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Uma distorção da legítima defesa

Agenda 09/09/2019 às 18:22

Estaríamos diante de um erro do tipo permissivo? Será caso de erro de proibição ou ainda um tipo intermediário?

I - O FATO

Por via do projeto denominado anticrime, o governo pretende ampliar a legítima defesa.

Para tanto, contempla o reconhecimento da excludente de ilicitude na hipótese de perigo em face de possível conflito armado. Também sob a escusa de se agir em estado de medo ou surpresa, justifica a ação desmedida de defesa, que se transforma em agressão.

Com essas propostas, se desfigura a excludente da legítima defesa.

Não se pode conceber no ordenamento penal brasileiro uma autêntica licença para matar sem limites.

A proposta trazida à colação é evidentemente inconstitucional.

A interpretação que tem sido dada a tal instituto se formula na possibilidade de descrever uma situação como “a produção de um documento oficial que localiza a morte em questão como decorrente de resistência à autoridade policial, como se tivesse ocorrido um confronto”.

Tem-se quanto ao executor, realizando a diligência sem arrimo nas formalidades legais, que incorrerá, havendo dolo, no crime de abuso de autoridade.


II - A LEGÍTIMA DEFESA

Exige-se para a legítima defesa:

1.  repulsa a agressão atual ou iminente e injusta;

2.  defesa de direito próprio ou alheio;

3.  emprego moderado de meios necessários;

4.  orientação de ânimo do agente no sentido de praticar atos defensivos.

São necessários os meios reputados eficazes e suficientes para repelir a agressão. Já decidiu o Supremo Tribunal Federal que o modo de repelir a agressão também pode influir decisivamente na caracterização do elemento em exame (RTJ 85/475-7). Nessa linha de pensar, o emprego de arma de fogo não para matar, mas para ferir ou para amedrontar (tiro fora do alvo) poderia  ser considerado, em certas circunstâncias, o meio disponível, menos lesivo, eficaz e, portanto, necessário. Tal solução merece sérios debates numa sociedade que precisa combater o uso de armas.

Há a análise da questão da proporcionalidade, na legítima defesa.


III - A TEORIA LIMITADA DA CULPABILIDADE

Na doutrina, para a chamada teoria limitada da culpabilidade, nota-se que as discriminantes putativas são divididas entre as que ocorrem em relação a pressuposto fático de uma excludente de ilicitude (para uns, erro do tipo permisivo) e quando relacionadas ao limite ou a existência de uma causa de justificação (erro de proibição indireto). Com o devido respeito, penso que o erro na discriminante putativa é o erro de proibição.

Para aquela teoria limitada da culpabilidade, no erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação, ocorre um erro do tipo permissivo. No erro sobre a existência ou sobre os limites de uma causa de justificação, configura-se o erro de proibição, com a exclusão da culpabilidade.

Entre as discriminantes putativas, além da legitima defesa putativa, existe ainda o estado de necessidade putativo, o exercício regular de direito putativo e o estrito cumprimento do dever legal putativo.

O quadro de legítima defesa putativa assim foi conceituada por Nelson Hungria: "Dá-se a legitima defesa putativa quando alguém erroneamente se julga em face de uma agressão actual e injusta, e, portanto, legalmente autorizado à reação que empreende".

O agente se imagina na presença de uma causa, que, se realmente existisse, justificaria sua conduta, ou seja, uma causa de justificação.

Aquele que reage a uma suposta agressão, que se mostrou real apenas em sua imaginação, e que se existisse tornaria a sua ação legítima, age em legítima defesa putativa.

Repete-se o exemplo do agente que supõe que se encontra em meio a um incêndio, dada a quantidade de fumaça e os gritos dos circunstantes, ferindo alguém para safar-se do local e se apura que não havia incêndio (estado de necessidade putativo).

De outro modo, é conhecido o exemplo do policial que, munido de um mandado de prisão, recolhe à prisão A, supondo que este é B, irmão gênio daquele e objeto da ordem judicial (estrito cumprimento do dever legal putativo).

Certo que há, no direito penal, o conceito de crime putativo ou crime imaginário, que se distancia da tentativa inidônea (crime impossível).

Adota-se o entendimento de que a lei penal adotou a chamada teoria objetiva na distinção entre inidoneidade absoluta e inidoneidade relativa de meios e de objeto. A tentativa absolutamente inidônea fica impune.

Por sua vez, o crime imaginário é um fato que o agente julga punível, mas que, na realidade, não é definido como crime pela lei. O crime existe apenas em sua imaginação e essa errônea opinião não bastaria para torná-lo punível. Para Aníbal Bruno (Direito Penal) haveria atipicidade, ausência de tipicidade.

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Para Aníbal Bruno, ainda há erro no crime putativo. O agente erra em supor criminoso o ato que pratica, na realidade não definido na lei como crime. Mas, não seria erro do agente que excluiria o tratamento penal, pois não haveria crime, porque não haveria nenhum tipo legal a que o ato praticado correspondesse. O fato na sua expressão objetiva e na sua elaboração psíquica seria totalmente estranho ao direito punitivo. Isso porque a norma proibitiva só existiria no subjetivo do agente.

 Há, sem dúvida, um enorme abismo entre legítima defesa putativa e legítima defesa real. A primeira existe no conhecimento equivocado do agente em relação aos pressupostos objetivos da legítima defesa enquanto a segunda se configura com a existência concreta desses pressupostos. Aliás, dispõe o artigo 20,§ 1º, do Código Penal: "É isento de pena quem, por erro, plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo". O agente supõe que está agindo licitamente ao imaginar que se encontram presentes os requisitos de uma das causas justificativas presentes na lei.

Estaríamos diante de um erro do tipo permissivo? Será caso de erro de proibição ou ainda um tipo intermediário?

Para isso, penso correto fazer uma divagação com relação a teoria da culpabilidade, desde a teoria normativa até a teoria finalista, para se verificar a dicotomia erro do tipo e erro de proibição.


IV - OS EXCESSOS DO PROJETO

O projeto do ministro Sérgio Moro desconhece os elementos componentes da legítima defesa; abre a porta à subjetividade, oferecendo licença para matar ao acrescentar parágrafo 2.º ao artigo 23, assim redigido: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

Quebra-se, com essa proposta, o eixo central da figura da legítima defesa, consistente em agir para fazer cessar uma agressão, com ânimo de se defender. Na hipótese apresentada por Moro, acolhe-se como legítima defesa uma agressão desnecessária, fazendo dessa excludente um escudo protetor da violência policial, tendo por desculpa o medo, a surpresa ou a violenta emoção, da parte daquele que é especificamente treinado para enfrentar riscos, aliás, naturais ao seu mister.

Mas é inaceitável que pretenda escusar o excesso doloso, consistente em prolongar desnecessariamente uma reação com intenção direta de agredir, sob a escusa de se agir com medo ou surpresa, como bem acentuou o professor Miguel Reale Jr.em artigo para o Estado de São Paulo, em 7 de setembro do corrente ano.

De outra parte, amplia-se especificadamente para os policiais a situação de legítima defesa, ao prever que o agente de segurança pública age licitamente em face de risco iminente de conflito armado, para prevenir injusta e iminente agressão. Redundante a figura: risco iminente de conflito armado para prevenir iminente agressão, como ainda acentuou o ex-ministro Miguel Reale Jr.

Assim a proposta apresenta uma conduta imoderada, desproporcional, objetivando justificar essa nova hipótese de legítima defesa, como excludente.

A tudo isso se somaria a legitimação do famigerado auto de resistência, tão condenado na doutrina.

Essa proposta que escapa aos limites da sensatez é a do excludente de ilicitude, figura jurídica que Bolsonaro defende que seja aplicada a atos de violência praticados por policiais. Em caso de morte, em vez de o policial responder a processos que averiguarão se ele cometeu homicídio sem justificativa plausível, estará sempre preestabelecido que agiu em legítima defesa.

Não haverá investigação. Existe projeto com este objetivo, de autoria do próprio Bolsonaro, em tramitação na Câmara.

Não se desconhecem os riscos que policiais correm ao enfrentar bandidos em terreno perigoso, e muitas vezes usando armas melhores e mais poderosas que as suas. É certo que não se pode considerar normal esta situação. Deve-se enfrentá-la.

Seria legitimar o que chamam de auto de resistência, afrontando-se os limites da razoabilidade empírica. Leve-se ainda em conta a imprescindível aplicação do princípio da reserva de lei.

Urge rechaçar um projeto naquilo que cria para os policiais uma legítima defesa que não existe para os demais, e pode albergar uma proteção excessiva aos policiais.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

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