A recente lei de abuso de autoridade mal está vigente, mas já anda promovendo enormes debates jurídicos a respeito do seu conteúdo. Elencar cada um desses debates levaria um demasiado tempo e uma explosão de pontos e contrapontos jurídicos, portanto, faremos uma análise apenas de um artigo dentro dessa polêmica lei.
O artigo em questão define como crime o ato dos responsáveis pelas investigações antecipar por meio de comunicação, inclusive por rede social, atribuição de culpa ao preso antes de concluídas as apurações necessárias e formalizada a defesa (art. 38 da lei 13.869/2019). A pena é detenção de 06 meses a 02 anos e multa, além de reflexos nas áreas cível e administrativa.
O ponto polêmico sobre o citado artigo resvala nas populares reportagens realizadas por canais de TV aberta, voltadas para a rotina criminal do Brasil. Nessas ações da mídia se entrevista o preso, testemunhas, familiares da vítima bem como o próprio delegado responsável pelo caso e é nesse ponto que se encontra um grave problema. O investigador, a fim de que não seja indiciado pelo crime do artigo 38 da lei de abuso de autoridade, não poderá atribuir culpa ao detido sem antes implicar contra este, a acusação formal.
Esse ponto resvala diretamente em dois pilares do Direito Constitucional: o direito de imagem do preso e a necessidade que a Administração tem para com a Justiça e a manutenção da Ordem Pública.
Exemplificando, vemos todos os dias na TV aberta bem como nos canais de redes sociais uma grande quantidade de filmagens, declarações, perseguições, revistas, prisões e entrevistas realizadas com detidos em delegacias. Maioria dessas ações passa longe de se buscar preservar a imagem do preso sendo realizadas justamente com o intuito de dar publicidade ao rosto, nome e características físicas das pessoas ali envolvidas. Em um mundo onde tudo se “viraliza” em questões de segundos, respeitar a imagem de uma pessoa cometendo crime chega a ser até mesmo irônico para muitos.
Por outro lado, há publicidades de criminosos capturados que ajuda muito na efetivação da Justiça frente à sociedade. Um caso icônico e recente deu-se no Distrito Federal quando foi exposto o rosto de um cozinheiro que havia matado a advogada Letícia Sousa Curado Melo, de 26 anos (CORREIO BRAZILIENSE). Após ter sua face revelada para a sociedade o agressor recebeu outras acusações a respeito da mesma conduta por outras vítimas que haviam sido violentadas por ele. O papel da imprensa no caso se mostrou importante pois foi o canal responsável por chamar a sociedade para que, observando os fatos, viesse a se manifestar e, assim, verificar a aplicação da Justiça de um modo amplo, vindo a beneficiar outras vítimas com o conhecimento.
Exemplos à parte, um grande debate se segue. A imagem das pessoas possuí uma grande valoração jurídica e encontra-se devidamente expressa em um conjunto de direitos atinentes a personalidade sendo irrenunciáveis e intransferíveis. Conforme nos ensina Jeferson Botelho Pereira, “os direitos de personalidade são vinculados ao direito da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, III, da Constituição da República, o que se torna necessário para o desenvolvimento das potencialidades morais, físicas e psíquicas de toda a pessoa.” Ou seja, o dever de preservar a imagem do preso não é novidade da lei de abuso de autoridade, mas sim, um dos mais robustos preceitos fundamentais.
Esse direito deve ser prontamente respeitado quando solicitado por qualquer pessoa, em respeito ao art. 20 do Código Civil, que diz:
Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Obviamente, todo e qualquer preso na situação de detenção ou recolhimento, busca evitar expor o seu rosto. Fatos muitas vezes ignorados por repórteres, cinegrafistas, populares que presenciam a prisão e até mesmo os agentes policiais que algumas vezes valem daquele fato para promover uma reação da população em redes sociais. Nesse contexto, age corretamente o Legislador definindo o crime do art. 38 da Lei de Abuso de Autoridade de modo a impedir que o investigador venha a atribuir uma culpa ainda não formalizada perante a Justiça, em respeito ao direito de imagem e, sobretudo, ao princípio da presunção de inocência.
Em concordância com a citada argumentação, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias estabeleceu regras mínimas para o tratamento dos reclusos, tais regras foram adotadas pelo Primeiro Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, que ocorreu em Genebra no ano de 1955. Em destaque, tem-se no teor dessas regras o seguinte item em relação ao tratamento do preso:
61. O tratamento não deve acentuar a exclusão dos reclusos da sociedade, mas sim fazê-los compreender que eles continuam fazendo parte dela. Para este fim, há que recorrer, na medida do possível, à cooperação de organismos da comunidade destinados a auxiliar o pessoal do estabelecimento na sua função de reabilitação das pessoas. Assistentes sociais colaborando com cada estabelecimento devem ter por missão a manutenção e a melhoria das relações do recluso com a sua família e com os organismos sociais que podem ser-lhe úteis. Devem adoptar-se medidas tendo em vista a salvaguarda, de acordo com a lei e a pena imposta, dos direitos civis, dos direitos em matéria de segurança social e de outros benefícios sociais dos reclusos.
Isso significa que o detido não deve ser encarado como inimigo da sociedade, mas como um ser humano que ainda pode se valer dos valores sociais de maneira correta após o devido cumprimento e pagamento da punição que venha a ser imposta pelo Estado na proporção do seu erro.
Embora o que já foi debatido venha a possuir sua “beleza jurídica” do dever-ser. Muito se foge da realidade onde se veem presos com extensa ficha criminal sendo presos frequentemente de modo a pensar que a readaptação nesses casos venha a ser um sonho distante. E são nesses casos que se descansa o dever do Estado manter a Ordem Pública através da publicidade da periculosidade de certos indivíduos. Traficantes e chefes de Facções Criminosas devem ter seus nomes, rostos e crimes revelados pois é útil para o Estado saber até quando vai o império criminosos destes frente à sociedade.
Guilherme de Souza Nucci, em seu brilhante livro chamado Direitos Humanos versus Segurança Pública nos alerta que deve se considerar que a criminalidade não pode ser tida como comum nos dias de hoje. Ela se verifica em alguns casos de forma extrema e violenta. Ainda de acordo com o doutrinador, atualmente há criminosos que superam as forças policiais em relação a armamento e assemelham-se aos terroristas de países orientais tomados por guerras e caos. Preservar a identidade desses criminosos a fim de não atribuir a estes mera culpabilidade em uma entrevista ou exposição em rede social significa mantê-los fora da visão da população, escondidos e protegidos em meio a destruição que causam na sociedade.
Em defesa da Publicidade. Muito além do que mera divulgação, esse ato sugere o respeito à liberdade de imprensa, a garantia da Ordem Pública e ao direito do cidadão de conhecer das ações do Estado de modo a construir sua opinião frente aos milhares de casos que recaem no país todos os dias. Reconhecer o assassino do seu familiar após este passar em um programa de TV ou em uma rede social é um grande exemplo da satisfação promovida pelos princípios elencados nesse parágrafo.
Todos os argumentos citados, todavia, devem ser ponderados de proporcionalidade. De um lado, deve-se respeitar a imagem do recluso. De outro, deve-se promover a divulgação de prisões em favor da supremacia do interesse público, respeitando todas as garantias constitucionais existentes. Conforme narra Jeferson Botelho Pereira:
“Repisa-se que nos casos de veiculação de imagem de pessoas presas, em que a divulgação foi viabilizada por representantes do poder estatal, estes tem o dever de atuar sempre a favor da supremacia do interesse público, num viés coletivo, portanto, de caráter dúplice, no sentido de assegurar com efetividade o direito da Administração da Justiça e a necessidade de manutenção da ordem pública. Entrementes, estes mesmos representantes devem zelar pelos direitos daqueles que estão sob a custódia estatal, no caso as pessoas que se encontram presas ou detidas. Assim, os direitos atinentes à personalidade do preso, entre eles a proteção ao direito de divulgação de sua imagem, não podem ser deliberadamente infringidos, já que conforme explanado, é garantia constitucional.”
Voltando à proposta inicial do presente debate. Muito deixa a desejar a redação do art. 38 da Lei 13.869/2019 em relação à interpretação. Embora seja um artigo que venha a prevenir abusos das forças investigativas como já dito, ela peca por não possuir um conteúdo claro e restrito ao crime em si. Primeiro porque não traz ressalvas à conduta do investigador, vindo a condenar qualquer motivo que este tenha em relação a realizar tal declaração sobre o preso. Segundo porque ignora completamente os demais princípios relativos ao assunto tais como o de liberdade de imprensa, o princípio da publicidade, a supremacia do interesse público, a manutenção da ordem pública, a liberdade de opinião. Princípios que foram subjugados para satisfazer a presunção de inocência e a preservação da imagem do preso sem o devido e clássico enfrentamento dos princípios constitucionais. O terceiro ponto encontra-se na atribuição de culpa e o modo que esse termo pode ser interpretado pelos operadores do direito. Dizer, por exemplo, que determinado indivíduo está sendo investigado por crime X ou que foi preso em flagrante delito por praticar o crime Y pode vir a não enquadrar no verbo “atribuir culpa” ou, ao contrário, tonar a atividade investigativa uma tarefa arriscada. O quarto e último ponto encontram-se na formalização da acusação. É impensável que a sociedade tenha que aguardar o recebimento da denúncia para tomar conhecimentos básicos a respeito de um crime bárbaro que venha a ocorrer e que, de certa forma, venha a afetá-la.
Todos esses fatores acabam por intimidar o investigador de modo a não dar publicidade aos crimes cometidos no bojo da sociedade e assim, por consequência, omitir fatos relevantes para a sociedade que, em contrapartida, deixará de ajudar as autoridades policiais com depoimentos, provas e avaliações sociais.
Por hora, ainda se verifica esperança justamente em um dos artigos que restringem a exposição da pessoa em respeito ao seu direito de imagem. Novamente, acionamos o teor do artigo 20 do Código Civil de 2002 no qual afirma que, sendo necessárias para a Administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, poderá ser divulgados escritos, transmissão da palavra ou a exposição da imagem de pessoas, ressalvada a indenização quando lhe resultar em dano ou mácula injusta. Assim sendo, mesmo com a pressão exercida pela nova Lei de Abuso de Autoridade, o investigador ainda tem o dever e é resguardado pela lei para divulgar a imagem de presos, desde que isso venha a atender a supremacia do interesse público, muito embora, fique a mercê de ser tido como criminoso diante de um artigo de teor amplo e sem solidez interpretativa como vem apresentado o artigo 38 da Lei 13.869/2019.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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________. Lei nº 13.869, de 05 de setembro de 2019. Dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade; altera a Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, e a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994; e revoga a Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965, e dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13869.htm. Acesso em 7 out. 2019.
PEREIRA, Jeferson Botelho. Perspectivas da colisão de direitos fundamentais: Direito de imagem do preso e a dúplice necessidade de administração da Justiça e manutenção da ordem pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3997, 11 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28214. Acesso em: 7 out. 2019.
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NUCCI, Guilherme de Souza. Direitos humanos versus segurança pública / Guilherme de Souza Nucci. – Rio de Janeiro: Forense, 2016.