1. INTRODUÇÃO
Dezessete anos após a EC nº 19/1998, em meio a um conturbado cenário político e econômico envolvendo investigações judiciais de corrupção em empresas estatais, foi apresentado o Projeto de Lei nº 555/2015 no Senado Federal, que, rapidamente, foi aprovado e editado na forma da Lei nº 13.303/2016.
Um dos maiores escândalos de corrupção nas estatais decorre da operação iniciada pelo Ministério Público Federal em 2014, que ficou conhecida como “Operação Lava-Jato”, relacionada ao desvio de dinheiro público, por meio de um complexo esquema de favorecimento de interesses particulares de empreiteiras, funcionários públicos, operadores financeiros e agentes políticos.
Segundo estudo da consultoria GO Associados antecipado ao G1{C}[1], os impactos diretos e indiretos da Operação Lava Jato na economia podem tirar R$ 142,6 bilhões da economia brasileira em 2015, o equivalente a uma retração de 2,5% do PIB (Produto Interno Bruto).
Assim, considerando que o desvio de valores públicos nas empresas estatais, em grande parte, ocorre nas licitações e contratações, à revelia das normas direito público editadas, acreditou-se que a edição da Lei da Responsabilidade das Estatais pode vir a influenciar significativamente o cenário atual das empresas estatais.
Contudo, em que pese a Lei nº 13303 tenha entrado em vigor desde a sua edição, em 30 de junho de 2016, nos termos de seu art. 91, as empresas públicas e as sociedades de economia mistas já constituídas ainda tiveram o prazo de 24 (vinte e quatro) meses para se adequarem às novas regras estatuídas.
Alcunhada de a Lei das Estatais, ela dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Sua importância consiste no fato de conferir uma identidade legal ao regime jurídico a esses entes, na tentativa de harmonizar os institutos de direito privado e de direito público que coexistem no dia-a-dia das atividades das estatais.
Editada em meio a um delicado contexto político e econômico envolvendo corrupção e malversação de dinheiro público de empresas públicas e sociedades de economia mista, essa lei disciplina pormenorizadamente a exploração direta de atividade econômica pelo Estado, de acordo com os termos determinados no artigo 173 da Constituição Federal.
Em essência, a Lei nº 13303/2016 estabeleceu uma série de mecanismos de transparência e governança a serem observados, como regras para divulgação de informações, práticas de gestão de risco, códigos de conduta, formas de fiscalização pelo Poder Público e pela sociedade, constituição e funcionamento dos conselhos, assim como requisitos mínimos para nomeação de dirigentes.
O presente artigo se debruça propriamente sobre as inovações e regras específicas com relação às licitações e contratos das Estatais, além dos aspectos polêmicos apresentados pelo novo Estatuto.
2. O ESTATUTO DAS ESTATAIS
A Lei nº 13.303/2016, de modo geral, atendeu aos pontos que requeridos pelo §1º do art. 173 da CF, quais sejam: I - função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II - sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; IV - constituição e funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários; V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilização dos administradores.
O Estatuto das Estatais inicia com a apresentação de sua abrangência dispondo que suas normas se aplicam a toda e qualquer empresa pública e sociedade de economia mista da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que explore atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União, ou seja, de prestação de serviços públicos.
A referida Lei não faz distinção entre as empresa estatais que exploram atividade econômica em sentido estrito, como a Petrobrás e o Banco do Brasil, e aquelas que prestam serviços públicos, como a Infraero e os Correios.
Em que pese o Decreto nº 200/1967 tenha-se voltado para a classificação das empresas estatais a partir da constituição do seu capital, que interessa mais ao Direito Empresarial, considerável parte dos doutrinadores administrativistas, como Celso Antônio Bandeira de Mello (2005, p. 652), Diogenes Gasparini (2012, p. 369), Diogo de Figueiredo (2014, p. 573) e Eros Roberto Grau (2017, p. 89), assim como das jurisprudências de Tribunais Superiores, já havia se voltado para a classificação das empresas públicas conforme a atividade que exercem, separando-as entre aquelas que executam serviços públicos e aquelas que exploram diretamente atividade econômica em sentido estrito.
Como destaca Carlos Vinícius Alves Ribeira, na obra Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista, coordenada por Alexandre Santos de Aragão (2015, p.134), a diferenciação entre empresa estatal que exerce atividade econômica e aquela que presta serviço público é feito pelo próprio texto constitucional, assim, o autor explica que:
Em apertadíssima síntese é possível dizer que a atividade econômica possui como finalidade a produção e circulação de bens, produtos e serviços ao consumidor final, conquanto serviços públicos são atividades econômicas lato sensu que o Estado apartou do regime geral de prestação por qualquer privado que pretendesse explorar por conta e risco a atividade, sob o pretexto de ser aquela atividade ligada às finalidades que o próprio Estado possui o dever de garantir a toda gente em razão de necessidades ou utilidades.
Trocando em miúdos, um serviço público não é mais que uma atividade econômica que, em virtude de sua ‘vinculação ao interesse social’, a lei reconheça aquela atividade como serviço público, gerando para o Estado a obrigação prestacional.
Tradicionalmente, na medida em que a prestação de serviços públicos estaria vocacionada ao Estado, a exploração da atividade econômica estaria voltada para o Setor Privado.
Além disso, a Lei das Estatais também se aplica às empresas públicas e as sociedades de economia mista participantes de consórcio e às sociedades de propósito específico que sejam controladas por empresa pública ou sociedade de economia mista.
No entanto, de acordo com o §2º do art. 1º, somente as normas referentes a licitações e contratos públicos são aplicáveis às empresas públicas dependentes que explore atividade econômica, conforme conceito adotado pela Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei nº 101/2000.
A despeito da considerável abrangência da referida Lei, é importante ter em mente que suas normas não se aplicam quando essas empresas estiverem comercializando seus produtos ou prestando serviços diretamente, de modo a não comprometer sua livre atuação no mercado.
Nesta mesma linha de raciocínio, também não se impõe as regras do Estatuto para contratação de particular com características que representam oportunidade de negócio definida e específica no mercado em que atua.
Adiante, os arts. 3º e 4º da Lei apresentam os conceitos de empresa pública e de sociedade de economia mista que se harmonizam com o conceito do Decreto nº 200/1967.
Inclusive, no tocante às sociedades de economia mista, o art. 5º determina que tais entidades, além de se submeterem a Lei nº 13303/2016, também estão submetidas à Lei das Sociedades por Ações – Lei nº 6404/1976.
Aliás, a Lei das Estatais faz várias remissões à Lei nº 6404/1976, submetendo o Acionista Controlador, o Administrador e seus Conselhos a esta.
Com relação ao regime jurídico societário, nota-se que o Capítulo II do Estatuto das Estatais impõe regras mais rígidas para direção e funcionamento das empresas estatais e suas subsidiárias.
O Capítulo II também regulamenta dos aspectos mais relevantes do Estatuto das Estatais, qual seja a sistematização da governança corporativa, por meio da qual se intensifica a transparência e o controle das estatais visando resguardar princípios republicanos e combater o uso delas para satisfação de interesses pessoais.
Assim, o inciso I do art. 8º dispõe que as empresas estatais devem elaborar uma carta anual explicando os compromissos de consecução, objetivos de políticas públicas para atendimento do interesse coletivo com a definição clara dos recursos a serem empregados e impactos econômicos da consecução dos objetivos.
Outro mecanismo de transparência e controle social é a determinação de ampla divulgação das informações reunidas em forma de carta de governança corporativa elaborada em único documento com linguagem clara e direta, contendo informações sobre controle, fatores de risco, dados econômico-financeiros, comentários dos administradores sobre o desempenho, políticas e práticas de governança corporativa e descrição da composição e a remuneração da administração.
Inclusive, para auxiliar as empresas estatais federais na elaboração da carta anual de políticas públicas e governança coorporativa, em 30/01/2017, a Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais – SEST, o Ministério do Planejamento Desenvolvimento e Gestão, juntamente com representantes do Ministério da Fazenda (STN, PGFN e Secretaria-Executiva) e a Bovespa e da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, desenvolveu um modelo de Carta Anual de Políticas Públicas e Governança Corporativa, com sugestão dirigida aos membros do Conselho de Administração, cabendo às empresas estatais, dentro da sua autonomia, definir o conteúdo e a forma de sua carta anual{C}[2].
No tocante ao controle do erário, foi imposta limitação dos gastos com publicidade que, de acordo com o art. 93, não pode ultrapassar 0,5% da receita bruta do exercício anterior em cada exercício financeiro com possibilidade de ampliação para até 2%, mediante proposta justificada da Diretoria aprovada pelo Conselho de Administração.
Também como forma de controle são vedados gastos com publicidade e patrocínio em ano de eleição para cargos do ente federativo a que sejam vinculadas, desde que não excedam a média dos gastos nos 3 (três) últimos anos que antecedem o pleito ou no último ano imediatamente anterior à eleição.
Ainda, de acordo com o Estatuto, podem ser Administradores de empresas públicas e sociedades de economia mista, os membros do Conselho de Administração ou da Diretoria, desde que preencham os requisitos de reputação ilibada e notório conhecimento, comprovado pelo requisitos cumulativos de formação acadêmica compatível, não ser inelegível e comprovar tempo mínimo de experiência profissional, nos termos que dispõe o art. 17 da Lei.
Na sequência, destacam-se as vedações para nomeação de membros do Conselho de Administração e da Diretoria. Nota-se que o objetivo das vedações é afastar o interesse particular que utilizaria a nomeação como moeda de troca para favores pessoais, políticos e partidários.
Encerrando o Título I da Lei nº 13.303/2016, o Capítulo III disciplina expressamente sobre a função social das empresas públicas e sociedades de economia mista pautado no interesse coletivo e na guarda da segurança nacional.
Em seguida, o Estatuto das Estatais dispõe sobre o regime jurídico das licitações e contratos delimitado pela Lei nº 13303/2016 para as empresas estatais, em substituição parcial às normas gerais disciplinadas pela Lei 8.666/93 que eram aplicadas, como passa-se ao estudo.
3. REGRAS ESPECÍFICAS DE LICITAÇÕES E CONTRATOS
O Título II, do Capítulo I, da Lei nº 13303/2016 possui 36 (trinta e seis) artigos, que vão desde o art. 28 até o art. 64, com regras pormenorizadas sobre licitações das empresas estatais.
De modo geral, a Lei das Estatais buscou regular exaustivamente todos os termos relativos à matéria de licitações e contratos, consequentemente, a Lei 8.666/93 deixou de ser aplicada pelas empresas estatais, com exceção dos casos expressamente determinados pelo próprio Estatuto, quais sejam, normas penais e parte dos critérios de desempate (art. 41 e art. 55, III).
Porém, a despeito das novidades trazidas e de seus aspectos positivos, é de fácil observação que o novo diploma utilizou e aperfeiçoou institutos já presentes na Lei nº 8666/93 e no Regime Diferenciado de Contratações para delimitar seus termos.
Com relação ao conceito de licitações, o artigo 31 da Lei das Estatais corresponde ao art. 3º da Lei Geral de Licitações, com a diferença de que três acréscimos pontuais importantes, quais sejam: 1) para se verificar a vantajosidade da licitação também se deve considerar o ciclo de vida do objeto; 2) as licitações devem buscar evitar operações em que se caracterizem sobrepreço e superfaturamento; 3) a economicidade e o desenvolvimento nacional sustentável passam a ser princípios a serem observados, assim como a competitividade, que antes era princípio implícito.
Visando fortalecer a probidade administrativa nos processos licitatórios, o Estatuto das Estatais inovou ao trazer explicitamente o conceito de sobrepreço e superfaturamento que, na Lei nº 8.666/1993, só era mencionado para fins de responsabilização (§2º do art. 25).
Com a mesma finalidade e também indo além dos termos da norma geral de licitações, os §§2º e 3º do art. 31 do Estatuto elencam os procedimentos para confecção preço de referência para as licitações das estatais.
Neste particular, cabe a crítica de que a omissão da Lei nº 8666/1993 em regular o procedimento para confecção do preço de referência para as licitações gerou a cultura administrativa de pesquisa de mercado com base na obtenção de três orçamentos.
Nos últimos anos, esta cultura de três orçamentos tem sido combatida pelos Tribunais de Contas e pelos órgãos de controle interno, pois tal metodologia, na maior parte das vezes, não se reflete com segurança a realidade do mercado e, muitas vezes, acaba resultando em dano ao erário por sobrepreço no orçamento de referência.
Contudo, se comparados os principais pontos em comum, em matéria de licitações, entre a Lei Geral de Licitações e o Estatuto das estatais, nota-se que: 1) a Lei 13303/2016 mantém a diferenciação conceitual entre licitações dispensada e dispensável; 2) os privilégios da Lei nº 123/2006 são mantidos para as microempresas e empresas de pequeno porte; 3) a maior parte das hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação da Lei das Estatais guardam correspondência com as hipóteses da Lei nº 8666/1993; 4) assim como o disposto no parágrafo único do artigo 26 da Lei nº 8666/1993, o §3º do art. 30, exige que, nos processos de contratação direta, seja por dispensa ou por inexigibilidade, haja justificativa quanto à situação emergencial ou calamitosa, as razões da escolha e o preço, em observância ao princípio que dispõe o inciso IV do art. 50 da Lei nº 9784/1999, segundo o qual os motivação dos atos administrativos deve ser expressa; 5) o inciso III do art. 29 da Lei 13303/2016 manteve os mesmos termos para hipótese de licitação deserta que constam no inciso V do art. 24 da Lei nº 8.666/1993; 4) o inciso IV do art. 29, também manteve a primeira parte da hipótese de licitação fracassada, diferenciando-se, somente, com relação ao fato de que a Lei das Estatais não limita a adjudicação do bem ou serviço ao valor do registro de preço, como impõe o inciso VII do art. 24 da Lei nº 8666/1993.
Por outro lado, uma das diferenças significativas entre o Estatuto das Estatais e a Lei Geral de Licitações reside no fato de que aquela estabelece valores diferentes dos fixados nesta para contratação direta de serviços e compras.
Enquanto na Lei nº 8666/1993 o limite de licitação dispensável para serviços e compras é de 20% do valor máximo para modalidade Convite (parágrafo púnico do art. 24, alterado pelo Decreto nº 9.412/2018), portanto o valor de R$ 35.200,00 (trinta e cinco mil e duzentos reais), no Estatuto das Estatais o limite para dispensa é o valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).
Do mesmo modo, enquanto o valor limite de dispensa de licitação para a contratação de obras e serviços de engenharia é de 20% do valor máximo para o Convite (parágrafo púnico do art. 24, alterado pelo Decreto nº 9.412/2018), portanto o valor de R$ 66.000,00 (sessenta e seis mil reais), no Estatuto das Estatais o limite para dispensa é o valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais).
Diferentemente da Lei Geral de Licitações, a Lei das Estatais prevê que os referidos valores limites para dispensa sejam alterados por deliberação do Conselho de Administração da empresa pública ou sociedade de economia mista para refletir a variação de custos, admitindo-se, ainda, valores diferenciados para cada sociedade (art. 29, §3º).
Esta previsão afasta do Estatuto a celeuma quanto aos valores de dispensa congelados desde 1998 na Lei Geral de Licitações e que somente foram alterados no exercício de 2018, portanto após um lapso de 25 (vinte e cinco) anos de desatualização desses valores.
Neste ponto, vale fazer a ressalva de que um dos fatores que mais contribuiu para a edição do Decreto nº 9.412/2018, que atualizou os valores da Lei nº 8.666/1993, foi a pressão que os entes federativos exerceram em face a omissão do Poder Legislativo Federal, por meio da edição de leis próprias atualizando esses valores há muito defasados.
Nesse contexto, inclusive, o Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso, por meio da Resolução de Consulta nº 17/2014, havia autorizado o Estado e seus municípios a exercer essa competência legislativa.
Todavia, por questionável impedimento dos demais entes da federação em fixarem normas gerais de competência da União, à luz dos arts. 1º e 118 da Lei nº 8666/1993 c/c o inciso XXVII do art. 22 da CF, as leis editadas pelos municípios mato-grossenses que atualizaram valores de licitação foram consideradas inconstitucionais pelo Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso (ADI 460/2016)[3].
Visando preservar a livre concorrência das empresas estatais no mercado para consecução de suas atividades fins, o §3º do art. 28 da Lei nº 13303/2016 delimitou duas hipóteses específicas de licitação dispensada, em que a empresa estatal é obrigada a não realizar procedimento licitatório, mesmo que haja possibilidade de competição.
Reforçando a garantia de competitividade das empresas estatais no setor privado, o art. 32 do Estatuto fixou como uma das suas diretrizes para licitações, a busca pela maior vantajosidade competitiva, considerando custos, benefícios e outros fatores elencados (art. 32, II).
Com relação ao aspecto procedimental, visando agilidade em suas contratações, a Lei nº 13303/2016 determinou que as empresas estatais devem utilizar, preferencialmente, a modalidade licitatória Pregão, regulado pela Lei nº 10520/2002, para aquisição de bens e serviços comuns (art. 32, IV).
O art. 39 da Lei nº 13303/2016 fixou prazos mínimos, entre a publicação do edital e a apresentação de propostas ou lances, conforme cada critério de julgamento empregado para escolha (tipo de licitação) e não modalidade de licitação, como previsto na Lei nº 8666/1993.
Na busca pela celeridade no certame, o Estatuto das Estatais incorporou grande parte os procedimentos mais ágeis previstos na Lei nº 12462/2011 - Regime Diferenciado de Contratação.
Enquanto os procedimentos de licitação da Lei nº 8666/1993 seguem a ordem de habilitação e depois julgamento (art. 38), a Lei nº 13303/2016 prevê que, em regra, primeiro ocorra o julgamento das propostas ou lances para que depois seja realizado o procedimento de habilitação.
Desse modo, a sequência dos procedimentos licitatórios da Lei nº 13303/2016 é a seguinte: preparação, divulgação, apresentação de lances ou propostas, julgamento, verificação da efetividade dos lances ou propostas, negociação, habilitação, interposição de recursos, adjudicação do objeto e homologação do resultado (art. 51).
Além da inversão das fases, a Lei nº 13303/2016 inspirou-se nas regras do Regime Diferenciado de Contratação em outros aspectos, descritos a seguir.
Para não comprometer a possibilidade de maior vantajosidade, por meio de oferta com preços abaixo dos valores de referência, o Estatuto prevê que o orçamento com a estimativa de preços, em regra, seja mantido em sigilo, somente podendo ser divulgado mediante justificativa ou quando o julgamento for por maior desconto (art. 34).
Além dos tipos de licitação previstos no §1º do art. 46 da Lei nº 8666/1993 – menor preço, melhor técnica, técnica e preço e maior lace ou oferta, o art. 54 do Estatuto possui outros quatro critérios de julgamentos, quais sejam: maior desconto, melhor conteúdo artístico, maior retorno econômico e melhor destinação dos bens alienados.
O Estatuto das Estatais também incrementou a fase de negociação de condições mais vantajosas, que, na Lei nº 8666/1993, era prevista somente para as licitações do tipo melhor técnica (art. 57).
De igual modo, para um maior dinamismo na competição, Estatuto prevê que o modo de disputa poderá ser aberto, com apresentação de lances públicos e sucessivos, ou fechado, com da apresentação de propostas que serão divulgadas ao mesmo tempo das outras (art. 52).
Por seu turno, o art. 56 confere mais flexibilidade ao processo licitatório ao permitir que os licitantes corrijam defeitos constatados em suas propostas, de modo que a desclassificação somente deve acontecer diante de defeitos insanáveis, tal qual previsto no Regime Diferenciado de Contratação.
Além disso, o art. 58 da Lei nº 13303/2016 proporciona margem de discricionariedade para eleger os documentos de habilitação e, na sequência, o art. 59 prevê apenas uma fase recursal que ocorre ao final do processo licitatório, nos mesmos moldes previstos na Lei nº 10520/2002 e no Regime Diferenciado de Contratação.
No tocante aos contratos, o Estatuto das Estatais apresenta inovação sob dois aspectos.
Primeiro, porque dispõe que, como regra, os contratos possuem a duração de 05 (cinco) anos (art.71), logo, diferentemente do que ocorre com o contrato regido pelo art. 57 da Lei nº 8666/1993, sua duração não fica adstrita a vigência do respectivo crédito orçamentário.
Segundo, porque eventual alteração contratual só pode ocorrer por acordo entre as partes (art. 71), não havendo possibilidade de alteração unilateral pelo ente público, como permitido pelo inciso I do art. 65 da Lei nº 8666/1993.
Por fim, merece comentário a previsão de contratação integrada (sem projeto básico e executivo) e semi-integrada (com projeto básico, mas sem projeto executivo) para obras e serviços de engenharia, nos termos dos arts. 42 e 43 da Lei nº 13303/2016.
A contratação integrada já era prevista, em regime de exceção, pelo Regime Diferenciado de Contratação, para objetos inovadores com tecnologia de domínio restrito ou com possibilidade de execução por meio de diferentes metodologias (art. 8º).
A previsão de contratação integrada e semi-integrada constitui um dos vários aspectos polêmicos da Lei nº 13303/2016, que serão estudados no tópico seguinte.
4. ASPECTOS POLÊMICOS DO ESTATUTO DAS ESTATAIS
Como dito, a Lei 13303/2016 previu a possibilidade de contratação integrada e semi-integrada, contudo, o uso desses tipos de regimes, desde 2013, é questionado e limitado pelo Tribunal de Contas da União, como os Acórdãos nº 1399/2014[4] e nº 2209/2015[5], ambos julgados pelo Plenário.
Se por um lado, a contratação integrada e semi-integrada se mostra vantajosa porque a Administração Pública apresenta somente um anteprojeto para a licitação, ficando desencarregada de arcar com os custos de termos aditivos ao contrato por sua falha na elaboração do projeto básico ou de execução, uma vez que o contratado, vencedor da licitação, fica encarregado dos projetos e da execução da obra ou do serviço.
Por outro lado, a contratação sem os projetos básico e executivo acabam comprometendo a isonomia e a competitividade no julgamento das propostas, além de poderem resultar em superfaturamento por medições de serviços desnecessários previstos pela contratada.
Considerando este aspecto, o TCU limitou o alcance e uso desses regimes a apresentação de justificativas técnicas e econômicas rigorosas para utilização de contratação integrada. Além disso, também questionou o uso do regime de contratação integrada quando o próprio ente público já havia confeccionado o projeto executivo.
Para contornar o posicionamento receoso e restritivo daquela Corte de Contas quanto ao uso do regime de contratação integrada, a Lei nº 13303/2016 trouxe a novidade do regime de contratação semi-integrada, em que somente o projeto executivo fica a cargo da empresa licitante.
Porém, considerando o fato de que as estatais tinham um prazo de 24 meses para se adequarem às novas regras estatuídas pela Lei 13303/2016, os resultados práticos do uso dos regimes de contratação integrada e semi-integrada pelas estatais ainda estão sendo fiscalizados e analisados pelo controle externo da União, dos Estados e Municípios.
Outro aspecto polêmico com relação à Lei nº 13303/2016 é a existência da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI nº 5624 [6], com pedido de medida cautelar, apresentada pela Associação do Pessoal da Caixa Econômica Federal (FENAEE) e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (CONTRAF/CUT), recebida no Supremo Tribunal Federal (STF).
Na referida ADI, alegou-se a existência de inconstitucionalidade formal quanto à propositura da Lei nº 13303/2016. Os proponentes sustentam que houve invasão do Poder Legislativo sobre a prerrogativa do chefe do Poder Executivo de dar início ao processo legislativo em matérias que envolvam a organização e funcionamento do próprio Executivo e o regime jurídico de seus servidores.
Os autores da ADI também aduziram a inconstitucionalidade material da Lei nº 13303/2016, em face do art. 173, §1º, da Constituição Federal.
Sustentaram que o Estatuto das Estatais apresenta abrangência excessiva, ou seja, vai além do que foi determinado pela Constituição Federal, pois alcança a totalidade das empresas públicas e sociedades, quando o artigo 173, §1º, prevê o estabelecimento do estatuto jurídico das estatais somente para as estatais que exploram atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou prestação de serviços.
Além disso, argumentaram que a Lei nº 13303/2016 impõe excessivas limitações e obrigações que restringem a capacidade de gestão das próprias empresas estatais. Também alegam que a amplitude do Estatuto torna inviável que os Estados e Municípios exerçam sua capacidade de auto-organização, nos termos dos arts. 25 e 30, incisos I e II, da Constituição Federal, no que se refere a regulamentação legislativa das empresa estatais criadas pelos demais entes da federação.
Nota-se que a Lei nº 13303/2016 buscou acabar com as indicações políticas para os cargos de diretoria das empresas estatais. Porém, os autores da ADI alegam que as restrições previstas na lei para investidura em cargos de gestão nas empresas estatais ofendem o princípio da igualdade (caput do artigo 5º da CF) e o direito de liberdade de associação sindical (art. 8º da CF), uma vez que, entre os que se encontram de impedidos de integrar o conselho de administração e a diretoria da estatais estão as pessoas que atuaram, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participantes da estrutura decisória de partido político e aqueles que exerçam cargo em organização sindical.
Os autores da ADI fazem a seguinte afirmativa na petição inicial: a lei parte da lógica da criminalização da militância partidária (…) ou da concepção de que a simples participação nessas atividades e a posterior investidura em cargos de direção em empresas estatais revela conduta imprópria a ser punida.
Por fim, os autores da ADI alegaram que o Estatuto das Estatais também é inconstitucional porque fere a livre concorrência, nos termos do inciso IV do art. 173 da Constituição Federal, na medida em que impõe às estatais que exploram atividade econômicas em regime de competição com o mercado regras que não são aplicáveis às empresas privadas que atuem no mesmo ramo.
Nestes termos, os autores pediram a concessão de medida cautelar a fim de que seja suspensa a Lei nº 13303/2016, em sua totalidade, ou, alternativamente, os arts. 1º, 7º, 16, 17, 22 e 25 da Lei, aplicando-se interpretação conforme a Constituição para que as demais normas sejam direcionadas exclusivamente às empresas públicas e sociedades de economia mista que explorem atividade econômica em sentido estrito, em regime de competição com o mercado. No mérito, solicitam a procedência do pedido.
Em 28/09/2018 foi realizada audiência pública para a discussão do tema referente à transferência de controle acionário de empresas públicas, sociedades de economia mista e de suas subsidiárias ou controladas.
Posteriormente, em 27/06/2018, o Relator Ministro Ricardo Lewandowski concedeu parcialmente a medida cautelar pleiteada, para conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 29, caput, XVIII, da Lei nº 13.303/2016, afirmando que a venda de ações das estatais exige prévia autorização legislativa, sempre que se cuide de alienar o controle acionário, bem como que a dispensa de licitação somente pode ser aplicada à venda de ações que não importem a perda de controle acionário da estatal.
Recentemente, na sessão extraordinária de 06/06/2019, os ministros do STF referendaram a medida cautelar parcialmente concedida para fixar o seguinte entendimento: i) a alienação do controle acionário de empresas públicas e sociedades de economia mista exige autorização legislativa e licitação; e ii) a exigência de autorização legislativa, todavia, não se aplica à alienação do controle de suas subsidiárias e controladas. Nesse caso, a operação pode ser realizada sem a necessidade de licitação, desde que siga procedimentos que observem os princípios da administração pública inscritos no art. 37 da Constituição, respeitada, sempre, a exigência de necessária competitividade.
Desse modo, portanto, até o momento, a ADI nº 5624 não teve o seu mérito apreciado pelo colegiado do Supremo Tribunal Federal.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observa-se ao longo do tempo que, num conflito entre o interesse público e o privado, ora o Estado adota um visão lucrativa para as empresas estatais, ora busca garantir seus fins sociais, independentemente da obtenção de lucro.
Assim, conforme apresentado neste trabalho, a ingerência do Estado no controle das empresas públicas e sociedades de economia mista sempre foi fator determinante para compreender o ciclo histórico de oscilação entre a estatização, norteada pelo regime de direito público, e a privatização, pautada no regime de direito privado.
Em meio a um frágil contexto de descrédito social causado pelos sucessivos escândalos de corrupção envolvendo diversas empresas estatais, o Estado busca ter mais controle por meio da Lei nº 13303/2016, que 17 (dezessete) anos após a EC nº 19/1998, institui o Estatuto Jurídico das empresas públicas, das sociedades de economia mista e suas subsidiárias, nos termos do §1º do art. 173 da Constituição Federal.
De forma muito abrangente, a Lei nº 13303/2016 submeteu aos seus ditames todas as empresas estatais, a despeito da diferenciação entre as empresas estatais prestadoras de serviços público e as que exploram atividade econômica ou mesmo da distinção entre as estatais que atuam e as que não atuam em regime de exclusividade no mercado.
Por outro lado, o Estatuto deixou claro que suas regras não se aplicam quando as empresas estatais estiverem comercializando seus produtos ou prestando serviços diretamente e na contratação de particular com características que representam oportunidade de negócio definida e específica no mercado em que atua.
Contudo, é certo que a diferença prática entre os atos de gestão e atos de autoridades dos dirigentes das estatais, tal como é hoje, continuará a ser objeto de ações judiciais perante os Tribunais Superiores.
Em essência, o Estatuto das Estatais normatizou matérias importantes como os requisitos mínimos para nomeação de cargos de governança das estatais e as regras de controle e transparência de gestão e de finanças, na expectativa recuperar a confiança da sociedade e do mercado financeiro nas empresas estatais.
Em matéria de licitações e contratos, a Lei nº 13303/2016 seguiu, em grande parte, o modelo adotado na Lei nº 12462/2011, que estabelece o Regime Diferenciado de Contratação, apesar das críticas jurídicas e restrições do Tribunal de Contas da União com relação a este modelo.
De toda sorte, pode-se concluir que, em que pese a Lei nº 13303/2016 já esteja em vigor, há grandes chances de que futuras decisões do Supremo Tribunal Federal, na Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 5624, modifiquem substancialmente os termos do Estatuto.
REFERÊNCIAS
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