6. CONCLUSÃO
A tônica empreendida neste texto foi a de destacar a contradição entre a ideologia da defesa social e a prática concreta do sistema punitivo. Esta falta de compasso não foi considerada como simples falta de adequação entre o que a estrutura jurídica possibilita em termos abstratos e o que de fato ocorre.
Esta falta de compasso é estrutural ao sistema, na medida em que a reação punitiva é determinada pelo nível das contradições sociais, para manifestar-se sobre os pontos mais frágeis da dinâmica das relações sociais, exatamente aqueles setores sociais que mais facilmente podem encaminhar-se para a realização de condutas derivadas da precarização do trabalho e de condições sociais que não lhes permitem desenvolverem-se autonomamente.
Desta maneira, a cultura punitiva que se cria foge de qualquer possibilidade de racionalização, e a sua conservação não pode se dar senão criando-se fundamentações teóricas coerentes em si mesmas, mas que, quando confrontadas com a realiadade dos fatos, não se sustentam.
Esta contradição, como se disse, é essencial para o sistema punitivo, pois a sua atuação perversa não teria meios de justificar não fosse por princípios falsos acerca de um fenômeno social muito mais complexo do que pretende a ideologia da defesa social.
Tais princípios falsos constituem-se em um senso comum acerca da criminalidade que é consumido pelos próprios setores sociais de onde o sistema punitivo retira o substrato material para empreender o processo de criminalização. A partir daí, o que possibilitaria alternativas à criminalidade, ou seja, a constituição de relações sociais comunitárias emancipatórias, restam sem a base social necessária para se verificarem, pois ideologicamente estes setores sociais encontram-se atrelados ao que lhes é repassado pelos meios de controle social formais e informais.
Não se criam, assim, respostas que tenham como ponto de partida a própria realidade destes setores sociais marginalizados, o que, por fim, os mantêm sob a mesma exploração que lhes condicionou a simplesmente consumirem e fortalecerem o caráter ideológico da justificativa punitiva.
Por outro lado, a inserção do sujeito no processo de criminalização, objetivamente considerado, quando decorrente de relações sociais que guardam um conteúdo de desigualdade em sua origem, sofrerá na sua constituição social, ou seja, no modo como é percebido e como se percebe no meio social do qual faz parte, as influências negativas concretas do sistema punitivo, que não possibilitarão a superação da desigualdade que lhe encaminhou para ser apreendido pelo sistema punitivo.
No mesmo sentido, em uma perspectiva mais ampla, a realidade concreta do sistema punitivo demonstra que as condutas mais perseguidas pelo sistema punitivo guardam uma relação estreita com estrutura desigual da sociedade, o que nos permite afirmar que as condutas mais aptas a serem apreendidas pelo sistema punitivo e o sujeito que as praticou inserido no processo de criminalização, são condutas que representam as manifestações concretas das contradições inerentes e inevitáveis do sistema capitalista. O sistema punitivo, ao agir, reage punitivamente somente sobre aqueles momentos da dinâmica das relações sociais que representam uma contradição levada às suas últimas consequências.
Inicialmente, considerávamos que a única saída possível para este estado de coisas seria simplesmente a abolição do sistema punitivo. Com o decorrer do tempo, fomos passando a considerar, em termos pragmáticos, que isto talvez não seja possível, por dois motivos.
Primeiro, que não há possibilidade desta alternativa se verificar, pelas próprias relações de poder que historicamente foram sendo construídas em torno da punição para chegar aos dias de hoje como relações que estão por demais enraizadas para se permitir sua simples eliminação.
Em segundo lugar, e isso constitui uma das principais conclusões deste trabalho, a questão não é eliminar um aparelho estatal ainda que sabidamente repressor de setores sociais marginalizados, pois a criminalidade constitui-se em um problema social que aí está e continuará presente, porquanto fruto das contradições econômicas, políticas, sociais e culturais inevitáveis do modo de produção capitalista. Os efeitos negativos da criminalidade, independentemente desta ser construída socialmente pela própria atuação do sistema punitivo, serão sempre sentidos, e deles não há como nos afastarmos. É preciso sim oferecer uma resposta.
Mas, ao mesmo tempo, ainda que afastada a possibilidade abolicionista, restam as possibilidades de desenvolvimento de alternativas que se pautem pela constante busca de sua abolição, ainda que isto não seja imediato, ainda que no sentido de fim estratégico. Isto não quer dizer sua abrupta abolição, mas sim uma gradual deslegitimação de sua necessidade, por práticas sociais oriundas da base, dos setores sociais que sofrem seus efeitos concretos, negativos em si mesmos.
Neste sentido, saltam como primordiais práticas sociais emancipatórias, perpassadas por uma subjetividade que se contraponha à pura e simples adequação ao senso comum acerca da criminalidade, para que, deste ponto, os próprios setores sociais que historicamente são alvo da repressão punitiva consigam erguerem-se autonomamente.
É certo que a superação das desigualdades relaciona-se à superação do modo de produção capitalista. E, talvez, seja certo que uma das vias de ação para buscar novas formas de sociabilidade que preserve o ser humano passe por superar o sistema punitivo.
O sistema punitivo brasileiro, ao ser o produto histórico do desenvolvimento da noção de punição contra o antropologicamente inferior e o politicamente consciente da exploração do modo de produção econômica, e que a ele se contrapõe, marcou-se continuamente pela necessidade de construção de uma organização estatal pautada por buscar, sempre, a estabilidade política para que se mantivessem incólumes suas condições, objetivas e subjetivas, de existência. Procurar estabilidade política significa aplacar o poder tranformador que as contradições sociais possuem.
Ao agir sobre condutas que são a síntese histórica da conjugação da miséria, da escravidão e da consciência política, submetendo-a ao processo de criminalização, o sistema punitivo transforma as contradições capitalistas em crime, e as reproduzir em sua desigualdade. O que a desigualdade tratou de produzir torna-se potencialmente apto a ser apreendido pelo sistema punitivo e reproduzido exatamente nesta mesma desigualdade.
7. BIBLIOGRAFIA
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NOTAS
nt
Relatório elaborado pelo ILANUD, Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente, acessado pelo sítio www.ilanud.org.br, em 11 de maio de 2005.1
Ao se privilegiar as contradições sociais como critério para uma perspectiva crítica da concepção de Estado Democrático de Direito está-se privilegiando o critério da prática, que nos permite reconhecer qualquer manifestação do pensamento naquilo que guarda de coerência com a realidade das relações sociais, seja por que são das relações sociais que brotam todos os elementos articulados pelo pensamento, em nível abstrato, dando origem às diversas concepções acerca do mundo, seja por que a realidade das relações sociais demonstra o quão potencial é uma concepção de mundo para a transformação deste. Ao se afirmar que as contradições sociais trazem no seu desenvolvimento potencialidades para avanços e recuos, quer-se dizer que tudo dependerá do modo como estão dispostos os segmentos sociais e sua necessária correlação, a depender da subjetividade predominante numa certa época histórica, e do modo como a objetividade das relações sociais mesmas trabalha com esta subjetividade, seja pautando seu desenvolvimento, seja construindo-se a partir desta objetividade.2
Talvez novas formas de poder desvinculadas da lógica eleitoral, que pretende encerrar a questão democrática como o mero acesso ao voto, intimamente ligado ao domínio do aparelho de Estado por setores sociais que compartilham de objetivos materiais e ideológicos, permitissem pensar em novas formas jurídicas que, ainda que vinculadas como são à existência do Estado, reconheça sua necessidade estratégica, com vistas à sua própria superação, pois reconhece-o como a manifestação de contradições sociais insolúveis.3
FILHO, Roberto Lira. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 86.4
Em 14 de setembro de 2002 o Complexo do Carandiru foi desativado e, em 09 de dezembro do mesmo ano, implodido.5
A ausência no campo social depende, fundamentalmente, de uma decisão política tomada no âmbito estatal, via parlamento, pois é necessário, nos países subdesenvolvidos, que se quebre toda uma estrutura de proteção social, ainda que incipiente.6
BENJAMIN, Cézar. A opção brasileira...[et. al]. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998, p. 37.7
BAUMAN, Zigmund. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2001, p. 21/22.8
Cézar Benjamin, op.cit, p.40.9
WAIQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia – Freitas Bastos, 2001, p.48.10
ANTUNES, Ricardo. A cidadania negada. Acessado pelo sítio http://168.96.200.17/ar/libros/educacion/antunes.pdf, em 30 de maio de 2005.11
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Nacional, 1977, p. 83.12
ZAFFARONI, Eugênio Raul e BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro.Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 417.13
Filho, Luis Francisco Carvalho. Impunidade no Brasil – Colônia e Império. Acessado pelo sítio http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n51/a11v1851.pdf, em 20 de novembro de 2004.14
JÚNIOR, Caio Prado. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979, p. 123.15
ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira. O Duplo Cativeiro: Escravidão urbana e o sistema prisional no Rio de Janeiro - 1790 – 1821.Rio de Janeiro, 2004, p 12. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, acessada pelo sítio www.2.liphis.com, em 12 de abril de 2005.16
Zaffaroni e Batista, op cit, pp. 426 e 42717
Zaffaroni e Batista, op cit, pp. 421 e 422.18
KOVAL, Boris. História do Proletariado Brasileiro: 1857 a 1967.São Paulo: Alfa-Ômega, 1982, p. 99.19
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p.33.20
Alessandro Baratta, op cit, p 35.21
Nilo Batista, op cit, p 31.22
Alessandro Baratta, op cit, p 41.23
Será este o conceito de ideologia adotado, pois um dos pressupostos que assumimos é o de que toda a construção jurídico-filosófica que fundamenta a atuação do sistema punitivo não corresponde ao que de fato ocorre com a realidade concreta deste sistema punitivo. E, neste sentido, não interessa se se atribui um sentido negativo a este conceito de ideologia. Na verdade, são válidos os dois sentidos comentados de ideologia, ou seja, é válido o sentido de conjunto articulado de pensamentos que orientam um programa de ação, como também é válido o outro sentido, ainda mais considerando o sistema punitivo, que talvez se apresente como a maior manifestação de que há validade neste conceito "negativo" de idelogia, assumindo toda a discussão em uma mera questão terminológica. Mas não é isso o que nos propomos, sendo suficiente afirmar-se que se adota o sentido "negativo" de ideologia.24
A ideologia da defesa social adquire caráter ideológico pois possui como fundamentos certos princípios que não corresposdem ao que a realidade social e a realidade do sistema punitivo, em particular, apresentam de concreto. Não havendo uma correspondência entre fundamentação e justificação da prática e o que a prática efetivamente produz, outro não pode ser o sentido senão fornecer uma base ideológica a partir da qual a prática real possa se manter como necessária, apesar de seus insucessos.25
Alessandro Baratta, op cit, p. 51.26
Alessandro Baratta, op cit, p 51.27
Alessandro Baratta, op cit, p 63.28
Alessandro Baratta, op cit, p 87.29
Alessandro Baratta, op cit, p 87.30
Alessandro Baratta, op cit, p 147/148.31
Alessandro Baratta, op cit, p 148/149.32
33
Alessandro Baratta, op cit, p 150.34
Alessandro Baratta, op cit, p 157.35
Baratta, op cit, p 161.36
Optamos por não utilizar a terminologia adotada por Alessandro Baratta quanto à criminalização primária e secundária, pois considera-se a inserção do mecanismo de execução da pena e das medidas de segurança também como criminalização secundária, a par da divisão feita por aquele autor. Da mesma forma não nos deteremos na problemática das medidas de segurança, pois isto ampliaria por demais o campo de investigação deste trabalho.37
KARAM, Maria Lúcia. De Crimes, Penas e Fantasias. Niterói: Luam Editora, 1993, p 22.38
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1996, p 27/28.39
Zaffaroni, op cit, p 15.40
Baratta, op cit, p.162.42 Baratta, op cit, p. 158/159
43
Atlas de Desenvolvimento Humano – Publicação do "Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento", acessado pelo sítio www.pnud.org.br/atlas, em 10 de abril de 2005.44
Dados acessados pelo sítio http://www.mj.gov.br/senasp/pesquisas_aplicadas/mapa/index_regioes.htm, em 17 de abril de 2005. Considera-se que estes números são apenas um indicativo do que realmente ocorre, seja para mais ou para menos. Assim, ainda que possa haver falhas na coleta destas informações, elas podem nos oferecer alguns dados, principalmente para justificar a delimitação da atuação do sistema punitivo quanto àquelas condutas tipificadas como "crimes contra o patrimônio".45
É preciso enfatizar que esta proposta não parte do princípio de que alguns indivíduos possuem uma tendência maior que outros de praticar condutas passíveis de criminalização, ainda que conforme a posição que ocupem na estrutura social, nos moldes da perspectiva positivista. Esta proposta considera a posição social que cada indivíduo ocupa na estrutura social em um país de capitalismo tardio como o Brasil, onde a contradição capital-trabalho constrói um abismo entre as classes sociais, além de determinar materialmente o conteúdo das relações sociais que serão travadas por cada indivíduo, se um conteúdo que permite sua autonomia, ou se um conteúdo de desigualdade que se perpetua, do qual a inserção no sistema punitivo será consequência.46
Uma propriedade privada não qualificada efetivamente pela função social que a Constituição da República tratou de assegurar não representa outra coisa senão a completa submissão da maioria da população à realização de interesses de uma minoria, que não eferece a esta maioria da população caminhos para que ela se constitua socialmente apta a direcionar seus ideais de vida por si mesmos, estando sempre atrelados às possibilidades determinadas pela miséria que esta submissão provoca, e da qual somente permite sua reprodução.47
Zaffaroni e Batista, op cit, p 57/58.48
Jornal Folha de São Paulo, reportagem "Em nota, Exército admite que pode usar mais de 2.000 militares no Pará", do dia 16 de fevereiro de 2005, acessado pelo sítio www.folha.com.br, no dia 22 de abril de 2005.49
Jornal Folha de São Paulo, reportagem "Exército prepara tropa para atuar nas ruas", do dia 24 de junho de 2004, acessada pelo sítio www.folha.com.br, no dia 22 de abril de 2005.