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Casei com meu filho. E agora?

Agenda 23/04/2024 às 15:55

O projeto de lei 3.369/2019, da forma como está redigido, permite que se obtenha legitimação de uniões hoje civilmente proibidas pelos laços de sangue.

Resumo: O presente estudo tem o objetivo de demonstrar que o projeto de lei 3.369/2019, a pretexto de estabelecer o estatuto da família do século XXI, tem como objetivo favorecer toda forma de união entre pessoas do mesmo sexo ou de sexo oposto, baseado no amor ou na socioafetividade, independentemente de consanguinidade, gênero, orientação sexual, nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou pessoas que assim sejam consideradas, situação que pode dar margem a uniões espúrias e incestuosas proibidas pela legislação civil em vigor.

Palavras-chave: Família – Parentesco - Casamento – União Estável – Gênero Sexual – Poliamor – Socioafetividade - Incestuosidade - Impedimento.


1. Introdução

Esta semana recebi um WhatsApp de uma amiga que dizia assim: “Vou me casar com meu filho”. Fiquei perplexo e indaguei: não estou entendendo. Seja mais clara. Ela, então, explicou: “estou com uma procuração da noiva de meu filho para casar com ele”. Só, então, entendi que minha amiga representaria a futura esposa do filho dela na cerimônia matrimonial, conforme permite o art. 1.535 do Código Civil.

A situação remeteu-me a uma profunda reflexão sobre a possibilidade de, na realidade, pessoas ligadas por vínculo de parentesco próximo virem a contrair núpcias, tais como ascendentes e descendentes, irmãos, adotante e adotado, etc.

Os enlaces matrimoniais entre pessoas da mesma família biológica não era uma prática comum entre os povos antigos, embora existam registros na bíblia e na história da humanidade de envolvimento sexual e até casamento consumado entre parentes consanguíneos.

Com efeito, o antigo testamento da bíblia sagrada, no gênesis e em outros livros, narra relações espúrias entre pais e filhos, irmãos entre si, tios e sobrinhos, genros e noras, avós e netos. O exemplo de Ló é referência, nesse aspecto, como primeiro caso de incesto, ao manter relação sexual com as próprias filhas, após ser embriagado por elas.

Do mesmo modo, a história do antigo Egito e da antiga Roma revela que faraós, como Ramsés II1 e Tuntacamon2, bem como imperadores, como Nero3 e Calígula4, mutatis mutandi, casaram com a própria mãe, irmãs e com filhas, mantendo relações incestuosas para não perderem a linhagem sucessória do poder. Na antiga Grécia, uma lenda mitológica retrata a tenebrosa história do casamento de Édipo com sua mãe Jocasta, após matar seu pai Laio.

O período fetichista da humanidade foi dominado por interesses vários, preponderando os instintos que aceitavam o incesto como um ato natural e legítimo. A evolução mental do homem trouxe como consequência a percepção do sentimento familiar, passando o incesto a ser visto como uma relação ilícita, repugnante e moralmente indigna.

Essa concepção nasce essencialmente da religião que, embora não tendo dado origem à família, balizou suas regras, outorgando-lhe status de entidade organizada onde seus membros se respeitam, conhecem cada um a sua descendência e os impedimentos matrimoniais entre eles.

Mas parece que essa evolução ainda não atingiu todos os setores do gênero humano. Nem todos estão satisfeitos em exercitar os parâmetros de “normalidade” socialmente considerados como corretos e, para romper a formalidade reinante, adotam postura e comportamento dissociado dos paradigmas pregados pela moral social.


2. O Poliamor na Legislação Brasileira

O exemplo mais recente dessa excêntrica tendência é a apresentação do projeto de lei n.º 3.369/2019 pelo deputado federal Orlando Silva que pretende instituir o estatuto das famílias do século XXI, o qual estabelece “princípios mínimos para a atuação do Poder Público em matéria de relações familiares.”

Com efeito, o aludido projeto propõe, em seu art. 2.º, caput, o poliamor e reconhece “como famílias todas as formas de união entre duas ou mais pessoas que para este fim se constituam e que se baseiem no amor, na socioafetividade, independentemente de consanguinidade, gênero, orientação sexual, nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou pessoas que assim sejam consideradas.”

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O dispositivo acima transcrito é bem abrangente e, sem sombra de dúvidas, alcança todas as possibilidades de envolvimento amoroso entre pessoas do mesmo sexo ou de sexo oposto, independentemente de grau ou vínculo de parentesco, gênero e orientação sexual.

Uma coisa é certa. Por influência do mencionado projeto de lei, muitas pessoas se sentirão estimuladas a vislumbrar a possibilidade de efetivamente vir a exercer os direitos que a nova lei promete, acaso aprovada.

Por simples exegese, a intenção é permitir uniões matrimoniais ou de outra natureza entre pessoas qualquer que seja a relação de parentesco, de convivência, a identidade de gênero, a orientação sexual, que tenham como espeque o amor e a socioafetividade.

Com essa perspectiva fica aberta a possibilidade de ocorrem, em nosso país, casamentos entre pais e filhos, entre irmãos, entre tios e sobrinhos, entre avós e netos, bem como entre uma infinidade de pessoas que, embora possuam algum impedimento civil, consanguíneo ou de outra natureza, não possam atualmente unirem-se ou envolverem-se afetiva ou sexualmente.

Quando estava preparando este artigo, recebi a notícia de que o projeto de lei alhures citado foi retirado de pauta haja vista a polêmica que suscitou sobre a possibilidade de estar legitimando direitos de famÍlias LGBT, bem como o incesto, a poliafetividade e a pedofilia.

Mas o assunto para este artigo não está encerrado. Explico: há exatamente um ano, recebi uma ação judicial em que uma determinada senhora vem requerer a desconstituição do reconhecimento da maternidade socioafetiva do filho, lavrado através de instrumento público em cartório.

Argumenta a postulante que, após o reconhecimento da aludida maternidade, “a afeição que sentia inicialmente pelo filho passou a ficar mais forte”, e considerando que ela “vinha passando por problemas em seu relacionamento conjugal, os quais afetavam sensivelmente seu lado emocional, procurou no rapaz, que um dia viu como filho, amparo no momento conturbado” da vida dela.

E, finalmente, conclui a peticionária aduzindo que “após ter passado o turbilhão emocional e psicológico que envolveu a requerente, esta viu-se enganada quanto ao verdadeiro sentimento que possuía em relação ao requerido, visto que tal afeição não se configura como de relação entre mãe e filho, mas sim, como o existente entre grandes amigos.”

A demanda proposta demonstra a angústia de uma mãe que outrora nutria pelo filho socioafetivo sentimento materno-filial, de afeto e de carinho, mas que, atualmente, indecisa entre o amor maternal e o passional, expõe-se num apelo lancinante em busca da felicidade. Isto pode ser explicado pela paulatina construção das pulsões erotômonas.

A condição em que essa mãe se encontra supera qualquer juízo apriorístico. Seu interesse libidinal afasta-se de qualquer estereótipo do gênero humano e está ligado ao desejo edipiano transgressivo, único estado imaginário que pode justificar essa falácia passional.

O que fazer? Compreendê-la ou censurá-la? A resposta, sob o ponto de vista legal é óbvia e taxativa, nos termos da legislação civil brasileira em vigor. Não exporemos os pormenores da dogmática jurídica para não incorrermos em prejulgamento. Contudo, no plano das perquirições psicossomáticas, a polêmica será instaurada, qualquer que seja o argumento adotado para justificar ou condenar os fundamentos do pedido judicial.

A sociedade ainda verá muitas manifestações iguais as que aqui relato. Vivemos a época em que novos conceitos desconstroem velhos paradigmas. Será que faríamos a mesma coisa que fazemos o tempo todo se fossemos invisíveis? Sabemos que é muito difícil mostrarmos nossa face oculta. Ela pode revelar o que eu penso a meu respeito, mas não o que os outros pensam de mim.

Mergulhar em si mesmo não é tarefa fácil. Talvez, por isso, Édipo, num gesto de autopunição, furou os próprios olhos para não mais enxergar sua mãe Jocasta, nem envergonhar-se de sua concupiscência, após haver descoberto que se deitara, coabitara e procriara com ela na condição de marido, o que, provavelmente, jamais o faria se soubesse previamente do seu vínculo consanguíneo com a mesma.


3. Conclusão

O projeto de lei apresentado pelo deputado federal Orlando Silva é estarrecedor; não há quem, minimamente intérprete das palavras constante do mesmo, não se aterrorize com a redação proposta, porque ela, por si só, demonstra o quanto de polissemia carrega.

Essa constatação revela o quanto será perigosa a sua aplicação, acaso se torne lei, porquanto não se deve legislar dotando a lei infraconstitucional de expressões anfibológicas que possam conferir-lhe maior poder do que a Constituição Federal e o sistema jurídico republicano.

A interpretação não é um atributo da lei, mas uma prerrogativa do hermeneuta. Por isso, o texto apresentado deve deixar-se compreender, sem ambages, para o jurista e para o juiz. Esta preocupação não foi observada no projeto em tramitação pela sua ambiguidade.

Talvez, por essa razão, em boa hora, o projeto foi retirado de pauta numa demonstração de que precisa ser pensado para uma sociedade cujo estágio evolutivo não permite a inversão de valores morais, o achincalhe da família, o desprezo pelos vínculos do parentesco, o aviltamento da consaguinidade e a banalização da dignidade humana.


Notas

1 Casou-se com quatro de suas filhas.

2 Casou-se com a própria irmã.

3 Casou-se com a sua mãe Agripina.

4 Mantinha relações sexuais incestuosas com as irmãs.

Sobre o autor
José Eulálio Figueiredo de Almeida

Professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Juiz de Direito Titular da 8.ª Vara Cível em São Luís. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Especialização em Processo Civil pela UFPE. Especialização em Ciências Criminais pelo UNICEUMA. Doutor em Direito e Ciências Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo. Casei com meu filho. E agora?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7601, 23 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/76237. Acesso em: 22 dez. 2024.

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