5. APONTAMENTOS SOBRE A REPRODUÇÃO SOCIAL DA DESIGUALDADE PELO SISTEMA PUNITIVO
5.1 O Sistema Punitivo para Além da Legalidade
O sistema punitivo é composto por uma série de instituições estatais às quais cumpre realizar a função de controle social, pela perspectiva institucional, necessariamente jurídica. Genericamente, pode-se agrupar todas as instituições componentes do sistema punitivo em três grandes estruturas, a saber: a estrutura policial, a estrutura judiciária e a estrutura penitenciária. As funções exercidas por cada uma destas estruturas são funções que, sob a ótica restrita da legalidade, delimitam as etapas indispensáveis para que se verifique o controle social pela perspectiva jurídica. É que a legalidade do Estado de Direito exige que a punibilidade estatal seja realizada por etapas, em um processo que, partindo da constatação de um fato que se suspeita crime, passe pelo julgamento de quem o praticou com consequente condenação e termine com o cumprimento da pena.
Alessandro Baratta35 aponta para a existência de três momentos de verificação do processo de criminalização, nestes termos:
O direito penal não é considerado, nesta crítica, somente como sistema estático de normas, mas como sistema dinâmico de funções, no qual se podem distinguir três mecanimso analisáveis separadamente: o mecanismo da produção das normas (criminalização primária), o mecanismo da aplicação das normas, isto é, o processo penal, compreendendo a ação dos orgãos de investigação e culminando com o juízo (criminalização secundária) e, enfim, o mecanismo da execução da pena ou das medidas de segurança.
A predominância neste trabalho é quanto aos momentos posteriores à elaboração legislativa, ou seja, aos momentos de atução das estruturas policial, judiciária e penitenciária36.
À estrutura policial cumpre a função de coibir a ocorrência de condutas passíveis de criminalização e, quando estas ocorrem, cumpre-lhe investigar a maneira como ocorreu, com vistas a construir o suporte fático-jurídico necessário para desencadear a atuação da estrutura judiciária.
A esta cabe o julgamento da conduta apreendida pela estrutura policial, com o desenvolvimento do processo penal, cujo resultado será a condenação ou a absolvição do réu. Ainda que o complexo legislativo possua uma série de mecanismos processuais que importam em consequências específicas, isto não descaracteriza a função essencial da estrutura judiciária, principalmente para o objetivo aqui pretendido, de delimitar o sistema punitivo. Assim, basta afirmamos que à estrutura judiciária cumpre concluir pela condenação ou pela absolvição do réu.
Por fim, se o resultado da atuação da estrutura judiciária for a condenação, entrará em cena a estrutura penitenciária, que dará cumprimento à execução punitiva, com a aplicação da principal pena – pois é a mais drástica – prevista pela ordem jurídica, qual seja, a pena privativa de liberdade. Insiste-se mais uma vez. Ainda que a ordem jurídica possua outras penas, como a multa a restrição de direitos, o que aqui interessa é a caracterização do sistema punitivo. Assim, se a pena privativa de liberdade é a principal forma de punição utilizada pelo sistema punitivo, para que ela possa ser aplicada é necessário que se construa instituições encarregadas da execução desta punição.
Mas a atuação destas três estruturas não se verifica de maneira compartimentada, isolada, antes se associam, em uma dependência estrutural. E seus resultados não são percebidos apenas nos limites da legalidade, pois há uma superação que lhes encaminha para produzir efeitos diretos na dinâmica das relações sociais que ofereceram o substrato material para sua atuação.
Como forma de controle de social, o sistema punitivo não é algo que está acima da dinâmica das relações sociais, reconhecível somente nos momentos jurídicos. Pelo contrário, o sistema punitivo possui uma realidade concreta, que permite inserí-lo como parte da dinâmica das relações sociais. Esta inserção, como se disse, é concreta, pois reconhecível no processo de criminalização. Conjungando a atuação destas três estruturas é possível retirar três perpectivas pelas quais pode se verificar a reprodução social da desigualdade.
A primeira perpectiva é anterior à atuação direta do sistema punitivo, e caracteriza-se pela sua capacidade de criar um senso comum sobre a criminalidade que identifica grupos sociais específicos como aqueles dos quais não se pode esperar outra coisa senão comportamentos desviantes.
Aqui, estamos diante daquilo que permite identificar os aspectos ideológicos da atuação do sistema punitivo, ou seja, a criação de um senso comum utilizado para descrever a realidade da criminalidade e oferecer respostas, muitas vezes identificadas com o clamor social, desprovido de razoabilidade, por uma atuação punitiva cada vez mais forte.
Desta maneira, o caráter ideológico do sistema punitivo quebra possibilidades emancipatórias ao não permitir a construção de relações comunitárias que sirvam de contraponto ao problema do crime. Maria Lúcia Karam37 é elucidativa quanto a esta função ideológica, ao comentar os efeitos da discussão acerca do combate às drogas no Brasil, que assumiu para si uma dimensão do problema que não corresponde ao que de fato ocorre:
O encobrimento das razões históricas, econômicas e políticas determinantes das distinções entre drogas lícitas e ilícitas, distinção que pouco ou nada tem a ver com a maior ou menor potencialidade de dano de umas e outras e que envolve as drogas qualificadas de ilícitas numa capa de mistério e fantasia; o superdimensionamento do problema, tratado sob uma ótica definida nos países centrais, quando existem, nos paíse periféricos, problemas muito mais sérios em matéria de saúde pública; a utilização de fatores como o desenvolvimento de grandes organizações criminosas e a violência por elas gerada, que são apresentados como consequências da disseminação das drogas; tudo isso acaba por criar uma clima de pânico, de alarme social, seguido pela demanda de mais repressão, de maior ação policial, de penas mais rigorosas, como costume em situações que comovem e assustam o conjunto da sociedade.
O segundo momento já se encontra no terreno da atuação direta do sistema punitivo, pelas estruturas policial, judiciária, e penitenciária, ainda que os casos concretos não passem por todas. Neste momento, deve-se voltar os olhos para o que efetivamente o sistema punitivo produz. Sobre esta atuação haverá influência direta do que se constrói socialmente acerca da criminalidade no primeiro momento identificado no parágrafo anterior, pois é certo que o senso comum que a ideologia da defesa social cria direciona o planejamento político-criminal, a refletir diretamente no que será apreendido pelo sistema punitivo.
Também é neste segundo momento que são criminalizadas, de fato, condutas que, antes de serem meramente um comportamento típico, antijurídico e culpável, são decorrentes de relações sociais que se guiam por contradições inerentes ao modo de produção capitalista e que, assim sendo, possuem um conteúdo de desigualdade que propicia uma atuação direcionada do sistema punitivo.
O terceiro momento encontra-se na posterior inserção do sujeito no sistema punitivo, ainda que ele não passe por todas as instâncias, e diz respeito às consequências daí derivadas para sua volta ao relacionamento social, com toda a carga negativa que alguém carrega consigo após ter sido iserido no processo de criminalização.
A simples suspeita de que alguém possa ter praticado uma conduta passível de criminalização, ainda que não se venha a oferecer a denúncia necessária para a atuação da estrutura judiciária, bastará para que a estrutura policial já tenha agido e feito com que a comunidade à qual pertence o suspeito o olhe sob a mácula de "criminoso".
Muitas vezes, até que se conclua a atuação judiciária, o réu já estará sendo privado de sua liberdade, e pouco importará se será julgado inocente, pois já se terá operado concretamente os efeitos maléficos de ser trancafiado em celas superlotadas. Pelo relatório do ILANUD apresentado, 80% das vítimas do massacre do carandiru ainda aguardavam julgamento.
Segundo Zaffaroni38 isto é consequência da violação exercida pelo sistema punitivo à própria legalidade penal, e aponta os diferentes caminhos pelos quais isto se verifica:
a)a duração extraordinária dos processoas penais provoca uma distorção cronológica que tem por resultado a conversão do auto de prisão em flagrante ou do despacho de prisão preventivas em autêntica sentença (a prisão provisória transmuta-se em penal), a conversão do despacho concessivo de liberdade provisória em verdadeira "absolvição" e a conversão da decisão final em recurso extraordinário. Considerando que a análise aprofundada dos limites da punibilidade ocorre no momento da decisão final, o nítido predomínio do "presos sem condenação" entre a população de toda a região não implica somente uma violação à legalidade processual, mas também à legalidade penal;
(...)
d) as agências executivas frequentemente atuam à margem dos critérios pautados para o exercício de poder pelos orgãos judiciais, de modo que, quando se produz a intervenção destes, já se consumaram efeitos punitivos irreversíveis sobre a pessoa selecionada.
E, sob o ponto de vista do condenado, depois de cumprida a pena, integralmente, possivelmente a pessoa continuará presa, pois não lhe é oferecida assistência técnica para que se verifique sua situação processual e ele possa ser colocado em liberdade. Quando sair, é muito pouco provável que consiga inserir-se em seu meio social, seja no sentido de meramente adequar-se aos padrões sociais dominantes que exigem dele uma sociabilidade produtiva, seja no sentido de – aqui, com muito menos possibilidades – inserir-se autonomamente para empreender práticas sociais que quebrem as determinações históricas que lhe condicionam à níveis concretos de desigualdade, o que de uma forma ou de outra, potencializará a inserção em novas práticas de condutas passíveis de criminalização.
Quer isto significar que o que define o sistema punitivo não é o que ideologia da defesa social declara como lhe sendo próprio, mas exatamente o que ele produz no sentido contrário do que pretende sua fundamentação. Isto é contraditório. E é justamente por isso que as bases sobre as quais se assenta a ideologia da defesa social são bases de caráter ideológico, portanto falsas.
Assim, não se deve procurar os fundamentos do sistema punitivo no que toda ordem de fundamentações filosóficas e jurídico-penais pretende informar, mas sim naquilo que o processo de criminalização empreendido pelo sistema punitivo produz de concreto na dinâmica das relações sociais, pois a sua inserção numa realidade social marcada historicamente pela desigualdade lhe condicionará para estruturar-se como um dos muitos mecanismos de controle social que se utilizam desta desigualdade para manterem-se rígidos e reproduzir esta mesma desigualdade que assim lhes determinou.
5.2 A Inevitável Contradição
Desde que o atual sistema punitivo começou a se erguer, calcado, como vimos, nos matizes históricos decorrentes da colonização brasileira, uma marca inexorável mantem-se cada dia mais atual, qual seja, a de que há um abismo entre o que a ideologia da defesa social pretende oferecer e o que o sistema punitivo produz de concreto.
Sobre esta contradição escreveu Zaffaroni39:
Hoje, temos consciência de que a realidade operacional de nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico-penal, e de que todos os sistemas penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder que cancelam o discurso jurídico-penal e que, por constiutírem marca de sua essência, não podem ser eliminadas sem a supressão dos próprios sistemas penais.
Como bem enfatiza Zaffaroni, esta contradição é da essência do sistema punitivo, pois ele necessita de uma justificativa para legitimar sua prática real como necessária.
Alessandro Baratta, por sua vez, extrai o conteúdo desta contradição, pelas seguintes proposições40:
a)o direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual de modo fragmentário;
b)a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos;
c)o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e de sua intensidade.
Destas proposições é possível retirar-se alguns pressupostos, quais sejam: a) que a lei penal não é igual para todos; b) que o direito penal não defende todos os bens jurídicos que declara como essenciais e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual; c) que o status social de criminoso é distribuído de maneira desigual entre os indivíduos; d) que a danosidade social das ações e a gravidade das infrações à lei não determinam a reação criminalizante.
Enquanto proposições abstratas, estas conclusões devem encontrar na realidade concreta relações sociais que permitam identificá-las como plausíveis, ou seja, algo que lhes dê validade do ponto de vista cientifíco, para que tais conclusões possam orientar corretamente a adoção de práticas sócio-jurídicas comprometidas com a própria superação do sistema punitivo.
A conclusão de que a lei penal não é igual para todos é o resultado da conjugação das outras conclusões expostas por Alessandro Baratta, constituindo-se no último nível de abstração, ao qual se chega pelo desenvolvimento concreto das outras teses, ou seja, retira-se da realidade concreta da dinâmica das relações sociais elementos que, quando conjugados entre si, permitem concluir que a lei penal não é igual para todos.
Mas, ao mesmo tempo, a própria constituição das teses anteriores só é possível quando se insere a questão para além dos marcos estritamente jurídicos, e se considera a inserção do sistema punitivo na estrutura social como um todo, dentro da qual ele destaca-se enquanto processo de criminalização, diretamente influenciado pelas contradições inevitáveis de uma formação social cujo fundamento é a exploração do trabalho humano.
Neste sentido, conjugando aqueles pressupostos, retira-se dois momentos para a consideração do processo de criminalização, quais sejam, a reação criminalizante e a distribuição desigual do status social de criminoso, sobre os quais, Alessandro Baratta vem nos dizer, não influem a danosidade social das ações e a gravidade das infrações à lei, pois a essencialidade dos bens jurídicos pretendida para determinar a reação criminalizante e a desigualdade da distribuição do status social de criminoso não é jurídica.
Sobre a reação criminalizante, cabe delimitar o seu sentido, para contrapô-lo à expressão "tutela penal", pois esta última nos impele a pensar na proteção que o sistema punitivo pode oferecer contra ofensas ou ameaças de ofensas aos bens jurídicos que são declarados como essenciais.
Porém, esta tutela penal não existe, e sua consideração deve se dar em termos de reação punitiva, cujo efeito é a criminalização da conduta e a inserção do sujeito no processo de criminalização. Isto por que o sistema punitivo não oferece tutela, proteção, mas sim uma reação a ofensas ou ameças de ofensas já realizadas, por meio da punição e do manejo dos instrumentais jurídicos utilizados para conformar a sua atuação, através do processo de criminalização.
Quanto à distribuição desigual do status social de criminoso, abrem-se dois caminhos para sua consideração. Primeiro, quanto ao status social de criminoso em si mesmo, para destacar que a construção social de um padrão de comportamento ao qual se associa efeitos negativos apresenta-se como uma condição essencial para o sistema punitivo desenvolver sua função de reprodução social da desigualdade, pois o processo de criminalização atribui a todos os que a ele são inseridos algo que torne o sujeito, em um primeiro momento, afastado do padrão de sociabilidade que se exige para se inserir produtivamente e, em um segundo momento, talvez o mais trágico, afastado de qualquer possibilidade de inserir-se no seu meio social por relações sociais emancipatórias.
Assim, de uma forma ou de outra, seja para meramente adequar-se a padrões de sociabilidade que não permitem vislumbrar nada além da satisfação de necessidades básicas, o que inevitavelmente conforma as relações sociais à desigualdade estrutura que lhes permeia, seja para procurar estabelecer novas formas de sociabilidade que se pautem pela busca constante de superação da mesma desigualdade que assim lhes determinou, de uma forma ou de outra, a estigmatização resultante da inserção do sujeito no processo de criminalização, pela atribuição do status social de criminoso, desqualifica qualquer tentativa de sua própria superação.
Porém, a mera atribuição do status social de criminoso não encerra, por si mesmo, todas as potencialidades de reprodução social da desigualdade. Pela segunda via que propomos para a análise do status social de criminoso, qual seja, a sua distribuição desigual, o sistema punitivo, pela atribuição do status social de criminoso de uma maneira direcionada para setores sociais frágeis, torna-se, agora sim, como um dos mecanismos mais eficazes de reprodução social da desigualdade.
E, em segundo lugar, como a outra via de análise do status social de criminoso, a sua distribuição desigual, ou seja, o direcionamento, pela atuação concreta do sistema punitivo, da atribuição dos efeitos negativos decorrentes deste padrão comportamental a indivíduos claramente identificados com setores sociais frágeis, subjetiva e objetivamente.
Neste sentido, demarcando o campo pelo o processo de criminalização concretiza-se na realidade da dinâmica das relações sociais, torna-se essencial que vislumbremos esta proposta a partir do que sugeriu Alessandro Baratta42, nos seguintes termos:
A tomada de consciência das contradições e do movimento emancipador da realidade, desenvolvida e acelerada através da elaboração científica e da difusão dos seus resultados entre os grupos sociais materialmente interessados na liberação de tal movimento, faz desses grupos, no sentido político, uma classe capaz de transformar e reverter as relações de hegemonia e a sua atual mediação política. Na atual fase de desenvolvimento da sociedade capitalista, o interesse das classes subalternas é o ponto de vista a partir do qual se colcoa uma teoria social comprometida, não na conservação, mas na transformação positiva, ou seja, emancipadora, da realidade social. O interesse das classes subalternas e a força que elas são capazes de desenvolver são, de fato, o momento dinâmico material do movimento da realidade.
Relacionando tais proposições abstratas com os elementos históricos que concluimos ser a base sobre a qual se assenta o sistema punitivo brasileiro, quais sejam, a miséria, a escravidão, a consciência política e a militarização, acreditamos poder extrair algumas conclusões acerca da reprodução social da desigualdade pelo sistema punitivo.
Esta proposta visa identificar na dinâmica das relações sociais o quanto estes quatro elementos são o suporte pelo qual aquelas proposições se verificam, e como, deste relacionamento, a desigualdade é reproduzida pelo sistema punitivo.
Não se pretende encerrar a questão apenas em uma variável, seja ela econômica, política, cultural, ou qualquer outra. Pretende-se apenas esboçar algumas possibilidades a partir do potencial teórico oferecido por Alessandro Baratta.
5.3 Condicionamentos Históricos para a Reprodução da Desigualdade pelo Sistema Punitivo
Firmado o entendimento de que o sistema punitivo supera as determinações jurídicas e se insere na dinâmica das relações sociais pelo processo de criminalização, adquirindo, assim, uma existência concreta, e que esta sua mesma existência concreta não corresponde ao que se oferece à sociedade como justificativa para sua legitimidade, gerando disto uma contradição que é da essência desta forma de controle social, conclui-se pela verificação de sua função de reprodução social da desigualdade em duas perspectivas, a saber: uma ideológica propriamente dita, na medida em que cria um senso comum que encobre suas reais funções, e outra objetiva, ou seja, a sua inserção direta na dinâmica das relações sociais, constituindo-se em um dos mecanismos sociais que não permitem a superação da desigualdade social, porquanto, ao criminalizar, imprime aos setores sociais que sofrem mais intensamente os efeitos do processo de criminalização o fortalecimento daqueles elementos históricos negativos que estão na origem desta mesma desigualdade, quais sejam, a escravidão, a miséria, a conscientização política e a militarização.
Tais elementos históricos relacionam-se, assim, nestas duas perspectivas, subjetiva e objetiva – uns mais quanto ao primeiro, outros mais quanto ao segundo – mas, sempre, confluindo-se, todos, para constituirem-se como a base social sobre a qual o sistema punitivo, a partir das contradições inevitáveis de um modo de produção pautado na exploração do trabalho humano, constrói-se como um dos mecanismos de controle social que se utilizam da desigualdade que gerou sua necessidade para reproduzí-la, e não permite que a dinâmica das relações sociais se desenvolva naquilo que guardam de transformador.
É nesta perspectiva que o sistema punitivo se insere na dinâmica das relações sociais, retirando da conjugação daqueles elementos pontos específicos que, quando inseridos no processo de criminalização, deixam de ser considerados como contradições que demonstram a desigualdade da estrutura social, e que, portanto, apresentam-se como a consequência da ordem exploratória, para constituirem-se no problema principal, ao qual se responde com toda a força punitiva, que não dá chances desta desigualdade ser superada, reproduzindo-a.
O que mais no interessa neste ponto é destacar que as condutas que são comumentes identificadas como crimes representam um ponto específico de relações sociais amplas. Pontos específicos estes diretamente construídos socialmente, no que interessa ao sistema punitivo, pela conjugação histórica da miséria, da escravidão e da conscientização política, cuja resposta imediata configura-se pela militarização.
5.4 A Escravidão
A escravidão nos legou uma herança cultural de tal envergadura, que um dos maiores mitos que se construiu socialmente foi o de que um indivíduo "negro, de camiseta, bermuda e de chinelo nos pés" é, por si mesmo, suspeito, o que propicia uma abordagem policial, ainda que não haja de fato nenhuma suspeita fundada. Talvez a maior herança histórica da escravidão seja a construção do arquétipo social do criminoso, identificando-se no negro práticas sociais passíveis de criminalização, a ensejarem uma distribuição desigual do status de criminoso, intimamente ligado ao negro.
Na perspectiva de Alessandro Baratta, o status social de criminoso é distribuído desigualmente entre os indivíduos e entre os setores sociais. A escravidão eleva-se à categoria de fundamento da atuação direcionada do sistema punitivo na medida em que sua herança histórica negativa é utilizada para constituir-se no critério de seleção de quem pode ser inserido mais facilmente no processo de criminalização.
O que foi gerado pela desigualdade, ou seja, toda a carga negativa que se associa à escravidão, é fortalecida nesta negatividade quando o sistema punitivo utiliza-se dela para pautar sua atuação.
Isto se verifica ao nível subjetivo, para compor o senso comum acerca da criminalidade, que é utilizado pelo sistema punitivo para justificar sua atuação direcionada, bem como ao nível objetivo, na medida em que grande parte da população é negra e condicionada a níveis concretos de desigualdade, constituindo-se no que já se chamou de clientela preferencial do sistema punitivo.
Mas a escravidão, por si só, como herança histórica negativa, não é suficiente para oferecer uma sociabilidade sobre a qual possa o sistema punitivo agir para reproduzir a desigualdade social decorrente de uma formação capitalista incipiente. A potencialidade punitiva decorrente da escravidão se torna cada vez mais aguda quando associada à miséria.
5.5 A Miséria
A miséria é o produto histórico da exploração econômica empreendida em terras brasileiras desde a colônia. Ela pode ser medida pela concentração de riqueza, em que o Brasil figura como um dos países de maiores índices. Para citar um exemplo, na cidade de Belo Horizonte, em 1991, pelo "Atlas de Desenvolvimento Humano" 43 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, os 10% mais ricos concentravam 47,40% da renda. Ainda que se considere serem estes dados de 1991, é muito pouco provável que este índice tenha sido alterado para menos até os dias de hoje, porquanto não houve alterações econômicas significativas que possam de alguma forma ter distribuído com mais equidade a renda bruta produzida pela sociedade como um todo.
A presença inexorável da miséria constitui-se em um entrave objetivo, que se fortifica ainda mais quando, sobre a dinâmica das relações sociais dela oriundas, lança-se o sistema punitivo, utilizando-se da fragilidade objetiva destas relações para sobre elas acrescentar-lhes a carga negativa própria do processo de criminalização.
A miséria dá vazão a relações sociais frágeis, que não permitem àqueles que sofrem seus efeitos negativos constituirem relações sociais coesas o suficiente para superá-las. Um dos fatores que tornam frágeis as relações sociais que tem como ponto de partida a miséria é a potencialidade que elas possuem de oferecer ao sistema punitivo o substrato material necessário para desencadear a reação punitiva e o processo de criminalização, tendo em conta as condutas passíveis de criminalização existentes e a diversidade de fatores que determinam a estrutura social como desigual e exploratória.
Vejamos, por exemplo, algumas estatísticas do Ministério da Justiça44 acerca do número de ocorrências registradas na Polícia Civil no ano de 2003, quanto aos crimes de roubo, furto, homicidio doloso e lesão corporal.
Brasil e Regiões Geográficas |
Total da Regiões Geográficas |
Brasil e Regiões Geográficas (Capitais) |
Concentração Populacional nas Capitais (%) |
Concentração de Ocorrências referentes a Roubos nas Capitais (%) |
|||||||
População |
Total de Ocorrências de Roubos |
Taxa por 100.000 Habitantes (2) |
Total das Capitais |
||||||||
População |
Total de Ocorrências de Roubos |
Taxa por 100.000 Habitantes (2) |
|||||||||
Brasil |
176.876.251 |
855.897 |
483,9 |
Brasil |
40.114.051 |
463.005 |
1.154,2 |
22,7% |
54,1% |
||
Região Norte |
13.784.895 |
60.034 |
435,5 |
Região Norte |
4.209.029 |
41.648 |
989,5 |
30,5% |
69,4% |
||
Região Nordeste |
49.357.119 |
99.133 |
200,8 |
Região Nordeste |
10.652.105 |
65.630 |
616,1 |
21,6% |
66,2% |
||
Região Sudeste |
75.392.023 |
511.309 |
678,2 |
Região Sudeste |
19.259.545 |
284.257 |
1.475,9 |
25,5% |
55,6% |
||
Região Sul |
26.024.981 |
112.642 |
432,8 |
Região Sul |
3.434.381 |
42.377 |
1.233,9 |
13,2% |
37,6% |
||
Região |
12.317.233 |
72.779 |
590,9 |
Região Centro-Oeste |
2.558.991 |
29.093 |
1.136,9 |
20,8% |
40,0% |
||
Fonte: Ministério da Justiça - MJ/ Secretaria Nacional de Segurança Pública - SENASP/ Secretarias Estaduais de Segurança Pública/ Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública - Coordenação Geral de Pesquisa/ Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. |
|||||||||||
1 - Nesta Tabela estão agregados os seguintes delitos: "Roubo à Residência", "Roubo de Carga", "Roubo de Estabelelcimento Bancário, "Roubo de Veículo", "Roubo a Coletivo", "Roubo a estabelecimento comercial", "Roubo Seguido de Morte" e "Outros roubos". |
|||||||||||
2 - Cálculo feito com base nos Censos Demográficos, Contagem Populacional e MS/SE/Datasus, a partir de totais populacionais fornecidos pelo IBGE, para os anos intercensitários. |
Brasil e Regiões Geográficas |
Total da Regiões Geográficas |
Brasil e Regiões Geográficas (Capitais) |
Total das Capitais |
Concentração Populacional nas Capitais (%) |
Concentração de Ocorrências referentes a Furtos nas Capitais (%) |
||||
População |
Total de Ocorrências de Furtos |
Taxa por 100.000 Habitantes (2) |
População |
Total de Ocorrências de Furtos |
Taxa por 100.000 Habitantes (2) |
||||
Brasil |
176.876.251 |
2.124.572 |
1.201,2 |
Brasil |
40.114.051 |
696.309 |
1.735,8 |
22,7% |
32,8% |
Região Norte |
13.784.895 |
135.876 |
985,7 |
Região Norte |
4.209.029 |
88.089 |
2.092,9 |
30,5% |
64,8% |
Região Nordeste |
49.357.119 |
263.053 |
533,0 |
Região Nordeste |
10.652.105 |
127.633 |
1.198,2 |
21,6% |
48,5% |
Região Sudeste |
75.392.023 |
977.005 |
1.295,9 |
Região Sudeste |
19.259.545 |
284.588 |
1.477,6 |
25,5% |
29,1% |
Região Sul |
26.024.981 |
519.928 |
1.997,8 |
Região Sul |
3.434.381 |
121.731 |
3.544,5 |
13,2% |
23,4% |
Região Centro-Oeste |
12.317.233 |
228.710 |
1.856,8 |
Região |
2.558.991 |
74.268 |
2.902,2 |
20,8% |
32,5% |
Fonte: Ministério da Justiça - MJ/ Secretaria Nacional de Segurança Pública - SENASP/ Secretarias Estaduais de Segurança Pública/ Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública - Coordenação Geral de Pesquisa/ Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. |
|||||||||
1 - Nesta Tabela estão agregados os seguintes delitos:
"Furto", "Furto a estabelecimento comercial", "Furto à residência", "Furto a
transeunte", "Furto de veículos" e |
|||||||||
2 - Cálculo feito com base nos Censos Demográficos, Contagem Populacional e MS/SE/Datasus, a partir de totais populacionais fornecidos pelo IBGE, para os anos intercensitários. |
Brasil e Regiões Geográficas |
Total da Regiões Geográficas |
Brasil e Regiões Geográficas (Capitais) |
Total das Capitais |
Concentração Populacional nas Capitais (%) |
Concentração de Ocorrências referentes a Homicídio Doloso nas Capitais (%) |
|||||
População |
Total de Ocorrências de Homicídio Doloso |
Taxa por 100.000 Habitantes (1) |
População |
Total de Ocorrências de Homicídio Doloso |
Taxa por 100.000 Habitantes (1) |
|||||
Brasil |
176.876.251 |
40.630 |
23,0 |
Brasil |
40.114.051 |
13.684 |
34,1 |
22,7% |
33,7% |
|
Região Norte |
13.784.895 |
2.547 |
18,5 |
Região Norte |
4.209.029 |
998 |
23,7 |
30,5% |
39,2% |
|
Região Nordeste |
49.357.119 |
10.121 |
20,5 |
Região |
10.652.105 |
3.409 |
32,0 |
21,6% |
33,7% |
|
Região |
75.392.023 |
21.739 |
28,8 |
Região |
19.259.545 |
7.892 |
41,0 |
25,5% |
36,3% |
|
Região Sul |
26.024.981 |
3.499 |
13,4 |
Região Sul |
3.434.381 |
853 |
24,8 |
13,2% |
24,4% |
|
Região |
12.317.233 |
2.724 |
22,1 |
Região |
2.558.991 |
532 |
20,8 |
20,8% |
19,5% |
|
Fonte: Ministério da Justiça - MJ/ Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP/ Secretarias Estaduais de Segurança Pública/ Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública - Coordenação Geral de Pesquisa/ Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. |
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1 - Cálculo feito com base nos Censos Demográficos, Contagem Populacional e MS/SE/Datasus, a partir de totais populacionais fornecidos pelo IBGE, para os anos intercensitários. |
Brasil e Regiões Geográficas |
Total das Regiões Geográficas |
Brasil e Regiões Geográficas (Capitais) |
Total das Capitais |
Concentração Populacional nas Capitais (%) |
Concentração Populacional nas Capitais (%) |
|||||
População |
Total de Ocorrências De Lesões Corporais |
Brasil e Regiões Geográficas |
População |
Total de Ocorrências De Lesões Corporais |
Brasil e Regiões Geográficas |
|||||
Brasil |
176.876.251 |
618.097 |
349,5 |
Brasil |
40.114.051 |
156.713 |
390,7 |
22,7% |
25,4% |
|
Região Norte |
13.784.895 |
52.000 |
377,2 |
Região Norte |
4.209.029 |
32.491 |
771,9 |
30,5% |
62,5% |
|
Região |
49.357.119 |
64.345 |
130,4 |
Região |
10.652.105 |
27.204 |
255,4 |
21,6% |
42,3% |
|
Região |
75.392.023 |
325.072 |
431,2 |
Região |
19.259.545 |
68.304 |
354,7 |
25,5% |
21,0% |
|
Região Sul |
26.024.981 |
133.065 |
511,3 |
Região Sul |
3.434.381 |
20.944 |
609,8 |
13,2% |
15,7% |
|
Região |
12.317.233 |
43.615 |
354,1 |
Região |
2.558.991 |
7.770 |
303,6 |
20,8% |
17,8% |
|
Fonte: Ministério da Justiça - MJ/ Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP/ Secretarias Estaduais de Segurança Pública/ Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública - Coordenação Geral de Pesquisa/ Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. |
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1 – Nesta tabela estão agregados os seguintes delitos: lesão corporal, lesão corporal dolosa, lesão corporal seguida de morte e outras lesões corporais. |
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2 - Cálculo feito com base nos Censos Demográficos, Contagem Populacional e MS/SE/Datasus, a partir de totais populacionais fornecidos pelo IBGE, para os anos intercensitários. |
Por estas estatistícas do Ministério da Justiça, fica claro que as condutas passíveis de criminalização mais apreendidas pelo sistema punitivo são aquelas identificadas como crimes contra o patrimônio.
No ano de 2003 foram registradas na Polícia Civil, na região sudeste, para os crimes de roubo, furto, homicídio doloso e lesão corporal, os respectivos números de ocorrências: 511.309, 977.005, 21.739, 325.072. Na região norte, ou números, nesta mesma ordem, foram os seguintes: 60.034, 135.876, 2.547, 52.000.
Algumas considerações sobre estes números. Enfatiza-se as regiões norte e sudeste pois elas são representativas das regiões brasileiras, respectivamente, menos e mais urbanizadas e industrializadas. São dois pontos antagônicos de desenvolvimento econômico, o que não impede que, nas duas regiões, o total de ocorrências de condutas tipificadas como crimes contra o patrimônio seja muito superior ao total de ocorrências de condutas tipificadas como crime contra a vida.
Em números absolutos, considerando o conjunto de roubos e furtos são exatamente 1.488.314 ocorrências para a região sudeste e 195.910 para a região norte. Enquanto para o conjunto de homicídios e lesões corporais, são 346.811 para a região sudeste e 54.547 para a região norte. A discrepância é enorme, o que nos indica que o campo de atuação do sistema punitivo integra-se, preferencialmente, pelas condutas tipificadas como crimes contra o patrimônio.
Estes dados nos indicam apenas as condutas passíveis de criminalização que são mais perseguidas pelo sistema punitivo, e que possibilitam a inserção do indivíduo no processo de criminalização. Mas, quem são estes indivíduos que a prática concreta do sistema punitivo direciona em números muito superiores para o processo de criminalização? A resposta a esta questão pode ser buscada através destes tipos penais que mais são punidos, por um raciocínio que busque identificar nas condutas abstratas quem pode, com mais facilidade, ser inserido no processo de criminalização45.
Assim, o questionamento não se resume a saber se a condição social do indivíduo torna-o mais propenso à prática de condutas passíveis de criminalização, mas vai além, para perquerir pelo conteúdo das relações sociais travadas por quem pratica uma conduta passível de criminalização do tipo crime contra o patrimônio e por que, por este conteúdo, a reação punitiva é direcionada.
Os crimes contra o patrimônio pretendem oferecer uma racionalidade para a punição de condutas que de alguma forma lesem ou ameacem de lesão a propriedade privada46, antes de tudo uma relação social, porquanto ela só pode ser percebida pela exclusão do outro. O caráter privado que se atribui à propriedade é o exato conteúdo da exclusão que este caráter provoca. A esta exclusão corresponderá, sempre, uma desigualdade em relação àquilo do qual se exclui.
Ao guardarem este conteúdo de desigualdade, a dinâmica das relações sociais será guiada pela busca constante da superação desta desigualdade por aqueles setores sociais que sofrem diretamente as suas consequências negativas, tornando o que abstratamente tem apenas a potencialidade de ser criminalizado, em concretude.
Arriscamos, então, a afirmar que, dentro de uma estrutura social desigual, as condutas passíveis de criminalização como crimes contra o patrimônio, exatamente por guardarem este conteúdo de desigualdade, transformam o tomar para si coisa alheia em uma tentativa de superação desta exclusão, ainda que os indivíduos que as pratiquem não tenham a consciência do sentido desta superação, do sentido político desta superação.
Superação esta que muitas vezes não encontra outros meios senão o caminho da prática de condutas que podem ser rotuladas como crimes contra o patrimônio, pois o que se toma possui um valor material apto a ser utilizado para suprir necessidades das mais variadas matizes, seja de interesses imediatos, relacionados à supressão de necessidades biológicas ou culturais, seja de interesses mediatos, quando o que se toma tem o fim de servir de suporte para o aperfeiçoamento de novas práticas sociais passíveis de criminalização.
Porém, isto se limita às causas da prática de condutas passíveis de crimnalização e, neste sentido, nada nos diz a respeito da reprodução da desigualdade levada à cabo pelo sistema punitivo.
Quanto a isto, a desigualdade que propicia, aos setores sociais fragilizados pela exclusão que a propriedade privada provoca, conduzirem-se no sentido de práticas sociais passíveis de criminalização como crimes contra o patrimônio encontrará na atuação direcionada do sistema punitivo a necessidade que a estrutura social possui de manter esta propriedade privada como a base de sustentação das condições que lhe são essenciais. Uma sociedade que se pauta pela exploração do trabalho alheio necessita de mecanismos sociais que mantenha insuperável a desigualdade que esta exploração provoca.
Assim, ao afirmar-se que o sistema punitivo não pretende proteger todos os bens jurídicos que declara como essenciais, enfatiza-se que a essencialidade do bem jurídico não é jurídica. Esta essencialidade, considerando a estrutura social, está intimamente ligada à necessidade de se manterem incólumes as manifestações contraditórias desta estrutura social. Na medida em que estas contradições são inerentes à estrutura social, a sua reprodução é condição de existência para a conservação de sua base exploratória.
O processo de criminalização fragmentário nascido desta necessidade, portanto, insere-se na dinâmica das relações sociais em seus momentos mais frágeis, para constituir-se em um dos mecanismos sociais que confirma e reproduz a desigualdade própria do modo de produção capitalista.
A reação punitiva, portanto, será direcionada para os setores sociais que sofrem as consequências negativas das contradições social, política, econômica e cultural, pois para estes setores sociais estas contradições são o obstáculo a ser superado, no que se tornam potencialmente mais aptas a serem criminalizadas, porquanto a maneira concreta pela qual se manifestam encontram a correspondência exata em tipificações penais ligadas aos crimes contra o patrimônio.
5.6 A Consciência Política
Outro elemento histórico fruto da desigualdade e que se ergue contra ela, e que por isso torna-se potencialmente apta a ser apreendida como crime pelo sistema punitivo, é a consciência política, principalmente quando ela se materializa em práticas sociais coletivas que questionam os fundamentos da estrutura social. Pensemos nas ações políticas empreendidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e que muitas vezes são criminalizadas.
O MST, ao contestar a propriedade privada, ocupando-as, age no sentido de forçar a reforma agrária, sendo-lhe irrelevante o que possam afirmar sobre ser a propriedade privada um bem jurídico do interesse de toda a sociedade brasileira. Antes, ao utilizar a ocupação como forma de pressão política o MST está claramente dizendo: "não acreditamos na propriedade privada, sem que se cumpra sua função social, como condição para o desenvolvimento social brasileiro, por isto não aceitamos que o Brasil seja um país de latifundiários".
Ora, num conflito agrário a propriedade privada é um bem jurídico essencial somente para quem a detém. Para aqueles que desejam a efetivação de sua função social, como o MST, o fato da propriedade ser privada oferece apenas o braço armado do Estado, ou mesmo do particular, contra sua ação política.
Para o MST a propriedade privada como bem jurídico essencial que precisa ser protegido pelo sistema punitivo, e que justifica a atuação do sistema penal sobre seus líderes, considerando sua ação política como formação de quadrilha para a prática de crime contra o patrimônio, apresenta-se como um dos muitos obstáculos que devem ser superados para levar adiante seu projeto emancipatório.
Ao considerar uma atuação política do porte da empreendida pelo MST como crime contra o patrimônio, ou formação de quadrilha, pelos seus líderes, o sistema punitivo propicia, ideologicamente, que se considere manifestações populares aptas a construir uma nova sociedade como caso de polícia.
Na perspectiva aqui empreendida, as práticas sociais originadas do projeto político do MST tornam-se potencialmente aptas a serem inseridas no processo de criminalização, não no sentido de que os militantes deste movimento só querem baderna e não respeitam nada – como quer fazer crer setores dominantes dos meios de comunicação social – pelo que estariam, assim, dando razão à reação punitiva.
O sentido de sua criminalização advém da postura política assumida frente a estrutura social desigual contra a qual lutam. Ao assumir tal postura política, expressada nas palavras de ordem "ocupar, resistir e produzir", os militantes do MST concretizam sua consciência política em práticas sociais que ameaçam a legitimidade da propriedade privada que não cumpre sua função social.
Em um país historicamente fundamentado na grande propriedade latifundiária, a tais ações políticas responde-se com bala e com sangue. São inúmeros os conflitos entre policiais, proprietários e trabalhadores rurais sem terra. Eldorado dos Carajás, por exemplo. Qualquer radicalização neste sentido propicia a atuação do sistema punitivo.
O que nos faz pensar na atualidade da autonomia punitiva construída desde os tempos coloniais, em virtude da constituição de grupos armados que atuam na esteira das forças estatais, quando grandes proprietários rurais armam capangas para proteger suas terras contra invasões do MST, demonstrando que a construção histórica da punição como algo privado mostra-se até hoje presente.
Mas não é apenas no campo que a conscientização política dá vazão a práticas sociais que são absorvidas pelo sistem punitivo e inseridas no processo de criminalização, abortando possibilidades emancipatórias.
Nos grandes centros urbanos isto também ocorre e, um dos exemplos marcantes é o do Movimento dos Sem Teto. No Brasil inteiro este movimento vem crescendo a cada ano, articulando ações de ocupação de prédios abandonados, sempre no mesmo sentido das ocupações feitas pelo MST, ou seja, chamar a atenção das autoridades públicas para o problema estrutural da falta de moradia. À suas ações se responde da mesma forma, ou seja, a bala e a sangue, sempre sob pretexto de cumprimento de mandados judiciais de reintegração de posse e meios jurídicos semelhantes.
Tanto quanto ao MST, quanto ao Movimento dos Sem Teto, a lógica é a mesma. Contradições sociais criam, inevitavelmente, uma consciência política em certos setores sociais, em torno de um problema específico, que começa a se erguer como práticas sociais contestatórias. A efetivação destas práticas sociais é, então, apreendida pelo sistema punitivo, transformando o que pode ser uma alternativa contra a desigualdade estrutural em caso de polícia.
É neste sentido que se afirma ser a consciência política um dos elementos históricos que permitem uma atuação direcionada do sistema punitivo. E é também neste sentido que o sistema punitivo reproduz a desigualdade, pois o que pode ser destacado como práticas sociais transformadoras e emancipatórias torna-se crime, retirando a possibildade da população reconhecer tais práticas como legítimas, porquanto está sempre associada à criminalidade e, de outro lado, mas no mesmo sentido, representa o uso direto da força. De onde não há como não concluir o sistema punitivo como braço armado do Estado, utilizado para conter manifestações das contradições estruturais do sistema econômico, político, cultural e social.
5.7 A Militarização
Por fim, a militarização representa a resposta objetiva e subjetiva criada pelo sistema punitivo contra a criminalidade. Ao nível subjetivo, articulam-se discursos de acordo com as circunstâncias, mas que no seu conjunto podem ser identificados (estes discursos) com uma pretensa guerra à criminalidade, com o auxílio de segmentos da imprensa identificados com esta prática, principalmente nos grandes centros urbanos.
Zaffaroni e Nilo Batista47 comentam que:
A civilização industrial implica uma inquestionável cultura bélica e violente. É inevitável que, apesar de não ser formulada hoje em temros doutrinários nem teóricos, a comunicação de massas e grande parte dos operadores das agências do sistema penal tratem de projetar o exercício do poder punitivo como uma guerra à criminalidade e aos criminosos.
Ao nível objetivo esta guerra à criminalidade chega a manifestar-se concretamente, com a utilização de tropas do exercíto brasileiro no combate a conflitos potencialmente penais. Veja-se algumas reportagens do jornal Folha de São Paulo sobre isso:
As tropas militares envolvidas na operação de combate à violência no campo no Pará poderão superar os 2.000 homens anunciados ontem pelo Palácio do Planalto. Em nota à imprensa, o Comando do Exército informou no início da noite de hoje que, no desenvolvimento das operações no Pará, poderão ser empregadas tropas do Comando Militar do Nordeste, sediado em Recife (PE), da Brigada de Infantaria Pára-quedista, do Rio de Janeiro (RJ), da Brigada de Operações Especiais, de Goiânia (GO) e do Comando de Aviação do Exército, de Taubaté (SP), além dos 2.000 militares acionados inicialmente em Marabá e Belém (PA), e em Manaus (AM). Os militares atuarão no Estado em conjunto com os ministérios da Justiça, do Meio Ambiente e os órgãos de Segurança Pública estadual. O objetivo, segundo o Comando do Exército, é "desenvolver operações de Garantia da Lei e da Ordem no Estado do Pará". O comando da operação, a cargo do General-de-Brigada Jairo César Nass, atual Comandante da 23ª Brigada de Infantaria de Selva, será feito a partir de Altamira (PA). A ação do Exército é uma reação do governo aos assassinatos ocorridos desde o fim-de-semana, motivados por conflitos de terra no Pará. Entre os executados, estavam a missionária americana, Dorothy Stang, que trabalhava em defesa dos trabalhadores rurais e da preservação ambiental.48
A 11ª Brigada de Infantaria do Exército, com sede em Campinas (95 km de SP), será a primeira unidade no país a ser adaptada para oferecer treinamento a militares que atuarão em problemas com a segurança pública, fazendo o trabalho de polícia estadual. A tropa de Campinas contará com 4.500 homens. Há no país, além de companhias da Polícia do Exército, outros nove batalhões que possuem treinamentos semelhantes, mas não específicos para a atuação do Exército nas ruas. O plano do Exército é treinar os homens em Campinas para atuar em casos de greve de policiais estaduais e também no auxílio da Polícia Militar, para o controle da ordem pública --como os bloqueios de estradas. A alteração faz parte do plano de reestruturação do Exército brasileiro e deve começar a ser implementada em dezembro deste ano. O processo deve ser concluído em 2007. Para atender à determinação do Comando do Exército, em Brasília, a 11ª Brigada de Campinas elaborou um projeto que prevê, por exemplo, a compra de novos armamentos. Saem os fuzis e as munições letais e agregam-se capacetes, armas de baixo calibre e munições de borracha. De acordo com o Comando do Exército, o número de solicitações de atuação militar em grandes centros urbanos tem crescido. Só neste ano, o Exército já foi solicitado em três casos. No Rio de Janeiro, o Exército brasileiro foi convocado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para atuar com força de polícia estadual.A cidade vivia, há dois meses, uma guerra entre traficantes de morros rivais. O Exército foi acionado e cercou os morros. Nas outras duas ocasiões, o Exército interveio a pedido dos governadores e sob a ordem da Presidência da República em situações de greve de policiais militares. Uma foi no Piauí e a outra foi em Minas Gerais, na semana passada. A paralisação da PM mineira foi suspensa anteontem pelo comando de greve depois que saiu uma decisão judicial que considerou a greve ilegal. A atuação do Exército como polícia é prevista no artigo 142 da Constituição Federal. No entanto as tropas não tinham treinamento específico para tal fim. Segundo o Comando do Exército em Brasília, não se trata de criar uma nova grande unidade, e sim aproveitar a reestruturação em curso para também atender às novas demandas, de ações de garantia da lei e da ordem.49
Vende-se uma sensação de segurança que não existe, pois a utilização de tropas militares em assuntos de segurança pública demonstra apenas que as contradições sociais estão sendo cada vez mais acentuadas, propiciando uma verdadeira guerra civil, ainda que velada.
O que Zigmund Baumam identifica como modernidade líquida, que não se curva a nenhuma forma de controle e que se escoa ao menor sinal de solidez, mostra-se, de fato, condizente com o que se passa nos dias de hoje. E, exatamente por esta liquidez corroer qualquer tentativa de construção de práticas sociais emancipatórias, o sistema punitivo eleva-se como a resposta mais sólida e concreta a ser oferecida aos efeitos maléficos desta modernidade líquida. Na base de tudo isto está a desigualdade decorrente da exploração do homem pelo homem, que o sistema punitivo presta-se como um dos mecanismos sociais mais eficazes.