das contradições produzidas por tal contexto, o Quilombo de Palmares foi a maior expressão da resistência a esta cultura punitiva e à exploração econômica, em contraposição a um entendimento histórico corrente segundo o qual haviam escravos que interagiam bem com a casa grande, adquirindo funções de confiança que implicavam atitudes mais condolentes do senhor de engenho para com eles. Este entendimento, porém, não pode pautar a análise do que almejava o negro quanto ao engenho.

            Evidente que não se deve procurar o sentido moderno da resistência empreendida pelos trabalhadores urbanos no século XIX e XX na reação do escravo ao senhor de engenho. Porém, a constituição de um núcleo de resistência do porte do Quilombo de Palmares demonstra que o estatuto jurídico da escravidão não encontrava uma base social sólida a se manter sem contestação alguma, o que implicava em seu questionamento absoluto, ao qual se respondia com uma violência sem limites.

            A punição na colônia era decorrência da necessidade de fincar pressupostos ideológicos úteis para a dominação do senhor de engenho, representante da coroa portuguesa. Pressupostos ideológicos estes intrinsecamente ligados à uma suposta inferioridade do negro frente ao homem europeu.

            Enquanto propriedade do senhor de engenho nenhum espanto causava toda sorte de flagelos pelos quais poderiam passar escravos transgressores. Mas a noção de punição daí derivada justificará penas cruéis a serem aplicadas conforme as circunstâncias, em consonância com a inferioridade jurídica – do escravo, enquanto propriedade – num primeiro momento, ou a inferioridade biológica, como veremos mais adiante, pela adoção do senso comum positivista lombrosiano como justificativa para a punição.

            Enfim, a punição na colônia demonstra a falta de legitimidade da estrutura jurídica que, ao desenvolver-se no calço da necessidade da exploração econômica das novas terras, aliado com a falta de mão obra – que propiciou a escravidão – interligados, estes dois elementos, por resquícios de uma cultura européia sem predicados próprios para se desenvolverem, não encontrou respaldo na realidade social, e a violência adquiriu a função específica de conter manifestações contrárias à ordem exploratória, da qual a estrutura jurídica é apenas um reflexo. No ato de punição do escravo estava concentrada toda a carga ideológica construída pelos portugueses encarregados da tarefa colonizadora. E o engenho foi o microcosmo desta empreitada.

            3.2 Do Brasil Império à Independência

            Fase Imperial

            Em 1808, a família imperial transfere-se para o Brasil, sob os riscos de Portugal ser invadido por Napoleão Bonaparte. No mesmo ano, os portos nacionais são abertos ao comércio mundial, sobre pressão de ingleses, franceses e holandeses.

            Eram as marcas do conflito que então começava a se instaurar entre a economia monopolista mercantil e as economias liberais. Caio Prado Júnior14, comentando o anacronismo histórico de Portugal e Espanha, afirma:

            OS DOMÍNIOS (sic) coloniais ibéricos, isto é, das coroas espanholas e portuguesas representam, pode-se dizer que desde o séc. XVII, mas sobretudo no seguinte, um anacronismo. As duas decadentes monarquias ainda conservavam a maior e melhor parte de seus imensos domínios (...). Situação anômala, porque não correspondia mais ao equilíbrio mundial de forças econômicas e políticas. Depois daquele passado já remoto do apogeu luso-espanhol, outras potências tinham vindo ocupar o primeiro lugar no plano internacional: os Países-Baixos, a Inglaterra, a França. No entanto, os domínios ibéricos ainda formavam os maiores impérios coloniais. Corpos imensos de cabeças pequenas...

            De um lado, os contornos próprios do absolutismo, concentrando no soberano todo o poder político. De outro, a burguesia, ascendendo politicamente com as Revoluções Inglesa, Francesa e Estadunidense, e pretendendo expandir-se por todo o planeta. Quem havia financiado as primeiras construções de Estados Nacionais no continente europeu, agora clamava para si o poder de Estado.

            Se no período colonial a indústria açucareira foi o principal motor da empresa colonial, já no século XVIII ela começa a falir em virtude, dentre outros fatores, da produção açucareira das Antilhas, financiada especialmente por franceses e holandeses.

            Como alternativa, desloca-se o eixo econômico do nordeste para o sudeste, com a exploração do café, especialmente em São Paulo e Minas Gerais. Neste último, o ouro surge como a mercadoria que Portugal almejava e até então não havia encontrado, e representou uma renovação dos anseios portugueses com a colônia. A partir desta tomada de fôlego com a empresa colonial, Portugal passa a tentar com mais pulso firme impor seu ordenamento jurídico-penal.

            De colônia mercantilista o Brasil passa a centro do império. Império este em absoluta decadência, mas que imprimirá às classes agrárias dominantes um sentimento de autonomia política até então nunca visto, confirmando um poder econômico que mais tarde propiciará a ruptura com Portugal, mas que, no início possibilitou um acordo político tácito entre as elites rurais e a coroa portuguesa.

            Assim, a centralização política na pessoa do imperador foi a marca da passagem da coroa portuguesa por terras brasileiras, ao menos nos centros urbanos. O que influiu decididamente na questão criminal. A partir de 1808 começam a serem estruturadas as primeiras instituições com funções punitivas.

            Constituem-se, desta maneira, duas instâncias punitivas. A primeira, herança dos tempos coloniais, na zona rural, em que predominava o poder do coronel na determinação do que poderia ser punido ou não. A constituição de um estado forte, necessário para estruturar-se condições de domínio para a coroa portuguesa, não impediu que nas áreas em que o coronel detinha todo o poder, resistissem raízes punitivas coloniais

            A segunda instância, sob a mão direta do estado imperial, construída nas cidades, a partir das influências de uma população urbana cada vez mais diversificada. Sobre isto Carlos Eduardo Moreira de Araújo15 comenta que:

            (...) o espaço ocupado pelo Estado na relação senhor – escravo foi uma ação deliberada de conquista do poder público no estabelecimento da ordem. Essa ação gerou resistências tanto dos senhores quanto dos escravos. Não foi uma simples ausência senhorial que fez com que o Estado ocupasse a fiscalização dos cativos nas ruas do Rio de do Janeiro, e sim as mudanças ocorridas no Estado português com o estabelecimento da administração de Pombal (1750 - 1777). O controle sobre as colônias se intensificou na tentativa de recuperar a economia do Império. Neste processo, entre outras medidas, o Estado optou por aumentar o controle sobre os escravos urbanos tomando para si a incumbência de castigá-los cobrando por este serviço.

            Ademais, ainda que começassem a influir ideais liberais, manifestados na adoção legislativa, por exemplo, do princípio da reserva legal, na Constituição do Império de 1824 e no Código Criminal do Império do Brasil de 1830, a maneira própria como começou a ser estruturado nosso sistema punitivo caminhou paripassu com o desenvolvimento de uma cultura punitiva privada, que pulverizava o poder punitivo nas mãos de autoridades locais16:

            O Código do Processo Criminal de Primeira Instância estruturou um sistema penal que concretamente concedia a administração do poder punitivo direta ou indiretamente às autoridades locais, dos juízes de paz ao júri, passando pelos inspetores de quarteirão, pelos promotores públicos e pelos juízes municipais. A criação da Guarda nacional, em 18 de agosto de 1831, obedeceu também ao modelo descentralizador, restando nas mãos dos grandes proprietários locais seu comando.

            E, ainda que tenha havido a centralização com a reforma do Código de Processo Criminal em 1841, esta não veio em absoluto para retirar o poder dos proprietários rurais, antes para constituir uma relação orgânica destes com o poder imperial.

            Assim, por mais que se fosse aos poucos crescendo o sentimento da emancipação política, o domínio dos latifundiários permitirá que por muito tempo os interesses da coroa sejam alinhados com os da economia agrária, pois para a economia agrária não importava se comerciavam apenas com Portugal ou com outras nações. E, na medida em que a escravidão representava a espinha dorsal deste modo de produção, a sua defesa pela monarquia portuguesa trouxe para si o apoio da elite rural.

            O que se mostra condizente com a manutenção do poder punitivo nas mãos dos proprietários rurais, pois "longe de terem sido destruídos pelo governo central, os chefes locais teriam se aliado a ele, com benefícios para os dois lados: o governo ganhava sustentação nas bases rurais, os senhores territoriais legitimavam seu domínio político em nível local". (Hamilton Mattos Monteiro, apud Zaffaroni e Batista, 2003, p.427)

            Mas também começavam a surgir as primeiras previsões normativas a respeito de condutas que pudessem importar de alguma maneira no questionamento do Império. O ambiente das cidades passou a sofrer a influência de ideologias trazidas da Europa pelos filhos da elite econômica que para lá iam estudar.

            Eram previsões de punição contra atitudes que indicassem anseios liberais e que tinham uma clara função política, de afastar destas terras idéias que de alguma forma pudessem representar ameaça para a coroa portuguesa. Zaffaroni e Batista17 destacam que:

            As razões de algumas leis penais deste período são facilmente identificáveis. Conhecido o fato de que lojas maçônicas discutiam e veiculavam idéias liberais, explica-se o alvará de D. João VI, de 30 de março de 1818, proibindo as sociedades secretas e tornando inafiançável o delito de delas participar.

            Começava a se estruturar no Brasil a função política direta do sistema punitivo que marcará posteriormente a perseguição de líderes de movimentos anarquistas e comunistas em fins do século XIX e início do XX.

            O confronto com movimentos insurrecionais e com a pressão internacional para a aderência ao liberalismo que se estruturava rapidamente trará conseqüências cruciais para o sistema punitivo brasileiro.

            Durante o período imperial o Brasil conheceu revoltas populares de norte a sul. Para citar apenas duas, pois expressam, ambas, os dois sentido destas revoltas, a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul, e a Revolta da Cabanagem, no Pará.

            A primeira foi levada à cabo pelas elites locais, descontentes com a centralização político-fiscal advindas do núcleo imperial. Movimentos deste tipo foram percebidos em vários locais, e representavam a ruína da empresa mercantil, que não tardaria por vir.

            A segunda, de cunho eminentemente popular, mesmo que não consciente de que sua luta travava-se contra toda a ordem de fatores que infligiam condições de vida degradantes, cujo início atrela-se ao passado colonial de exploração da mão-de-obra escrava e indígena, para a manutenção de uma estrutura econômico-social voltada para a sustentação do falido império português, demonstrou às elites o risco que corriam.

            Em contrapartida, radicaliza-se a ofensiva destes movimentos populares, fazendo destacar mais um elemento histórico para a constituição de nosso sistema punitivo, a sua militarização, pelo qual destaca-se as forças armadas para inibir manifestações populares identificadas diretamente com a criminalidade.

            Na medida em que o senso de criminalidade era necessariamente ligado à escravidão, a tomada de consciência política desguarnecida de uma base de apoio forte o suficiente para alastrar-se, permite que sejam identificados como caso de polícia, aos quais não resta outra alternativa senão o absoluto massacre.

            A Proclamação da República – O Primeiro Golpe Militar

            Com a guerra do Paraguai, os militares adquirem prestígio e alavancam o processo de derrocada do regime imperial. Veio a proclamação da República a 15 de novembro de 1889. O Brasil adquire autonomia política, sem necessariamente corresponder à autonomia econômica. De imediato, nossa história republicana inicia-se sob ditadura militar. Primeiro com o Marechal Floriano Peixoto, o marechal de ferro.

            Antes mesmo de proclamar-se a República, já começavam a se estruturar movimentos populares identificados com seus correlatos europeus, influenciados claramente com o anarquismo. Decorrência direta da leva de imigrantes europeus que para o Brasil começaram a se transferir em fins do século XIX e início do século XX. Uma indústria cada vez mais crescente necessitava de farta mão-de-obra, constituindo-se as primeiras aglomerações urbanas aptas a produzirem um movimento sindical forte.

            Boris Koval18 destaca que:

            Na história do movimento operário do Brasil e outros países latino-americanos um lugar especial ocupa o período em que as posições dominantes pertenciam à corrente anarco-sindicalista. O anarco-sindicalismo floresceu sobretudo nos primeiros 20 anos do século XX. (...). A principal arma dos operários – na opinião dos anarco-sindicalistas – deveria ser a greve, a "ação direta" transformando-se em revolta armada.

            Tal ação direta teve uma resposta clara do sistema punitivo brasileiro, enquadrando seus líderes como criminosos, contra a ordem e o progresso da então nascente República.

            A influência de doutrinas européias estritamente derivadas do positivismo lombrosiano trará para o Brasil – já no início da República – uma máquina estatal que desenvolverá ao máximo as tendências pretensamente científicas da identificação criminal por traços biológicos, transmutando-se consciência política em patologia, transtorno biológico-social.

            Ademais, se em 1888 a escravidão foi abolida, suas implicações estender-se-ão no tempo, oferecendo para esta abordagem positivista do crime um substrato social propício para operar-se a reprodução social da desigualdade, pois, será acrescido à correlação entre crime e patologias, o elemento racial.

            O positivismo adotado pelo agora mais bem estruturado sistema punitivo brasileiro relacionará intrinsecamente os seguintes elementos: a escravidão, a miséria, a consciência política e a militarização. Com a interligação de todos estes elementos pelo positivismo, estarão prontas as bases sobre as quais assentar-se-á o sistema punitivo brasileiro.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, André Luiz Corrêa. Pressupostos para uma análise crítica do sistema punitivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 872, 22 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7612. Acesso em: 25 dez. 2024.

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