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O direito diante das três ecologias: ambiental, social e mental

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Agenda 04/09/2019 às 11:12

O equilíbrio ecológico é uma meta difícil de ser alcançada no mundo globalizado, onde os mais diversos interesse econômicos, sociais e políticos geram uma complexa rede de conflitos cuja solução exige uma tríplice abordagem: ambiental, social e mental.

Introdução

O senso comum costuma imaginar que, através de mecanismos tecnológicos e do rigoroso exercício do punitivismo, através do sistema jurídico, seria possível resolver, ou pelo menos minimizar, o desequilíbrio ecológico. Porém, consertar o estrago que a civilização humana vem fazendo no meio ambiente do Planeta Terra implica em praticar ações e fazer reflexões mais abrangentes. A aparição do moderno Direito Ambiental vem trazendo grandes contribuições, mas ajuda, concomitantemente, a criar a ilusão de ser possível restabelecer o dano causado na natureza pelo modelo econômico predominantemente capitalista, apenas punindo os infratores da legislação de proteção ambiental.

Há bastante menosprezo pela Ecologia como um conjunto complexo de fatores que levam ao desequilíbrio ecológico, em especial pela ecologia social e pela ecologia mental, que se interligam visceralmente com o problema da destruição permanente do meio ambiente. Não se costuma dar muita ênfase à visão holística da biosfera. O pensamento sobre a totalidade, que era uma característica marcante da filosofia grega, vem sendo substituído há muitos séculos pelo pensamento cartesiano fragmentado em especialidades. Isso é muito prejudicial e inaceitável num assunto com a dimensão planetária do desastre ecológico atual que ameaça a própria existência da vida humana. Assim assumimos que: “(...) para que possamos entender qualquer elemento da biosfera e em especial o homem, é indispensável enxergá-lo holisticamente (holos, na língua grega, é um advérbio que significa em sua totalidade)” (COMPARATO, 2006, p. 19).

Para abordar a Ecologia Ambiental há necessidade de compreender as interações entre ecossistemas biológicos “naturais”, estudado pelos cientistas, com a ação do homem nessa era atual que está sendo denominada de Antropoceno, o mundo sob comando hegemônico do ser humano.

É público e notório que o Direito Positivo, posto pelo Estado, há muito tempo vem deixando de lado a perspectiva da totalidade holística, passando a funcionar casuisticamente apenas como um fator de estabilização social. Ao normatizar a atividade social, o Direito vem agindo de modo artificial, contrariando frequentemente a realidade dos fatos. É imposto obrigatoriamente pela autoridade e soberania do Estado com a finalidade de funcionar como um estabilizador contrafático, ou seja, um mero auxiliar da homeostase social. A preocupação aumenta quando o normativismo e o punitivismo aparecem como as principais atividades do Direito Ambiental em relação à regulamentação e correção das infrações legais praticadas em questões ambientais.

A proposta desta reflexão é ir além da simples Ecologia Ambiental. É preciso incluir, no mínimo, no centro da abordagem ecológica, a Ecologia Social e Mental, conforme preconizado no célebre estudo do pensador francês, Félix Guattari, no livro publicado em 1989 na França, denominado “Les trois écologies”, que serviu de base para este estudo.


Muito além da ecologia ambiental

Abordando as três ecologias (ambiental, social e mental), como um todo holístico, talvez possa existir alguma possibilidade de transformações efetivas do comportamento sócio- econômico do modelo capitalista que está na raiz da deterioração do meio ambiente. Nesse sentido, o pensador e militante francês afirma que:

Não haverá resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária e com a condição de que se opere uma autêntica revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais (GUATTARI, 1990, p. 9).

Guattari aponta a relação entre a subjetividade e a política: a construção da subjetividade é um processo coletivo e político. Antes, a subjetividade era considerada um produto exclusivo de uma instância psíquica ou individual; para Guattari, a perspectiva coletiva é determinante nos processos de subjetivação. Ao invés de sujeito, seria melhor usar o termo componentes de subjetivação, num constante movimento dinâmico de mudança das percepções, pois o sujeito não é estático, está sempre mudando de atitude como a natureza também muda. Em As três ecologias (GUATTARI, 1990, p. 30-31), a relação entre capitalismo e subjetividade é explicitada em suas várias formas. Ao lado das semióticas de subjetivação, o autor enumera mais três regimes, todos eles estreitamente ligados ao capitalismo mundial integrado: as semióticas econômicas (instrumentos monetários, financeiros, contábeis); as semióticas jurídicas (título de propriedade, legislação, regulamentações diversas); as semióticas técnico-científicas (planos, diagramas, programas, estudos, pesquisas).

Durante muito tempo, esses três campos, Economia, Direito e Ciência, pareciam ter o poder de tudo controlar e tudo resolver. Nossa civilização vem encarando a crise ambiental como um problema objetivo a ser solucionado, sobretudo pelos meios técnicos e científicos. Porém, é preciso adicionar outras competências. O planeta vive uma complexa crise socioambiental, que requer urgentemente uma abordagem holística. Aparece, em consequência, uma forte necessidade de trabalhar com a questão da “subjetivação” o plano psíquico e mental do ser humano.

Para se agir no sentido de construir novas relações entre o capital e a atividade humana, as tomadas de consciência ecológicas deveriam ter em mira os modos de produção da subjetividade – isto é, de conhecimento, cultura, sensibilidade e sociabilidade. Assim, na busca da superação da perspectiva de resolução tecnocrática dos problemas ambientais, Guattari (1990, p.8) propõe o conceito de ecosofia: “só uma articulação ético-política – a que chamo ecosofia – entre os três registros ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana) é que poderia esclarecer convenientemente tais questões”.

A Ecologia Social deveria trabalhar na reconstrução das relações humanas em todos os níveis. Para Guattari, o poder capitalista se deslocou, se desterritorializou – e ampliou seu domínio sobre o conjunto da vida social, econômica e cultural, sempre se infiltrando nas profundezas dos inconscientes extratos subjetivos. Por isso, não é possível se opor a tais poderes apenas de fora, através de práticas sindicais e políticas tradicionais: “tornou-se igualmente imperativo encarar seus efeitos no domínio da ecologia mental, no seio da vida cotidiana individual, doméstica, conjugal, de vizinhança, de criação e de ética pessoal” (GUATTARI, 1990, p. 33).

Não se deve separar a ação sobre a psique daquela sobre o socius e o ambiente: “a recusa a olhar de frente as degradações desses três domínios, tal como isto é alimentado pela mídia, confina num empreendimento de infantilização da opinião e de neutralização destrutiva da democracia” (GUATTARI, 1990, p. 24). Por isso, ele agrupa as práticas sociais e individuais em três rubricas complementares: “a ecologia social, a ecologia mental e a ecologia ambiental sob a égide ético-estética de uma ecosofia”. É preciso apreender o mundo através dos três vasos comunicantes que constituem esses três pontos de vista ecológicos.

A visão de Guattari é premonitória do que vem acontecendo neste momento no mundo globalizado:

Se não houver uma rearticulação dos três registros fundamentais da ecologia podemos infelizmente pressagiar a escalada de todos os perigos: os do racismo, do fanatismo religioso, dos cismas nacionalitários caindo em fechamento reacionários, os da exploração do trabalho das crianças, da opressão das mulheres... (GUATTARI, 1990, p. 16).

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Para Guattari, as três ecologias – ambiental, social e mental – deveriam ser concebidas como formando uma disciplina comum ético-estética e, ao mesmo tempo, como distintas umas das outras do ponto de vista das práticas que as caracterizam. Esse processo de integração implicará em novas práticas estéticas, novas práticas de si na relação com o outro, com o estrangeiro, com o estranho. Desse modo, devemos trabalhar as interações das ecologias:

É exatamente na articulação da subjetividade em estado nascente, dos socius em estado mutante, do meio ambiente no ponto em que pode ser reinventado, que estará em jogo a saída das crises maiores de nossa época (GUATTARI, 1990, p. 55).

Essa ecologia integral pede abertura para outras categorias que transcendam a linguagem das ciências exatas ou da biologia, da tecnologia, do direito, da economia. Nessa mesma linha , como exemplo muito relevante e contemporâneo, a Igreja Católica abordou pela primeira vez em 2015 o drama que o Planeta Terra está vivendo, publicando a Encíclica denominada “Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum”, pelas mãos do Papa Francisco .Esse Papa justamente adotou o nome e a filosofia de São Francisco (1182-1226), santo ecológico cuja preocupação central era a preservação da natureza e também o trabalho com os pobres que não usufruíam do bem-estar que a terra produz para todos . Ensina a Encíclica que a cultura ecológica não pode ser reduzida a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição: “o que está acontecendo põe-nos perante a urgência de avançar em uma corajosa revolução cultural” (FRANCISCO, 2015, p. 94).

Nesse sentido, a Encíclica faz a seguinte consideração sobre a necessidade de modificar as relações humanas para sanar a natureza degradada:

Se a crise ecológica é uma expressão ou uma manifestação externa da crise ética, cultural e espiritual da modernidade, não podemos iludir-nos de sanar a nossa relação com a natureza e o meio ambiente, sem curar todas as relações humanas fundamentais (FRANCISCO, 2015, p. 98).

Vivemos uma época de antropocentrismo: o ser humano dominou a natureza. Mas não haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo. Continua a Encíclica: “não há ecologia sem uma adequada antropologia”.

Quando a pessoa humana é considerada apenas mais um ser entre outros, que provém de jogos do acaso ou de um determinismo físico, corre o risco de atenuar-se nas consciências, a noção da responsabilidade. Um antropocentrismo desordenado não deve necessariamente ser substituído por um “biocentrismo”, por que isto implicaria introduzir um novo desequilíbrio que não só não resolverá os problemas existentes, mas acrescentará outros (FRANCISCO, 2015, p. 97).

Ou seja, essa discussão binária entre ser antropocêntrico ou biocêntrico, não resolve a questão da finalidade da vida. O antropocentrismo não pode gerar o caos no planeta, tem de ser repensado concomitantemente com a busca do sentido da vida humana? Assim pensar a finalidade da vida é recolocar sempre as mesmas três perguntas básicas para a ciência e as religiões: De onde viemos? O que somos? Para onde vamos? Essas perguntas se relacionam com as três ecologias. Se a globalização vem enfatizando a tecnologia e o bem estar social como o elemento fundamental das sociedade agora é preciso uma nova mentalidade Ecosófica que trabalhe para recompor as práxis humanas subjetivas nos mais diversos domínios. Continua Guattari:

Em todas as escalas individuais e coletivas, naquilo que concerne tanto à vida cotidiana quanto à reinvenção da democracia – no registro do urbanismo, da criação artística, do esporte etc – trata-se, a cada vez, de se debruçar sobre o que poderiam ser os dispositivos de produção de subjetividade, indo no sentido de uma re-singularização individual e/ou coletiva (GUATTARI, 1990, p. 15).

A militância ecológica por vezes reforça palavras de ordem estereotipadas e reducionistas, embaladas pela presença na mídia. Para Guattari, a luta pela ecologia não precisa abandonar objetivos unificadores, tais como a luta contra a fome no mundo, o fim do desflorestamento ou da proliferação das indústrias nucleares. Ele pensa numa perspectiva ético/política que atravesse questões do racismo, do falocentrismo, dos desastres de um urbanismo que se queria moderno, de uma criação artística libertada do sistema de mercado etc. Então, a Ecosofia Social trabalhará para desenvolver práticas específicas “que tendam a modificar e a reinventar maneiras de ser no seio do casal, da família, do contexto urbano, do trabalho etc” (GUATTARI, 1990, p. 15-16). É preciso pensar nas mutações existenciais como um todo.

A ecologia ambiental e a ecologia social convergem para a ecologia mental, onde a questão da subjetivação aparece como o cerne a ser trabalhado. A concepção de subjetividade de Guattari não emerge de uma singularidade do sujeito; a vida e o mundo é que estão plasmados nessa subjetividade. Não se trata de uma instância individual; muitos vetores a compõem. A novidade é a descentralização da noção de subjetividade em favor de uma perspectiva coletiva.

As ciências humanas e as ciências sociais deixaram escapar as dimensões intrinsecamente evolutivas e criativas dos processos de subjetivação. O pensador e militante reforça a importância da ecologia mental, que deve ser especialmente considerada para o processo de transformação social-ecológica. Para trabalhar novas configurações das questões ambientais, é preciso considerar o entrecruzamento das três ecologias. A ecosofia mental proposta por Guattari (1990, p. 16) busca procurar antídotos para a uniformização midiática, o conformismo das modas, as manipulações da opinião pela publicidade e pelas sondagens, privilegiando a produção das diferenças.

Vejamos então onde entra a função do Direito diante das três ecologias, numa perspectiva transdisciplinar.


Função do Direito Ambiental, Dogmática Jurídica e Transdisciplinaridade

Como ensina Hilton Japiassu com muita assertividade:

“Se é verdade que a coisa mais produtora de cultura é o sonho capaz de imaginar um mundo possível melhor; e se o objetivo utópico do transdisciplinar é a unidade do saber , o grande desafio lançado ao pensamento nesse início de século e milênio é a contradição entre , de um lado, os problemas cada vez mais globais, interdependentes e planetários (complexos) , do outro a persistência de um modo de conhecimento ainda privilegiando os saberes disciplinarizados , fragmentados, parcelados e compartimentados.” (JAPIASSU, 2006, P.15)

Nesse sentido a especialização do Direito Ambiental, como de resto de todos os ramos do Direito, tem levado o sistema jurídico positivo a se descolar de sua função social, de seu caráter mediático e teleológico, deixando e lado as grandes questões que representam o interesse da coletividade humana e se fechando na Dogmática Jurídica, strictu sensu .A transdisciplinaridade não é praticada no campo do Direito Positivo.

Isso vem acontecendo sobretudo a partir do século XIX, quando o “direito passou a ser marcado pelo fenômeno da positivação, o qual se caracteriza pela importância crescente da legislação escrita em relação a costumeira, pelo aparecimento das grandes codificações, pela ideias de que as normas jurídicas têm validade quando postas por decisão de uma autoridade competente , dotada de poderes específicos . Essa ideia representou uma transformação importante no Direito Ocidental. Antes do século XIX, o Direito era sobretudo ditado por princípios que a tradição consagrava. O que sempre fora direito era visto como pedra angular do que devia continuar sendo direito. Se alguém queria propor uma mudança, tinha de se justificar, pois a própria mudança era vista como inferior à permanência. Vivia-se assim, numa sociedade relativamente estável, com valores estáveis, capazes de controlar, no seu grau de abstração, a pequena complexidade social (FERRAZ, 1980, p. 80).

Agora a complexidade social é enorme e a questão ecológica representa uma das questões contemporâneas mais complexas. Exige uma abordagem holística e transdisciplinar , reunindo conhecimento de outras disciplinas fora do âmbito jurídico e que o Direito Positivo posto pelo Estado não tem capacidade de fazer.

A UNESCO na Declaração de Veneza em 1987, repeliu os sistemas fechado de pensamento, que é próprio dessa dogmática jurídica abstrata que predomina no Direito Positivo atual, afirmando:

A humanidade deixou de constituir uma noção abstrata: é realidade vital pois está, doravante, pela primeira vez ameaçada de morte a Humanidade deixou de constituir uma noção somente ideal, tornou-se uma comunidade de vida: a Humanidade é, daqui em diante, sobretudo noção de ética: é o que deve ser realizado por todos em cada um.

É justamente nessa perspectiva que Guattari trabalha nas três ecologias, tentando evitar essa ameaça de morte que paira sobre todos nós e que o Direito Ambiental sozinho não vai conseguir evitar. Assim, diz Guattari: “mais do que nunca a natureza não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar transversalmente as interações entre ecossistemas, mecanosfera e universos de referencias sociais e individuais” (GUATTARI, 1990, p. 25).

Cabe assim comentar os limites da Dogmática Jurídica sem o que não vamos poder entender bem em que posição se encontra o Direito diante das três ecologias, objeto deste artigo. Dogma significa alguma afirmação que não se coloca em dúvida. Dogma, etimologicamente, tem sua raiz no grego dokéo (julgar, aparentar) e do latim docere (ensinar), significando “ponto fundamental e indiscutível de uma doutrina religiosa e por extensão de qualquer doutrina ou sistema (cf. Antonio G. da Cunha, no Dicionário Etimológico, RJ, Ed. N Fronteira, 1982, p. 275).

Se o conteúdo da afirmação é verdadeiro ou não, é uma questão secundária. A função do dogma é pacificar uma questão, dar estabilidade a um sistema de pensamento, sobretudo a um sistema de crença, a fim de viabilizar a estabilidade de comportamentos e conceito. Existem, exemplificativamente, diferentes tipos de dogmas: religiosos, científicos, políticos, familiares, jurídicos, econômicos e assim por diante.

A Dogmática Jurídica é justamente a parte do Direito que lida com certezas, com os pressupostos e premissas inquestionáveis colocados pelas normas jurídicas positivadas, com a famosa e sempre desejada “segurança jurídica”. Por exemplo, a validade da sentença judicial com trânsito em julgado é tida como verdadeira dentro do sistema jurídico e por isso deve ser obedecida. Se a sentença é justa ou injusta isso não é problema que interfira na validade da decisão, desde que os requisitos formais tenham sido obedecidos. O tema da Justiça, tão importante no pensamento filosófico greco-romano, foi banido do sistema positivo pela moderna dogmática jurídica, a partir do século XIX. A força da forma, vis formae, acaba se tornando mais importante que o conteúdo da decisão no terreno da dogmática jurídica

Por isso a dogmática jurídica é um modo simplificar a complexidade. Esse modo empobrece as imensuráveis possibilidades mentais do genial ser humano. É apenas um modo de viabilizar decisões, visando a estabilização social como primeira prioridade, oferecendo para isso toda a segurança do sistema do direito positivado.

A moderna neurociência, que pesquisa como funciona o cérebro humano, reconhece ser essa a função homeostática do Direito, ou seja, função de equilíbrio do sistema social, através das leis. O neurocientista Antonio Damásio já observou com clareza:

As convenções sociais e as regras éticas podem ser vistas em parte como extensões da homeostasia no âmbito da sociedade e da cultura. O resultado da aplicação de convenções e regras eficazes é precisamente o mesmo do funcionamento de dispositivos como o metabolismo ou os apetites: um equilíbrio do processo de vida que permita a sobrevida e o bem estar. As constituições que governam um Estado democrático, as leis propostas de acordo com essas constituições e a aplicação dessas leis num sistema judicial são dispositivos homeostáticos. Todos eles estão ligados por um longo cordão umbilical a outros níveis de regulação homeostática básica. Certas organizações mundiais que tiveram o seu começo no século XX, como por exemplo a Organização Mundial da Saúde, a UNESCO, as Nações Unidas, fazem parte dessa tendência humana de estender a homeostasia a uma escala cada vez maior da humanidade (DAMASIO, 2004, p. 182).

Ora, para a questão ambiental, a obediência a dogmática jurídica, sem consciência dos valores fundamentais da ética da vida, do uso da terra para viver melhor e não para produzir lucros a todo custo, é insuficiente para tentar preservar nosso planeta ameaçado por um sistema econômico global no qual o ganho monetário é a finalidade hegemônica da atividade humana.

Com efeito, num mundo leigo, sem valores religiosos, morais e éticos estáveis, dominado pela organização laica constitucional do Estado, sem fundamentos permanentes, sem cultivar e desenvolver a mente solidária das pessoas dentro da comunidade, com incentivo do consumo individual, criamos uma sociedade hedonista, onde o prazer pessoal é a regra máxima, a qualquer custo. Discutir o que é Justiça ou não passou a ser e questão fora do conhecimento do Direito Positivo. O operador da dogmática jurídica é o que ajuda a produzir decisões que ponham fim às inevitáveis controvérsias da vida em sociedade, nos limites do ordenamento jurídico, em nome da segurança e estabilidade.

Porém, a Ecologia é muito complexa, não pede mais dogmática, pede mais conhecimento transdisciplinar e holístico para preservar a ameaçada vida neste planeta. Pensar no equilíbrio ecológico talvez seja o tema mais importante deste nosso século XXI .Podemos estar vivendo os últimos anos da vida na Terra, se as catástrofes climáticas e ambientais previstas se concretizarem. Temos de enfrentar a complexidade da questão ecológica e deixar de lado as respostas simplistas que o Direito vem dando para esse ssunto.

Cabe então indagar: o que é essa complexidade que o Direito tem de enfrentar diante das três ecologias?

Complexus significa o que foi tecido junto; de fato há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) e há um tecido interdependente interativo e inter-retroativo entre o objeto do conhecimento e o seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes em si (MORIN, 2000, p. 38).

Na contramão da interação com o todo, o Direito Positivo, do qual o Direito Ambiental faz parte, optou pela especialização, fechando as questões ecológicas dentro da redoma da Dogmática. Porém, o problema da destruição do meio ambiente é real. A punição dos infratores das leis ambientais não resolve o problema, põe ao fim ao litígio artificialmente, com sanções pecuniárias para acabar com o questionamento social. Por exemplo, a punição de uma empresa que tenha desmatado ilegalmente, não pode ser só em dinheiro. Tem de ser restaurado o dano ambiental por meios ambientais, reflorestando a área desmatada. Qualquer outra punição não poderá jamais ser admitida numa concepção holística fundada nas três ecologias. A monetarização das penas é inadmissível em questões de danos morais e ecológicos, ou seja, precificar a dor psíquica e a violação da natureza não terá mais lugar num novo direito holístico ecológico que precisa ser construido neste século XXI.

Assim também pensa Pierre Weil , propondo o conhecimento holístico para superar a simplificação ultrapassada do conhecimento especializado:

É uma visão em que todo indivíduo, a sociedade e a natureza formam um todo indissociável, interdependente em constante movimento. É uma visão na qual, paradoxalmente, não só as partes de cada sistema se encontram no todo, mas em que os princípios e leis que regem o todo se encontram em toda parte (WEIL, 1991, p. 52).

O conflito ecológico mais do que qualquer outro tem de ser resolvido de fato, não só formalmente por decisões jurídicas .

É certo que:

A decisão jurídica, a lei, a norma consuetudinária, a decisão do Juiz etc. Impede a continuação de um conflito. Ela não o termina através de uma solução, mas o soluciona pondo-lhe um fim. Pôr um fim não quer dizer eliminar a incompatibilidade primitiva, mas trazê-la para uma situação onde ela não pode mais ser retornada ou levada adiante (FERRAZ, 1980, p. 167).

Impedir que uma lesão ao meio ambiente não seja mais discutida após uma decisão judicial é um modo artificial de lidar como conflito, embora seja esse o modo como opera a dogmática jurídica. A justiça da decisão não é levada em conta, as partes são obrigadas a se conformarem com a decisão. Essa maneira da dogmática jurídica de resolver os conflitos, sem a preocupação com o conteúdo justo ou injusto do decisão, não pode mais ser admitida no Direito em geral e em específico nas questões ecológicas. Podemos chegar ao ponto de destruir o planeta mesmo observando as leis ambientais, criando um verdadeiro absurdo entre forma e conteúdo. Não podemos mais sacrificar a complexidade ecológica no altar da decidibilidade exigida pela dogmática jurídica neste assunto em que a vida humana corre o risco de ser extinta. Vamos superar os dogmas antes que esses dogmas ajudem a extinguir a vida no planeta.

Há de ser construído um programa de educação mental para que todas as pessoas tomem consciência da importância do respeito e do amor para com a natureza e com todos os seres vivos, sejam vegetais ou animais não humanos ou animais humanos. Todos os animais são sencientes, hoje sabemos disso, todos tem consciência, ainda que o homo sapiens seja o mais consciente de todos os animais. Aliás, o mais consciente e o mais destrutivo de todos!

Nesse sentido a Mediação Ecológica tem um papel fundamental.

Sobre o autor
Ademir Buitoni

advogado e mediador em São Paulo, doutor em Direito Econômico pela USP

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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