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Pressupostos para uma análise crítica do sistema punitivo

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Agenda 22/11/2005 às 00:00

4. a questão criminológica

            Neste capítulo procederemos a uma breve retomada histórica das principais teorias criminológicas desenvolvidas desde as primeiras incursões que tentaram imprimir um caráter propriamente científico, ainda que, inicialmente, o tenha sido apenas quanto ao método, com um certo controle sobre a amostra de indivíduos da qual se extrairam conclusões, estas nem tanto científicas, como as do positivismo criminológico.

            Tem-se como referência a obra "Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal", de Alessandro Baratta, onde este autor, na primeira parte, identifica e delimita as várias teorias criminológicas desenvolvidas, partindo da Escola Clássica do Direito Penal e do Positivismo Criminológico, que estabeleceram as bases ideológicas sobre as quais se ergueu o sistema punitivo de diversos países, inclusive o Brasil. Passando por teorias como a psicanalítica, cuja origem remonta a Sigmund Freid, a estrutural-funcionalista de Émile Durkheim e Robert Merton, o autor as identifica como uma negação a cada um dos princípios que fundamentam a ideologia da Defesa Social, programa político para a área penal nascido de Escola Clássica do Direito Penal e do Positivismo Criminológico.

            4.1 O Debate Criminológico

            A criminologia sempre propiciou debates acerca de seu caráter científico, devido à suposta precariedade quanto às delimitações do objeto e do método a ser utilizado pelos seus pesquisadores. Questão infrutífera na verdade já que, sempre, qualquer contribuição nova representará novas possibilidades para o aprofundamento do entendimento de como se opera o processo de criminalização, seja em sua perspectiva macro ou microssociológica.

            Mas, durante muito tempo, questionou-se a validade da criminologia como ciência, sob o principal argumento de que, embora possam ser construídas as mais diversas perspectivas para o fenômeno do crime, psiquiátrica, psicológica, antropológica, cultural, etc, todas elas esbarram na delimitação imposta pelo Direito Penal, que define o que será passível de tornar-se crime.

            Diante disto, restaria à criminologia ater-se àquelas condutas que legalmente, e apenas legalmente, podem ser consideradas crimes. Além do que, a tipificação penal guia-se exclusivamente por critérios estritamente políticos, pois a tarefa de tipificar condutas é função do Poder Legislativo, que age guiado por interesses políticos, retirando-lhe qualquer possibilidade de se alcançar um status científico. O que, inevitavelmente, minimizaria o âmbito de atuação da criminologia, pois é certo que a sociedade, em toda sua complexidade, apresenta muito mais manifestações sociais aptas a serem captadas como crime, e entendidas no que possibilitam de reprodução social da desigualdade, do que pretende o Direito Penal.

            Os questionamentos daí derivados seriam cruciais. Como alçar a criminologia ao status de ciência, se seu objeto é derivado de uma abstração lógico-formal criada por critérios eminentemente políticos?

            Isto, porém, é falso. E vai de encontro à própria busca de superar os limites impostos pela estrutura jurídica. Pois, se o Direito Penal impõe à criminologia restrições que não lhe permitem desenvolver-se para além dos marcos regulatórios deste próprio Direito Penal, é essencial que esta mesma criminologia quebre suas amarras com a dogmática penal e demonstre que até mesmo este atrelamento ao que legalmente, e apenas legalmente, pode ser considerado crime é derivado da função ideológica exercida pelo Direito Penal, no sentido de não permitir às ciências tentar descobrir as causas do fenômeno do crime para além do que ele próprio preza como seu objeto.

            A ciência do dever-ser não pode prestar-se a compreender a sociedade com vistas à sua própria superação. Compreender no sentido científico que aqui se adota, de qualificar as ciências não apenas pela precisão de seus métodos para compreender o mundo, mas, antes de tudo – absolutamente exigível das ciências sociais – superar a realidade mesma de onde é produzida, procurando sempre não se ater ao que a realidade permite, mas ultrapassá-la para buscar o impossível frente ao que o status quo estabelece.

            De outro lado, a criminologia sempre se viu tentada, e sempre assim procedeu, a compartimentar os saberes elaborados por outras ciências quando aplicados ao seu objeto, e considerar que estes saberes produzem conhecimentos que, pelas peculiaridades próprias, não permitiriam totalizar o saber criminológico, antes desencadeariam visões específicas que não seriam passíveis de conciliação para o entendimento do crime, como se o saber produzido por um desqualificasse o saber produzido pelo outro.

            Sem entrar no mérito de cada saber aplicado à compreensão do crime, esta confusão e repulsa tornou-se também falsa e prejudicial para o próprio desenvolvimento da criminologia. Na verdade, pode-se dizer que a criminologia é uma ciência privilegiada exatamente por exigir a atuação de ciências específicas para a sua construção.

            Quer dizer, esta nova ciência, na medida em que se constitui dos trabalhos de várias outras ciências, traz a possibilidade da síntese tão necessária para a compreensão da realidade, pois articula saberes em perspectivas microssociológias e macrossociológicas, essencial para não se cair no erro de considerar a realidade como determinada por apenas uma variável. A tarefa da criminologia é especialmente profícua na medida em que traz a possibilidade de considerar seu objeto na totalidade própria que todos os objetos dos quais se pretende extrair conclusões científicas devem ser considerados.

            E nisto ela torna-se, por excelência, dialética, pois das contradições próprias a toda teoria científica a criminologia permite que se articule uma tentativa de síntese.

            4.2 Gênese do Pensamento Criminológico Moderno

            Historicamente, o Direito Penal fruto do movimento iluminista, imprimindo a marca da lei na definição do que seria crime, numa perspectiva defensiva em relação aos arbítrios do monarca absolutista, possibilitou, por um lado, o nascimento das garantias individuais, mas, por outro, estruturou as bases de fundamentação do que seja o "crime" a partir do que a lei estabelece como tal, individualizando-se o sujeito nas amarras do juridicamente indesejável.

            Foi a chamada Escola Liberal Clássica do Direito Penal, que buscou fundamentar filosoficamente uma concepção jurídica do delito, da responsabilidade penal e da pena. Em 1.764 Cesare Beccaria publica seu famoso "Dos delitos e da pena", e, em 1.859 Francesco Carrara lança o "Programa do Curso de Direito Criminal". Estas duas obras podem ser consideradas os pilares da moderna teoria jurídica do crime. A primeira, precipuamente, estabelece as bases filosóficas desta concepção jurídica do crime e, nas palavras de Alessandro Baratta19:

            A consequência resultante para a história da ciência penal, não só italiana mas européia, é a formulação pragmática dos pressupostos para uma teoria jurídica do delito e da pena, assim, como do processo, no quadro de uma concepção liberal do estado de direito, baseada no princípio utilitarista da maior felicidade para o amiro númeiro, e sobre as idéias do contrato social e da divisão de poderes.

            Planta-se, assim, o primado da legalidade jurídico-penal. No mesmo sentido, mas com a singularidade do soerguimento das bases lógicas sobre as quais se construiu esta legalidade jurídico-penal, está a obra de Carrara. Sobre isto afirmou Baratta20:

            Toda a elaboração da filosofia do direito penal italiano do iluminismo, nas diversas expressões que nela tomaram corpo, dos princípios iluminstas, racionalistas e jusnaturalistas, (...), encontra uma síntese logicamente harmônica na clássica construção de Francesco Carrara (...). Mas a importância histórica da obra grande mestre de Pisa não reside tanto em haver realizado e recolhido a tradição precedente da filosofia do direito penal, quanto melhor, em haver posto a base lógica para uma construção jurídica coerente do sistema penal.

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            Essencialmente, a Escola Liberal Clássica do direito penal pautava as considerações sobre o crime pela sua existência apenas como ente jurídico, ou seja, isolado da conduta que lhe originou, para apresentar-se apenas pela sua estruturação jurídica, cuja única vinculação com o mundo exterior é a sua ligação a um ato de livre vontade de um sujeito. O crime, dessa perspectiva, é o resultado da mais completa abstração, própria de uma filosofia de cunho idealista e metafísico.

            Em 1.876 Cesare Lombroso publica "O Homem Delinquente", propondo novos caminhos para a compreensão do crime, com uma mudança crucial de objeto. É o positivismo criminológico, que deixa a compreensão abstrata e metafísica e, então, passa a focar o criminoso, amparado pelo arcabouço técnico oferecido pelas ciências naturais, pelo qual se pretendia extrair do comportamento dos criminosos leis gerais que poderiam explicar a razão de alguém praticar uma conduta que a lei penal considera como crime.

            O paradigma iluminista estruturou uma noção de crime estática, prevista apenas na lei penal, sem ligação alguma com a realidade, procurando encontrar na conduta os elementos jurídicos que lhe permitiriam justificar a pena. Nada mais além disto. Com os estudos de Lombroso muda-se o foco, e deixa-se de lado a lei penal para proceder-se ao estudo dos sujeitos que haviam sido alcançados pelo sistema penal. Utilizando-se dos resultados do processo de criminalização – os prisioneiros – tenta-se justificar sua condição por traços biológicos que permitiriam constatar uma natureza criminosa, segundo métodos pretensamente científicos.

            Apesar de ter representado um avanço em relação à escola clássica do direito penal, pois o positivismo criminológico tenta trazer a discussão para o terreno do que é diretamente perceptível, este paradigma peca pelo determinismo biológico que considera o crime como uma realidade ontologicamente determinada. Nas palavras de Nilo Batista21:

            A essa ‘falha política’ do positivismo (...) somam-se outras, que colocam em cheque o valor de suas premissas, seus métodos e conclusões. Simplificadamente, resumiremos essas falhas em: a) supor que na transcrição da objetividade cognoscível não se imprime a experiência do sujeito cognoscente; b) reduzir a objetividade cognoscível ao que nela for empírica e sensivelmente demonstrável; c) ter, portanto, na metodologia o centro e o limite inexorável de sua atividade científica; d) conceber de forma mecanicista os fatos sociais, produzindo explicações com base em relações causais.

            Destas duas concepções teóricas – a escola clássica do direito penal e o positivismo criminológico – estruturou-se, como síntese para a fundamentação política do sistema punitivo, a ideologia da defesa social. Segundo Alessandro Baratta22:

            (...) tanto a Escola Clássica quanto as escolas positivistas realizam um modelo de ciência penal integrada, ou seja, um modelo no qual ciência jurídica e concepção geral do homem e da sociedade estão estritamente ligadas. Ainda que suas respectivas concepções do homem e da sociedade sejam profundamente diferentes, em ambos os casos nos encontramos, salvo exceções, em presença da afirmação de uma ideologia da defesa social, como nós teórico e político fundamental do sistema científico.

            4.3 A Ideologia da Defesa Social

            Primeiramente, antes de comentarmos em que se baseia a ideologia da defesa social, cabe delimitar o sentido de ideologia aqui utilizado. Pois bem, a diversidade dos autores considera o termo ideologia por dois sentidos, um positivo e um negativo. Primeiro, num sentido positivo, como sendo um conjunto articulado de pensamentos que se constrói em torno de um campo de conhecimento e que propicia um programa de ação para aplicação dos resultados daí derivados.

            Este conceito se diz positivo em contraposição ao conceito de ideologia definido a partir das obras de Karl Marx, cujo conteúdo denota um sentido negativo, porquanto considera ideologia como sendo uma falsa consciência que se constrói para deturpar a realidade social23. Assim, ideologia seria o conjunto, também articulado, de construções de pensamento que se apresentam como gerais ao todo social, mas que não encontram correspondência na realidade concreta da dinâmica das relações sociais.

            As ideologias são decorrentes das contradições inevitáveis da sociedade, e possuem a função de legitimar uma determinada maneira de agir que mantem esta contradição imutável. A ideologia da defesa social24 surge, então, como o programa político burguês para o campo punitivo, alicerçado na racionalização do processo de determinação do caráter criminoso de uma conduta. Esta racionalização funda-se, precipuamente, nos seguintes pressupostos: primeiro, o crime é uma realidade ontológica, que existe em si mesma; segundo pressuposto, esta realidade ontológica expressa-se por caracteres biológicos, que direcionam o sujeito inevitavelmente; terceiro pressuposto, a estrutura do crime é estritamente jurídica, e sua identificação é o resultado de uma lógica abstrata e formal.

            A correlação entre estes três pressupostos é a base da qual erguer-se-á o conjunto de princípios que fundamentam a ideologia da defesa social, quais sejam: o princípio da legitimidade, o princípio do bem e do mal, o princípio da culpabilidade, o princípio da finalidade ou da prevenção, o princípio da igualdade.

            Prosseguiremos com o panorama histórico das teorias criminológicas posteriores ao positivismo e, ao mesmo tempo, mostraremos o contraponto que Alessandro Baratta identifica em cada uma delas em relação àqueles princípios da ideologia de defesa social, no sentido de que, apesar das limitações teóricas, os avanços destas teorias foram, principalmente, em ter oferecido argumentos contrários aos princípios da ideologia da defesa social.

            4.4 Teorias Criminológicas que Negam os Princípios da Ideologia da Defesa Social

            O princípio da legitimidade pretende fornecer ao sistema punitivo uma justificação para sua existência e atuação. O Estado, através de seus orgãos oficiais, está legitimado a agir punitivamente pois é a expressão da vontade social de querer ver punido o comportamento desviante, com vistas a fortalecer os valores e normas sociais.

            A primeira teoria que Alessandro Baratta identifica como negação a este princípio é a teoria psicanalítica. Na verdade, a teoria psicanalítica não se insere dentro do quadro geral das teorias sociológicas que buscaram compreender o crime e a criminalidade.

            Sua importância está em ter construído o entendimento segundo o qual a sociedade, ao reagir ao comportamento criminoso, confirma sua instintiva necessidade de reprimir aquilo que, dentro dela própria, é identificado com o que levou o sujeito a praticar um comportamento desviante. A repressão social – assim como a repressão interior do superego limita os instintos delituosos no indivíduo, e a punição torna-se um desejo que aplaca o sentimento de culpa pelo comportamento delituoso – cumpre um duplo papel, quais, sejam, de servir à "satisfação da necessidade inconsciente de punição que impele a uma ação proibida"25 e, também, satisfazer a "necessidade de punição da sociedade, através, de sua inconsciente identificação o delinquente"26.

            Assim, cai por terra a legitimidade baseada em um senso comum pelo qual o comportamento delituoso nega valores e normas sociais, pois este comportamento delituoso faz parte do mecanismo psicossocial pelo qual a sociedade se mantem coesa, pois, ao punir, ela nega a si própria sua identificação com o criminoso.

            O princípio do bem e do mal considera o crime como um dano à sociedade, boa em si mesma, representando, assim, o mal, posto que disfuncional à estrutura social. Em contraposição a este princípio, a teoria estrutural-funcionalista veio colocar o tema em bases propriamente sociológicas, para afirmar que o crime é um comportamento natural e necessário em qualquer formação social, e somente se torna um problema quando ultrapassa o limite em que se torna um empecilho para a existência e o desenvolvimento da estrutura social. O que está além deste limite é o que se denomina anomia. O crime, de uma certa forma, regula a vida social, pois faz a sociedade caminhar para caminhos contrários.

            Outra corrente propugnou pela consideração do comportamento criminoso como consequência da "desproporção entre os fins culturalmente reconhecidos como válidos e os meios legítimos à disposição dos indivíduos para alcançá-los"27. Não havendo uma correspondência neste sentido, o indivíduo, para alcançar os fins culturais a que a sociedade se dispõe, mas para os quais não lhe foi oferecidos os meios também legítimos para alcançá-los, os comportamentos delituosos estarão presentes. Mas, aqui também, dentro de certos limites quantitativos, estes comportamentos apresentam-se como estruturais à sociedade.

            Esta teoria nega o princípio do bem e do mal pois considera o comportamento desviante como necessário. Assim, não há mal em uma conduta que é útil para a sociedade, dái o próprio nome desta teoria, estrutral-funcionalista, ou seja, a relação funcional que o crime possui com a estrutura social.

            Prosseguindo, a teoria das subculturas criminais é identificada como a negação do princípio da culpabilidade. É a primeira análise criminológica petinente à modelos de comportamento específicos. Há uma ligação estreita com a teoria vista anteriormente, no sentido de que os meios que os indivíduos lançam mão para cumprir as metas culturais colocadas pela sociedade dá origem às subculturas criminais. Não havendo meios legítimos para que parcelas da população usufrua dos metas culturais, e sendo estas metas culturais almejadas por quem não as alcança, lança-se mão de meios ilegítimos, cuja consecução dá origem a comportamentos desviantes do padrão médio da sociedade.

            O que a teoria das subculturas criminais enfatiza é que não há um conjunto de valores e normas sociais gerais que possa ser imposto como limite para se verificar o grau de culpabilidade. Existem valores e normas específicos de grupos sociais específicos que, construídos socialmente como são, derivam da dinâmica das relações sociais e, assim, não podem ser considerados em termos de conformidade ou desconformidade a um pretenso padrão social de comportamento, para que do descompasso retire a justificação para a punição nos termos do princípio da culpabilidade.

            Posteriormente, a teoria do labeling aproach veio trazer a negação do princípio do fim ou da prevenção. Esta teoria fundamenta-se nos trabalhos desenvolvidos por duas correntes teóricas denominadas "interacionismo simbólico" e "etnometodologia". Da primeira herdou a compreensão da sociedade como "constituída por uma infinidade de interações concretas entre indivíduos, aos quais um processo de tipificação confere um significado que se afasta das situações concretas e continuam e estender através da linguagem"28. Da etnometodologia veio entendimento segundo o qual a "sociedade não é uma realidade que possa conhecer sobre o plano objetivo, mas o produto de uma ‘construção social’, obtida graças a um processo de definição e de tipificação por parte de indivíduos e grupos diversos"29.

            Assim, o labeling aproach vem propor o questionamento do desvio como qualidade atribuída a comportamentos e indivíduos, e da identidade que se constrói pelo processo de criminalização. O ser crime é uma consequência da atuação do sistema punitivo, que imprime às condutas o caráter criminoso e ao indivíduo que a praticou a pecha de delinquente.

            A negação do princípio do fim da pena ou da prevenção ocorre quando se afirma que a identidade desviante decorrente da primeira incursão do sujeito no processo de criminalização lhe acompanhará nas interações sociais posteriores e, deste ponto em diante, não há como o indivíduo reeducar-se, pois à sua frente abrir-se-á apenas a chance de uma efetiva carreira criminosa.

            Alessandro Baratta aponta a recepção alemã da teoria do labeling aproach como a negação do princípio da igualdade, especialmente pelos questionamentos levantados referente à criminalidade de clarinho branco e à cifras negras.

            Estes temas trouxeram à cena criminológica questões cruciais como a que afirma que comportamentos passíveis de criminalização não estão restritos a grupos sociais específicos, mas a todos os setores sociais. No mesmo sentido, há um nível considerável de comportamentos passíveis de criminalização que não são apreendidos pelo sistema punitivo, seja por que quem os pratica pertencem a grupos sociais cultural, social, política, e economicamente fortes o suficiente para não se tornarem vulneráveis à atuação do sistema punitivo, seja por que, mesmo naqueles setores sociais mais fragilizados, onde a atuação do sistema punitivo pode ser percebida de maneria mais contundente, não há condições do sistema punitivo mostrar-se presente em todas as situações passíveis de criminalização.

            Diante desta inexorável realidade, não há argumento que sustente a igualdade pretendida pela ideologia da defesa social para fazer crer que as determinações jurídico-penais serão aplicadas onde quer que ocorra uma conduta passível de criminalização.

            4.5 A Criminologia Crítica

            Todo este desenvolvimento do pensamento criminológico ofereceu elementos contra a criminologia positivista identificada com o direito penal clássico, como vimos, procurando inserir a questão fora dos limites da legalidade penal, privilegiando as relações sociais e as contradições que lhe são inerentes.

            Em relação à criminologia positivista escreveu Baratta30:

            O equívoco que daí derivava era o de partir da criminalização de certos comportamentos e de certos sujeitos, considerando ter, por isso mesmo, o que fazer com uma realidade possuidora de caracteres e causas naturais específicas, como se o mecanimso social de seleção da população criminalizada devesse, por uma misteriosa harmonia preestabelecida, coincidir com uma seleção biológica. Desse modo, as teorias patológicas exercitam a sua função conservadora e racionalizante em face do sistema penal. A isto correspondia perfeitamente o modelo positivista de ciência penal integrada, no qual a criminologia tinha, dinate da dogmática jurídica, uma função auxiliar. (grifo no original)

            Inserindo a perspectiva sociológica as teorias desenvolvidas em contraposição à crimilogia positivista foram denominadas por Alessandro Baratta por criminologia liberal contemporânea, cujo esforço teórico possibilitou deixar de lado o suporte dogmático oferecido pelo direito penal e focar o fenômeno do crime a partir de uma definição sociológica do desvio, que necessita ampliar o contexto de investigação para a estrutura social como um todo.

            O ponto culminante da criminologia liberal contemporânea foi a teoria do labeling. Continuando com Baratta31:

            O ponto mais avançado desta consciência da autonomia do próprio obejto em face das definições legais é alcançado, na criminologia liberal contemporânea, pela teoria do labeling. Negando qualquer consistência ontológica à criminalidade, enquanto qualidade atribuída a comportamentos e a pessoas por instâncias detentoras de um correspondente poder de definição e de estigmatização, a teoria do labeling deslocou o foco da investigação criminológica para tal poder. O direiro penal torna-se, assim, (...) de ponto de partida para a definição do objeto da investigação criminológica, no objeto mesmo da investigação.

            Mas, apesar de indicar os avanços que representaram as teorias criminológicas liberais contemporâneas, Alessandro Baratta as identifica como incapazes de fornecerem o que ele chama de uma ideologia positiva, na medida em que elas mesmas representam uma mais "nova ideologia negativa racionalizante de um sistema repressivo mais atualizado (itálico no original) em relação ao nível alcançado pelo desenvolvimento da sociedade capitalista"32.

            Concluindo esta limitação prática das teorias liberais contemporâneas para oferecer uma prática socialmente justa, Alessandro Baratta33 conclui:

            O novo sistema de controle social do desvio, que a ideologia das teorias liberais racionaliza, como o demonstra a experiência prática, até hoje, dos países capitalistas mais avançados, pode ser interpretado como uma racionalização e uma integração do sistema penal e do sistema de controle social, em geral, com o fim de torná-lo mais eficaz e mais econômico em relação à sua função principal: contribuir para a reprodução das relações sociais de produção. Do ponto de vista da "visibilidade" sociológica, isto significa contribuir para a manutenção da escala social vertical, da estratificação e da desigualdade dos grupos sociais. A ideologia racionalizante se baseia, principalmente, na tese da universalidade (itálico no orginal) do fenômeno criminoso e da função punitiva.

            Inserindo a questão criminológica no debate interno às ciências sociais contemporâneas, Alessandro Baratta começa a esboçar a proposta da criminologia crítica. O caráter crítico estrutura-se para contrapor-se a uma ciência social que pretende ser neutra em relação à influência que seus resultados teóricos devam ter na realidade social.

            O caráter crítico surge na perspectiva de que qualquer ciência social que se pretenda crítica deve ter a correspondente inserção prática na realidade social de onde retira seu objeto e para onde deve voltar seus resultados, para que, em conjunto com os atores sociais diretamente interessados na superação de uma desigualdade estrutural, seja o suporte para práticas sociais emancipatórias. Segundo Baratta34:

            Somente uma ciência social comprometida, pensamos, pode desenvolver um papel de controle e de guia em relação à técnica jurídica. A natureza dialética (itálico no original) da mediação entre teoria e práxis, que caracteriza este modelo de ciência social, é a medida do caráter racional do seu compromisso cognoscitivo e prático. A mediação é dialética quando o interesse pela transformação da realidade guia a ciência na construção das próprias hipóteses e dos próprios instrumentos conceituais e, por outro lado, a reconstrução científica da realidade guia a práxis transformadora, desenvolvendo a consciência das contradições materiais e do movimento objetivo da realidade, como consciência dos grupos sociais materialmente interessados na transformação da realidade e na resolução positiva das suas conotradições e, portanto, historicamente portadores deste movimento da transformação. Isto significa que, em uma ciência dialeticamente comprometida no movimento de transformação da realidade, o ponto de partida, o interesse prático por este movimento, e o ponto de chagada, a práxis transformadora, estão situados não só na mente (itálico no original) dos operadores científicos, mas principalmente nos grupos sociais portadores do interesse e da força necessária para a transformação emancipadora.

            Este é, na essência, o sentido que se deve imprimir às ciências sociais, que não pode de maneira alguma se desvincular da realidade concreta. Este é, na essência, o sentido que se deve atribuir às ciências em geral, ou seja, uma racionalidade intrinsecamente articulada com a necessidade de superar condicionamentos históricos que subjulgam grande parte da população e não lhes permite reconhecer as contradições que assim lhes determina e, ao mesmo tempo, não lhes permite reconhecer as manifestações das contradições sociais que podem ser exploradas positivamente.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, André Luiz Corrêa. Pressupostos para uma análise crítica do sistema punitivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 872, 22 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7612. Acesso em: 25 dez. 2024.

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