Estão sujeitas à lei expressa ou tacitamente escolhida
Os bens; e
as obrigações.
Confrontando esta doutrina com a de SAVIGNYfacilmente se verifica que o seu traço mais característico reside na importância atribuída ao princípio da nacionalidade. Já no sistema de SAVIGNY, as leis pessoais (de aplicação extraterritorial) ocupavam um lugar preponderante. Mas é na doutrina italiana que, pela primeira vez, a lei pessoal nos aparece identificada com a lei nacional. O velho princípio do domicílio foi substituído, na doutrina de MANCINI, pelo princípio da nacionalidade.
1.14.2.2.3) O sistema de PILLET:
Para PILLET, uma solução justa dos conflitos de leis deve derivar da natureza da lei, como expressão da vontade soberana do legislador. Tanto quanto possível, deve procurar manter-se na lei (considerada nas relações internacionais) as qualidades que ela tem nas relações internas. Deste modo, conseguir-se-á sacrificar de cada lei nacional, na resolução dos conflitos de leis, apenas o que for estritamente indispensável para a justa conciliação das soberanias.
Encaradas na perspectiva do direito interno, todas as leis são de aplicação geral e, ao mesmo tempo, de aplicação permanente. Se, porém, as considerarmos na sua aplicação às relações internacionais, teremos de admitir que uma destas qualidades tem de ser sacrificada. A lei ou há-de ser geral (aplicando-se a todos os habitantes do território, quer sejam nacionais ou estrangeiros), ou permanente e extraterritorial, acompanhando no estrangeiro os súbditos do Estado legislador e, reciprocamente, deixando de aplicar-se no território deste Estado aos estrangeiros.
Ou generalidade ou permanência. Sacrificando-se a generalidade, a lei será extraterritorial; sacrificando-se a permanência, a lei será territorial. Assim, na perspectiva de PILLET, o problema dos conflitos consiste, pois, em determinar quais as leis que devem considerar-se gerais e territoriais e quais as leis que devem considerar-se permanentes e extraterritoriais.
Para determiná-lo, há que atender-se, segundo PILLET, à função social ou fim da lei, isto é, à necessidade social a que ela pretende dar satisfação.
Quanto ao seu destino ou ao seu fim, as leis internas dividem-se em leis de protecção individual e leis de garantia social ou de ordem pública.
a)Leis de protecção individual: dizem respeito ao estado e a capacidade das pessoas, às relações de família, sucessões e doações. Estas leis de protecção individual só atingirão o seu fim se acompanharem sempre os indivíduos a que se destinam, ou seja, se forem de aplicação permanente e extraterritorial.
b)Leis de garantia social ou de ordem pública: são as leis políticas, morais, de segurança, as relativas à propriedade, ao crédito público, à execução forçada e à falência, as leis fiscais e as leis de ordem. O fim das leis de garantia social só poderão ser atingidos se elas forem de aplicação geral a todos os habitantes do território (leis territoriais).
A lei de protecção individual competente será a lei nacional, visto ser o Estado a que o indivíduo pertence «o mais interessado» e aquele que tem o direito e o dever de o proteger nas relações internacionais.
A lei de garantia social competente será também a do Estado que tiver na matéria o interesse mais forte, isto é, a que melhor realizar o fim visado pelo instituto ou preceito jurídico em causa.
Ao lado das leis de protecção individual e de garantia social, considera PILLET as leis supletivas ou interpretativas e as leis de forma.
c)Leis supletivas ou interpretativas: em virtude do seu carácter de leis de conselho, adopta em relação a elas o princípio da autonomia da vontade.
d)Leis de forma: em virtude de estas, segundo PILLET, ocuparem uma posição intermediária entre as leis supletivas e as leis imperativas, adopta o princípio «locus regit actum» com carácter facultativo.
Assim sendo, são estas as principais características apontadas ao sistema de PILLET:
e)o fundamento dado à doutrina de que a lei pessoal é a lei nacional (considera que o Estado com maior interesse na protecção dos indivíduos é aquele ao qual pertence o direito e o dever de os defender por via diplomática nas relações internacionais: o Estado da nacionalidade);
f)o carácter atribuído às leis de ordem pública. Enquanto SAVIGNY e MANCINI consideravam estas leis como um limite ou uma excepção à comunidade de direito e ao princípio do reconhecimento e aplicação de normas jurídicas estrangeiras, PILLET considera-as como um elemento integrante dessa comunidade de direito e como leis de competência absolutamente normal;
g)a ideia do fim social das leis, enquanto critério determinante do seu campo de aplicação às relações internacionais.
1.14.2.2.4) Outras doutrinas universalistas:
Todas as doutrinas citadas são de clara inspiração e sentido universalista. Estes autores, ao exporem as suas ideias acerca dos limites espaciais do domínio das regras de direito sobre as relações jurídicas, não o faziam, decerto, com um intento de construir um sistema de conflitos para uso exclusivo dos tribunais alemães, italianos ou franceses, senão com o intento de assinalar as coordenadas básicas e os princípios científicos informadores de todo o DIP.
Nos começos do século XX, contudo, o universalismo está em vias de extinção. No entanto, o universalismo estilo século XIX não se rende sem luta. A teoria de ZITELMANN tem o traço original de nos oferecer um sistema de DIP supraestadual fundamentado no Direito Internacional Público, segundo ele, o DIP supraestadual apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas implicadas por certos princípios do Direito Internacional Público vigente.
Outro autor que importa apreciar é FRANKENSTEIN. Para este autor, o problema do DIP consistiria em saber qual o princípio segundo o qual devem ser reguladas as relações internacionais entre os indivíduos. FRANKENSTEIN entende que as relações intersubjectivas internacionais não podem ser reguladas senão pela ordem jurídica que detiver o poder de constrangimento ou coacção; aquele ordenamento jurídico ao qual os interessados se encontram sujeitos.
1.14.2.3) A evolução posterior do DIP.:
Vimos como no século XIX, com o advento e a intensificação do movimento codificador, o DIP muda radicalmente de aspecto: perde a natureza de conjunto de princípios de formação e autoridade exclusivamente doutrinal para assumir uma feição legal-positiva.
Durante o século XIX, o problema do DIP é encarado como um problema de delimitação de competências legislativas, de coordenação de soberanias e, portanto, como um problema cuja resolução pertence ao direito internacional.
A emanação de normas de conflitos pelos vários Estados constitui, portanto, uma solução imperfeita e meramente provisória, se bem que legítima do problema. O verdadeiro DIP é superior aos Estados e necessariamente uniforme.
Em breve, essa atitude tornou-se geral. Cada Estado passou a ter um DIP próprio. Mas era fatal que entre estes vários sistemas nacionais de normas de conflitos se verificassem inúmeras e profundas divergências.
1.14.2.4) Consequências do movimento codificador do DIP ― a reacção contra o universalismo:
O DIP constituiu-se e existe a fim de dar a cada relação do comércio jurídico internacional a lei competente, mas de forma a que esta lei seja a mesma em toda a parte. A justiça de uma causa não deve depender da latitude do lugar, e sendo certo que, não poucas vezes, a relação jurídica poderá ser submetida à apreciação de uma ou outra dentre várias jurisdições nacionais, à escolha do autor, urge evitar que este, escolhendo o tribunal da acção («forum shopping»), possa também, por tal caminho, escolher, dentre as possíveis, a lei que for mais do seu agrado. Além disso, na situação actual do DIP., não têm as partes a possibilidade de determinar, no momento da constituição da relação jurídica, a lei a que ficarão sujeitas.
Assim, o DIP actual está ainda longe de dar satisfação às necessidades da vida social que determinaram o seu aparecimento. O DIP é, por natural destino, um direito comum a todos os povos e nações; não existe apenas para designar a lei competente, mas para o fazer por modo universalmente válido. A harmonia jurídica internacional (a garantia de que a mesma situação da vida será objecto de valoração uniforme em todos os países interessados) é postulada aqui pela própria natureza das coisas. A harmonia internacional é o ideal supremo do DIP.
Esse ideal foi quase por completo perdido de vista durante largas décadas do século XX.
Já no primeiro quartel do século XX, o DIP pudera ser definido como expressão genuinamente nacional. Ele seria apenas a projecção do direito privado interno no plano internacional. É o dogma da subordinação do DIP ao direito material.
Ora, se o conteúdo das normas de conflitos depende assim tão estritamente da modelação das instituições a que elas se referem pelo respectivo direito material, a falta de uniformidade do DIP será, desde logo, a expressão necessária da falta de uniformidade do próprio direito privado interno. Para a suprimir seria necessário começar por anular a divergência das leis internas, isto é, os conflitos de leis, mas, então, já não haveria o problema e o DIP desapareceria.
Assim, haveria de resolver-se o chamado problema da qualificação em favor da «lex fori» e que repudiar formalmente qualquer sorte de reconhecimento do DIP vigente noutros países. É o dogma do carácter absoluto e exclusivo do DIP da «lex fori». De resto, a escola nacionalista iria robustecer-se, ainda, graças ao «rapport» daqueles escritores (NIBOYET sobretudo, que fora discípulo de PILLET) que viriam acentuar o carácter político das razões que, em cada Estado, estão na base do sistema das regras de conflitos, o comandam e aperfeiçoam.
Deste modo se instalou um estado de coisas absolutamente contrário à essência e fins do DIP.
1.14.2.5) Reacção contra o nacionalismo ou particularismo positivista. Orientação dominante na actualidade:
Contra tal estado das coisas, tomou vulto uma reacção por volta da década de 1930.
A ideia de que uma sã solução dos conflitos de leis deve inspirar-se fundamentalmente no interesse dos indivíduos, a quem, afinal, se destina todo o direito; a progressiva utilização neste domínio do método da jurisprudência dos interesses; o reconhecimento da necessidade urgente de emancipar o DIP do direito interno em ordem a tornar possível o ideal da unificação; o aproveitamento, neste sentido, da investigação comparatista; a tendência para uma interpretação das regras de conflitos estaduais adequada à sua missão eminentemente internacional, isto é, da compreensão e coordenação de todas as legislações do mundo civilizado.
2) O método do Direito Internacional Privado:
2.1) A concepção clássica (ou tradicional) europeia do DIP.:
Definimos o DIP como «o ramo da ciência jurídica onde se procuram formular os princípios e regras conducentes à determinação da lei ou das leis aplicáveis às questões emergentes das relações jurídico-privadas internacionais e, bem assim, assegurar o reconhecimento no Estado do foro das situações jurídicas puramente internas, mas situadas na órbita de um único sistema de direito estrangeiro».
Ocupa-se, portanto, o DIP das relações plurilocalizadas, ou seja, daquelas relações que, correspondendo a uma actividade jurídica que não se comporta nas fronteiras de um único Estado, entram em contacto, através dos seus elementos, com diversos sistemas de direito e, assim sendo, acham-se sujeitas a uma condição de particular incerteza e instabilidade, cabendo ao DIP., justamente, criar para tais relações um disciplina que reduza esta instabilidade a um mínimo tolerável. Tem, portanto, o DIP por função precípua assegurar a estabilidade e continuidade das relações jurídicas internacionais.
Segundo a orientação tradicional do DIP (que corresponde fundamentalmente ao sistema de SAVIGNY), considera-se que o problema que se levanta é o de designar a lei competente, ou seja, a lei em cuja moldura deverão procurar-se os preceitos materiais aplicáveis ao caso «sub judice». Esses preceitos seriam aqueles que os tribunais do respectivo Estado aplicariam se o caso fosse puramente nacional.
Contudo, e uma vez que se trata de relações conexas com diferentes sistemas de direito e, muitas vezes, com diferentes tipos de regulamentação material, pergunta-se, naturalmente, qual desses sistemas deverá ser chamado a reger a situação concreta.
Para a concepção clássica, é através de normas de conflitos que o DIP cumpre a sua missão de prover à regulamentação das questões emergentes das relações jurídico-privadas internacionais.
Foi com SAVIGNY que teve origem o método ainda predominante a que chamamos «técnica das regras de conflitos» e que consiste em procurar, para cada situação jurídica típica, o laço que mais estreitamente a prenda a um determinado sistema de direito. Por outras palavras, o DIP clássico utilizava como método básico as regras de conflitos que procediam à escolha da lei competente para reger a uma determinada situação, com base em critérios meramente localizadores (v.g.: proximidade espacial, vinculação espacial mais forte). Cada uma destas normas de conflitos tem a seu cargo uma tarefa que consiste em delimitar um sector ou matéria jurídica, em recortar uma questão ou núcleo de questões de direito, e em designar o elemento de conexão através do qual deverá determinar-se a lei a aplicar neste domínio.
A escolha da conexão relevante obedece a uma directiva geral: na execução da aludida tarefa deverá proceder-se tendo em atenção que o fim em vista é o de encontrar uma lei que seja verdadeiramente adequada ao seu objecto, isto é, à função de regular determinada matéria ou sector da vida jurídica. Não se trata de escolher a melhor lei, mas aquela que melhor colocada estiver para intervir na resolução do litígio, e isso tendo em atenção a localização dos factos ou da relação dela com as pessoas a quem os factos dizem respeito.
Isso significa que o problema do DIP não é um problema de justiça material: o papel da regra de conflitos não é o de escolher, de entre as soluções decorrentes das várias leis em concurso, a que melhor convenha, em termos de justiça material, à natureza e circunstâncias do caso «sub judice». O DIP., como já tivemos a oportunidade de referir, está ao serviço de valores de certeza e segurança jurídicas: a sua justiça é de cunho predominantemente formal. O intento primordial do DIP está em promover e garantir a continuidade e estabilidade das situações jurídicas multinacionais através da unidade da respectiva valoração por parte dos diversos sistemas interessados para, assim, evitar a frustração das expectativas que, com base nelas, forem concebidas pelas partes e por terceiros.
Estas normas de conflitos caracterizam-se por duas notas:
a)Rigidez: na sua feição clássica, as regras de conflitos são regras rígidas («hard-and-fast Rules»), isto é, normas que vinculam o juiz a utilizar um elemento de conexão predeterminado ou determinável a partir de critérios enunciados pela própria norma, sempre que se lhe apresentasse uma questão jurídica do tipo correspondente à respectiva previsão. Assim, nesta altura, a regra de conflitos era vista como um «prius» metodológico que não deveria ceder nem cedia perante nenhum outro método ou por uma outra visão do método.
b)Neutralidade: certamente que em todos os sistemas jurídicos positivos se encontram normas materiais criadas expressamente para determinadas categorias de situações multinacionais. Tais preceitos de DIP material são, por vezes, estabelecidos por uma convenção internacional, outras vezes, oriundas de uma fonte jurídica interna. Contudo, o método típico do DIP é o método conflitual. Assim sendo, não compete ao DIP., por si próprio, fornecer a norma material aplicável ao caso concreto, mas unicamente designar a lei a que a norma aplicável deverá ser pedida. A regra de conflitos, assim, não estava imbuída com preocupações materiais; tinha por detrás de si apenas os valores do DIP (segurança, tutela das legítimas expectativas das partes, etc.).
Relativamente à primeira das características assinaladas, ou seja, relativamente à rigidez das regras de conflitos, convém assinalar que se vem desenhando nos últimos tempos uma tendência para a abertura de largo espaço às regras abertas ou flexíveis («open-ended Rules»).
Estas «open-ended Rules» concedem ao julgador ampla liberdade na fixação, em cada caso concreto, da conexão mais apropriada.
Outras normas determinam a conexão em princípio relevante, mas permitem a aplicação de outra lei quando se mostre que a situação concreta «sub judice» se encontra mais fortemente ligada à ela.
A «cláusula de excepção em DIP.» é a expressão mais acabada da tendência para não sujeitar o julgador a regras de conflitos rígidas, permitindo-lhe o recurso a uma lei que ele entenda ter com o caso uma ligação mais estreita.
2.2) A crítica norte-americana:
É dos Estados Unidos que procedem os ataques mais violentos contra a concepção tradicional do DIP Tais críticas visam a própria legitimidade ou adequação do método utilizado pelo DIP para cumprir a sua função. Contudo, os autores norte-americanos só estão unidos na rejeição da concepção clássica do DIP e não quanto à nova via metodológica a seguir. Sublinham-se principalmente os seguintes pontos de divergência:
a)dificuldade, quando não mesmo impossibilidade, de, em muitos casos, apurar-se a conexão mais estreita ou mais significativa da relações jurídica;
b)alegada impropriedade das normas de direito interno para regular as situações internacionais (situações estas cujos problemas específicos elas ignoram), pois não foram elaboradas tendo em conta tais problemas;
b)dificuldades que surgem no processo de aplicação da regra de conflitos (v.g.: questões como as da qualificação; da adaptação; do reenvio; da ordem pública).
Daqui resulta um estado de coisas que compromete gravemente a previsibilidade das decisões judiciais e a estabilidade da vida jurídica. Ora, entre os fins que o DIP visa, ocupa justamente lugar de primordial relevo o de assegurar a continuidade e estabilidade das situações plurilocalizadas; e
c)por fim, diz-se que o método descrito compromete a possibilidade de encontrar para as situações multinacionais a solução materialmente mais consentânea com os seus caracteres específicos.
Os autores norte-americanos começaram por elaborar um esquema complicado e algo complexo nos termos do qual era preciso designar uma ordem jurídica que tivesse dado nascimento ao direito, e se esse direito tivesse sido criado à luz da ordem jurídica que se entendia ter-lhe dado nascimento, o respectivo direito era reconhecido; caso contrário, não o seria.
É importante notar que o direito americano é um direito federal ― há diversas legislações e não há leis uniformes. A doutrina elaborou uma compilação de preceitos que a jurisprudência vai seguindo na prática. O «Restatement» é constituído por um conjunto de princípios e regras que se entendem traduzirem na prática definida e que funcionam como codificações.
Para compreendermos a «conflicts revolution» americana há que conhecer dois pólos:
- por um lado, o objecto da crítica (na circunstância, a doutrina dominante em matéria de DIP.), representada por JOSEPH BEALE, o autor do primeiro «Restatement of conflict of laws»; e
- por outro lado, o padrão em relação ao qual a realidade teórica era apreciada e em nome do qual ela se via repudiada: no caso, uma certa forma de pensar o direito.
A doutrina internacional-privatística nos Estados Unidos da América (que tem justamente em JOSEPH STORY o seu primeiro representante) filia-se na escola holandesa e com ela segue um princípio formal segundo o qual a validade das leis, enquanto ordens do legislador, seria exclusivamente territorial, isto é, limitada ao território onde se exerce a autoridade da qual elas tinham emanado ― princípio da territorialidade → «comitas gentium».
Na esteira de STORY surge BEALE, que entende ser indiscutível o carácter territorial do direito e a consequente impossibilidade de aplicação, no foro, da lei estrangeira. É assim que os «vested rights» (direitos adquiridos no estrangeiro) só relevam para o Estado do foro enquanto pressuposto necessário da criação no próprio foro (e através de uma norma sua) de um direito de idêntico conteúdo. São, assim, meros factos despidos de qualquer relevo jurídico autónomo, ainda que a sua existência seja indispensável para que no Estado do foro se possa criar, com uma norma deste mesmo Estado, um direito de conteúdo análogo.
Além disso, o reconhecimento da existência dos «vested rights» estrangeiros dependeria de terem sido constituídos à luz da lei para tanto considerada competente pela regra de conflitos do foro. É aqui que o DIP americano se aproxima, fundamentalmente, da concepção ao tempo vigente na Europa sobre a matéria. A validade no foro de direitos e situações constituídas no estrangeiro depende, assim, de terem sido criadas pela lei a que a regra de conflitos do foro atribui a correspondente competência. Só que a concepção americana aparece ainda mais inutilmente complicada que a europeia na medida em que, pretendendo arrancar do dogma da territorialidade das leis, vê-se obrigada, para reconhecer situações e direitos adquiridos no estrangeiro, a recorrer a construções rebuscadas e confusas como é o caso dos «vested rights».
Contra esta corrente doutrinária, a que BEALE deu forma codificada no primeiro «Restatement», levanta-se uma reacção fundamentalmente em atenção a um modo de conceber o direito que, não sendo o tradicional, não era já também o vigente, ao tempo, na Europa.
2.3) Principais posições críticas:
2.3.1) A crítica de DAVID CAVERS:
Em 1933, DAVID CAVERS publica um estudo no qual conclui que, nas situações plurilocalizadas, o cerne é o conflito de normas materiais de diversas proveniências que visam dirimir o litígio. Há várias normas materiais que podiam resolver aquele conflito e a escolha da lei não deve ser orientada por critérios meramente localizadores (assim como o fazia a doutrina clássica), mas sim pela justiça material da solução, atendendo aos interesses das partes e à própria situação ― é este o primeiro momento de CAVERS, o da negação da regra de conflitos.
CAVERS censura tal sistema pelo seu desinteresse pela solução a dar ao caso concreto, funcionando por meio de elementos de conexão que abstraem por completo do conteúdo substancial da lei.
As regras de conflitos, segundo CAVERS, seriam regras de aplicação mecânica, mas, segundo ele, o conflito de leis deve ser encarado como um antagonismo ou oposição concreta entre preceitos materiais: os preceitos que disputam entre si a regulamentação de certo caso.
Para DAVID CAVERS, o problema do DIP não se resume a um problema de escolha entre sistemas de direito (de escolha entre regras materiais), sendo forçoso resolvê-lo olhando ao conteúdo e fins destas normas. A determinação da conexão decisiva depende tanto das circunstâncias de facto em que a conexão se vai operar, como das soluções a que as diferentes leis em conflito conduzam.
O juiz só pode ter por findo o processo de averiguação da lei aplicável depois de ter comparado as soluções fornecidas pelas normas materiais em concurso.
Defende CAVERS que a escolha da lei não pode ser resultado de uma simples operação mecânica, para essa escolha devendo presidir, diferentemente, um critério de justiça material.
A solução de CAVERS consistiria em entregar ao juiz a escolha da lei, não em função da localização da situação, mas sim em função do resultado. Para empreender tal desígnio, dois critérios deveriam guiar o juiz
- a justiça devida às partes; e
- os objectivos de política legislativa prosseguidos pelas normas em concurso.
2.3.1.1) Críticas a esta teoria:
a)Insegurança, instabilidade e casuísmo, pois os critérios para cada caso concreto podem ser diferentes e a escolha da ordem jurídica estadual competente para reger em termos materiais a questão vai depender de uma apreciação do juiz (que terá de atender aos interesses das partes;
b)pode acontecer que uma solução não seja a mais justa, mas aquela com a qual as partes contariam ― temos aqui dois valores em conflito: justiça material e os interesses das partes;
c)de qualquer forma, nunca se prescinde de uma abordagem localizadora (o juiz vai apreciar as normas materiais conectadas com aquela situação).
2.3.1.2) O segundo momento de DAVID CAVERS:
Posteriormente, CAVERS inflecte o rumo do seu pensamento, oferecendo-nos algumas regras destinadas a solucionar os conflitos de leis, regras estas que seriam o produto do seu método.
Em sua segunda fase, CAVERS adopta o método da pesquisa da melhor lei («Better Law Approach»). A «better law approach» consiste numa doutrina que não repudia o sistema da conexão. Segundo ela, será aplicável a lei, escolhida dentre as leis conectadas com a situação concreta, que regular a situação «sub judice» de modo mais adequado ou correcto (o mais justo). Ele julga ser necessária a formulação de juízos de valor que possam orientar os tribunais e justificar, assim, a preferência por uma daquelas normas em conflito, pois:
- nem sempre é fácil chegar à solução das questões emergentes das relações internacionais através da análise do conteúdo e dos fins das normas em conflito; e
- há inconvenientes e perigos derivados do método da solução «ad hoc».
CAVERS estabelece critérios guia (os célebres princípios de preferência ― «principles of preference») que são simples critérios de orientação para o juiz, ou seja, deviam simplesmente orientar o juiz na solução de situações privadas internacionais controvertidas, não tendo o carácter rígido de verdadeiras normas de conflitos.
Trata-se do seguinte: CAVERS toma alguns casos de conflitos entre instituições ou preceitos jurídico-materiais de diferentes sistemas de direito e diz-nos qual o critério que, em tais hipóteses, deve presidir à solução do conflito de leis..
Assim sendo, perante uma situação internacional concreta, deveria o juiz:
1.limitar o âmbito de leis potencialmente aplicáveis segundo o critério da maior proximidade; e
2.proceder à determinação da lei (dentre aquelas conectadas à situação) aplicável através do recurso aos critérios guia («principles of preference»).
CAVERS formulou princípios de preferência relativamente a duas matérias:
- responsabilidade civil extracontratual (protecção do lesado); e
- responsabilidade civil contratual (salvaguarda do negócio jurídico).
a)Responsabilidade civil extracontratual: se a lei do local onde foi produzido o dano for mais responsabilizante do que a lei da residência do autor do dano ou do que a lei onde o acto lesivo foi praticado, deve aplicar-se a lei do local onde o dano foi produzido, pois esta é a lei que melhor protege a vítima. Nós temos algo de parecido com isso no artigo. 45º do Código Civil, já que considera em seu n.º 1 que, em princípio, a lei competente para regular a questão é a do Estado onde decorreu a principal actividade causadora do prejuízo, mas, em seu n.º 2, abre uma excepção, qual seja, a de, na hipótese de a lei, em princípio, competente (ou seja, a lei do Estado onde decorreu a principal actividade causadora do prejuízo) não considerar o agente como responsável, deve ser aplicada a lei do Estado onde se produziu o efeito lesivo, no caso de esta considerá-lo responsável.
CAVERS formulou, contudo, uma ressalva: segundo ele, existindo uma relação especial e específica entre o autor do dano e o lesado, deverá o juiz aplicar a lei do Estado competente para regular a relação.
Resumindo e concluindo, os mencionados princípios de preferência («principles of preference») se destinam, antes de mais, a delimitar o círculo de leis utilizáveis em cada matéria sobre as quais pode recair a escolha. Assim, por exemplo, quando a lei do Estado onde se verificou o dano consagra normas de conduta mais estritas ou estabelece medidas mais elevadas de protecção financeira do que a lei do Estado onde o réu agiu ou onde tinha a sua residência, é a lei daquele primeiro Estado que deve prevalecer, a menos que a existência de uma relação entre o autor e a vítima do dano justifique a aplicação da lei que rege esta relação.
No domínio da responsabilidade «ex delicto», as únicas leis a considerar são:
- a do país onde se verificou a lesão jurídica;
- a do país onde teve lugar o facto danoso;
- a lei do domicílio do autor do facto; e
- quando exista uma relação entre o autor do facto e a vítima do dano, a lei reguladora desta relação.
Obviamente que a aplicabilidade de qualquer uma destas leis baseia-se na conexão que apresenta com a situação da vida em que se levanta a questão da responsabilidade civil a resolver, sendo que, portanto, até aqui, as coisas decorrem inteiramente segundo as coordenadas do Direito Internacional Privado clássico, já que as leis designadas o foram em função de puros critérios de localização espacial das situações a regular, sem ter em consideração o conteúdo das normas em presença nem, por conseguinte, a justiça material.
Após determinar as leis potencialmente aplicáveis ao caso «sub judice», deve estabelecer-se os critérios de selecção definitiva da lei a aplicar. No caso da responsabilidade civil extracontratual, esses critérios são dois:
- um deles tem a ver com o conteúdo das leis em conflito, aplicando-se a lei que conceder maior protecção à vítima do dano;
- o outro parece utilizar o método tradicional da conexão, sendo competente a lei reguladora de uma determinada relação existente entre as partes, seja qual for a solução que daí decorra para o problema de responsabilidade em causa.
2.3.1.3) Crítica ao segundo momento de CAVERS:
Como decorre das linhas anteriores, o método proposto por CAVERS é um método que se aproxima do método tradicional, de modo que os «princípios de preferência» são verdadeiras normas de conflitos, embora seja mais flexível e maleável, não sendo também uma alternativa possível em todas as situações, uma vez que nem sempre se consegue individualizar um valor ou um critério guia.
As diferenças entre esta posição de CAVERS e a posição tradicional são realmente relevantes?
1.Os princípios de preferência destinam-se, antes de tudo, a delimitar o círculo das lei aplicáveis em relação a cada matéria, aquelas sobre as quais pode recair a escolha. Assim, por exemplo, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, as únicas lei a considerar seriam, assim como já o frisamos:
- a do país onde se verificou a lesão jurídica;
- a do país onde teve lugar o facto danoso;
- a do país do domicílio do autor do facto; e
- quando exista uma relação entre o autor do dano e a vítima, a lei reguladora da relação.
Até aqui as coisas decorrem como no DIP clássico: a aplicabilidade de qualquer uma das leis baseia-se na conexão que apresente com a situação que levanta a questão da responsabilidade civil (não se tem em conta a justiça material).
2.Tendo em conta os critérios de selecção definitiva da lei a aplicar, ainda relativamente ao princípio de preferência em relação à responsabilidade civil extracontratual, esses critérios são:
- conteúdo das lei em conflito → será competente a lei que oferecer maior protecção à vítima do dano; e
- de forma semelhante ao método tradicional de conexão será competente a lei reguladora da relação existente entre as partes.
Tendo por função determinar, para cada caso, a lei aplicável, este princípio de preferência por último referido é uma verdadeira norma de conflitos ― apesar de não se limitar a utilizar um critério de conexão espacial, referindo-se também ao conteúdo dos preceitos materiais em colisão.
Existe, como vemos, uma semelhança inegável entre esta última posição defendida por CAVERS e a posição tradicional, ideia esta que se vê reforçada pelo facto de o fim último dos princípios de preferência ser igual ao das normas de conflitos.
CAVERS considera que a validade de tais princípios depende de sua aptidão para serem incluídos num direito comum a todas as nações → ponto de vista universalista.
O recurso sistemático a critérios semelhantes aos formulados por DAVID CAVERS, em toda a zona não recoberta por normas de conflitos de conteúdo rígido, não é empresa realizável, pois:
- não é possível prever todos os tipos de conflitos de preceitos materiais susceptíveis de serem verificados; e
- mesmo se o fosse, não seria possível, seguramente, formular para cada um destes tipos uma válida razão de decisão, um princípio de preferência baseado no conteúdo das leis em concurso e dotado de aptidão para ser incluído num direito comum a todas as nações (v.g.: problema da admissibilidade do divórcio sendo, por exemplo, aplicável a lei que admite a dissolução do vínculo matrimonial → esta solução não teria, decerto, acolhimento nos países menos abertos a tal ideia, nunca podendo, portanto, converter-se em critério de aceitação universal.
O método proposto por CAVERS oferece certas possibilidades de utilização como método adjuvante do conflitual, mas não pode ser adoptado como via principal para a resolução dos problemas a que o DIP visa dar solução.
2.3.1.4) O DIP e a CRP. Segundo CAVERS:
CAVERS começa por caracterizar o processo clássico: segundo ele, ao aplicar a regra de conflitos, o tribunal parece brandir uma vara mágica, comprometendo-se, assim, num teste cego na medida em que o juiz é absolutamente indiferente ao conteúdo da lei, ao fim desta e aos resultados da sua aplicação.
Os inconvenientes deste processo são conhecidos, sendo, portanto, importante que se descubra uma forma de escapar ao sistema tradicional.
A alternativa estaria em partir da ideia de que o tribunal não escolhe uma lei, mas dirime uma controvérsia.
Assim, perante um caso concreto da vida internacional, o juiz deveria analisá-lo nas suas ligações legislativas possíveis e comparar cuidadosamente as várias leis que lhe poderiam ser aplicadas e os resultados concretos que dessas aplicações adviriam. Depois, haveria que comparar os resultados à luz de estritas considerações de justiça e dos imperativos de interesse social vinculados pelas leis em confronto. Só após esta averiguação se escolheria a lei que, de acordo com estes cânones, conduzisse aos resultados mais justos.
Esta seria a forma de conseguir que o conflito de leis deixasse de estar focado nas normas e passasse a preocupar-se com as decisões concretas.
O radicalismo destas propostas vinha, no entanto, perturbar grandemente o desenvolvimento das relações internacionais, na medida em que deixava as partes totalmente às escuras quanto à lei que viria a ser aplicada às suas relações, abandonada a escolha desta ao sentimento de justiça material do juiz.
CAVERS faz sua a finalidade que a doutrina tradicional atribuía ao DIP e que a escola realista tanto contestara, ou seja, a de resolver o litígio entre as leis em presença.
Apesar deste grande recuo em relação às suas posições iniciais, o que pode sempre dizer-se sem qualquer dúvida é ter CAVERS procurado introduzir no método clássico correcções que o tornassem mais sensível aos factos da causa, em suma, que o materializassem.
A crítica de CAVERS viria a conhecer uma expansão notável e, assim, desenvolve-se uma tendência para descobrir os interesses que subjazem a cada lei, de modo a permitir a sua aplicação em ordem ao seu conteúdo e fins respectivos.
2.3.2) A crítica de BRAINERD CURRIE:
CURRIE recusa frontalmente o método conflitual e propõe como critério de escolha da lei aplicável o «government interest analyze». Há uma ruptura total com o que de adquirido havia em DIP., preconizando a abolição da técnica das regras de conflitos.
É a seguinte a base de construção dessa teoria: «toda a regra de direito tem por finalidade a realização de uma certa política ou função sócio-jurídica; por seu turno, o Estado que edita a norma tem interesse na realização da política que à norma subjaz».
O domínio de aplicação de cada norma seria determinado em função do interesse estadual a que a norma responde.
CURRIE parte daqui para oferecer uma categórica resposta ao conflito de leis: perante uma situação internacional qualquer, os tribunais deveriam começar por analisar as «policies» implícitas nas várias leis em concurso e as circunstâncias que possam tornar desejável a promoção de políticas no caso concreto.
Apenas um Estado tem interesse na realização da finalidade sócio –política da sua lei, sendo que a lei aplicável deve ser a desse Estado.
Ele divisa situações de conflito aparente, mas, da análise das mesmas, se depreende que só há um interesse governamental (só há uma lei aplicável), logo, não há nenhum conflito. Se isso não acontece e se um dos ordenamentos jurídicos concorrentes for o do foro (se ele tiver interesse em se aplicar), vamos aplicar a lei do foro. Se a lei do foro não se quiser aplicar e se houver outra lei com interesse em se aplicar, aplica-se a lei estrangeira.
E se houver várias leis estrangeiras em concurso, o que é que o juiz deve fazer?
Neste caso, o juiz do foro chamado a conhecer do litígio não deve aplicar nenhuma delas, já que não se pode substituir ao legislador estrangeiro, não podendo escolher qual o interesse governamental superior. Sendo assim, deve ser aplicada a lei do foro.
No caso de nenhuma lei querer ser aplicada, aplicar-se-á, subsidiariamente, a lei do foro.
a)Conflito aparente;
b)lei do foro se esta se quiser aplicar;
c)aplica-se a lei estrangeira com interesse;
d)no caso de serem várias as leis estrangeiras em concurso deve aplicar-se a lei do foro (mais tarde CURRIE admite que, nesta situações, sejam constituídas regras de conflitos «ad hoc»);
e)se nenhuma lei quiser ser aplicada, dever-se-á aplicar a lei do foro a título subsidiário.
2.3.2.1) Críticas a esta teoria:
- A posição de CURRIE opera uma subordinação do DIP a valores políticos, quando sabemos que o DIP é um ramo do direito de cariz privado, não se resumindo a um conflito de soberanias.
- Potencia o «forum shopping» (escolha pelas partes, antes de intentarem a acção, do tribunal que aplique o ordenamento jurídico que mais lhe convém ― havendo uma manipulação da competência internacional).
- Casuísmo ― excessivos poderes atribuídos ao juiz (por vezes é difícil retirar do conteúdo das normas o interesse governamental que lhes está subjacente).
- Viola o princípio da paridade de tratamento dos ordenamentos jurídicos (privilegia a aplicação da «lex fori»).
2.3.2.2) O DIP e a CRP. segundo CURRIE:
A posição de CURRIE sobre o DIP filia-se no contexto de renovação doutrinal empreendida nos Estados Unidos a partir dos anos 30 que pretendeu estender também à nossa disciplina os processos metodológicos da escola do realismo jurídico.
A sua originalidade reside numa diferente ideia sobre o que, no fundo, está em causa no conflito de leis.
Para CURRIE, o conflito de leis é uma consequência da interferência recíproca da esfera de aplicação das várias leis nacionais. O autor vê aqui também um conflito de interesses estaduais. O problema do DIP não poderia ser assim concebido de forma neutra, como se apenas fosse importante estabelecer o âmbito de aplicabilidade de cada lei, mas tem antes de ser visto como uma questão que contende com interesses estaduais ― é um problema político: o que está em causa é determinar o interesse estadual que há-de prevalecer.
A questão do DIP é um verdadeiro conflito de interesses estaduais e, na sua resolução, qualquer que ela seja, implicará sempre o sacrifício de um ou mais interesses desta natureza. Este é o núcleo da problemática.
Segundo CURRIE, a doutrina despolitizou o DIP de tal forma que o autor optou por construir um sistema de resposta que é, em si mesmo, uma fonte acessória de nossa perturbação na matéria em causa:
1.cria problemas que não existiam antes, nomeadamente naqueles casos em que, não havendo conflito de interesses estaduais, a questão continua a ser posta e resolvida em termos de conflitos de leis;
2.a situação é, por vezes, resolvida mediante a preclusão do interesse de um Estado sem que, por isso, se promova e realize o interesse de outro Estado;
3.em muitos casos promove-se, de facto, a aplicação de uma lei lançando-se mão de expedientes que, se são eventualmente os responsáveis pela sobrevivência do sistema até os nossos dias, não deixam de o complicar extraordinariamente;
4.se há Estados com diferentes políticas e interesses igualmente legítimos na aplicação das suas leis, o tribunal é uma instância que não está em condições para ponderar o peso relativo dessas políticas e decidir, por si, da aplicação delas.
CURRIE não segue CAVERS na defesa da escolha de uma solução em função do resultado da aplicação de cada uma das leis em presença. Tal medida incorreria também no vício de passar ao lado, ignorando-a, da função que CURRIE atribui em primeira linha ao DIP.
O primeiro passo que CURRIE sustenta dever ser dado é uma investigação de qual política legislativa subjacente a cada norma em questão e de quais os interesses cuja protecção é por elas visada. Uma vez determinada a «policy» de cada norma e os interesses por ela visados, a solução do problema do DIP aparece facilitada. Assim, onde e quando o Estado do foro manifesta interesse na aplicação da sua lei, é a «lex fori» que será aplicada só quando não se verificar esta hipótese é que haverá lugar à aplicação da lei estrangeira que, no entanto, só terá lugar quando se conclua que ela manifesta interesse em se aplicar ao caso concreto: restam as situações em que se não vislumbra qualquer interesse ― nem da «lex fori», nem da lei estrangeira ― em regular o caso. Nestes casos, como não existe qualquer interesse estadual em jogo, CURRIE sustenta, ainda que sem grande convicção, ser preferível a aplicação da «lex fori».
O autor salienta como principal vantagem desta solução a facilidade com que esta pode ser posta em acção e as numerosas complicações que evita e preocupa-se em defendê-la da acusação de um excessivo «parochialism». Por um lado, o esclarecimento e a cabal indagação da «policy» subjacente à cada norma afastaria a sua indiscriminada aplicação a todos os casos que caíssem sob a sua previsão; por outro lado, o sistema proposto não impede a procura, em certos casos, da melhor solução para o litígio; e, finalmente, existem limites de ordem constitucional que limitam uma absoluta promoção dos interesses estaduais.
2.3.2.3)Críticas a esta posição:
Esta doutrina foi alvo de várias críticas considerando que a referência ao «governamental interest», enquanto único motivo de delimitação do campo de aplicação das regras imperativas numa situação multinacional, conduz a consequências absurdas.
A posição de CURRIE rompe fundamentalmente com o que de adquirido havia na tradição do DIP.
Um dos momentos mais relevantes dessa rotura é a ideia de que não há lugar no DIP para o cálculo de interesses privados.
Mais grave ainda é que CURRIE procure preencher o vácuo resultante da evicção dos interesses privados no domínio do DIP com a redução deste à situação de instrumento de extensão, a plano internacional, das polícias incorporadas nas leis internas. O que CURRIE censura à regra de conflitos é, sobretudo, que, em lugar de exprimir um critério normativo determinante, proclame a indiferença do Estado que a formulou quanto ao êxito do processo, que a sua visão normativa não seja a da actuação.
Para CURRIE, o problema do conflito de leis tinha, por força, de ser entendido, nesse contexto, como da determinação de qual o interesse estadual que em cada caso deva prevalecer. E daí também a suprema facilidade com que CURRIE resolve os problemas, apenas admitindo a aplicação da lei estrangeira onde e quando a «policy» do Estado do foro não tenha interesse em se efectivar.
O DIP já não é mais, para o malogrado autor norte-americano, nem um direito neutro, nem um direito privado, mas, acima de tudo, o veículo de extensão às relações internacionais das concepções e dos valores que iluminam a vida jurídica interna e que se encontram consagrados nas suas regras legais.
A Constituição, longe de ser um corpo estranho ao DIP., deveria, antes, ser compreendida como a peça fundamental da sua construção.
2.3.3) A crítica de ALBERT EHRENZWEIG:
Segundo este autor, o âmbito espacial das normas há-de decorrer da análise das política legislativas subjacentes, mas diferentemente de CURRIE, admite a coexistência de regras de conflitos.
Distinguem-se na doutrina de EHRENZWEIG dois domínios ou duas etapas:
- «lex certa»; e
- «lex incerta».
a)«Lex certa»:
1.«Forum rule by non choice»: aplicar-se-ia nestes casos a «lex fori» sem qualquer ponderação (sem recurso a qualquer critério de escolha), já que estão em causa normas imperativas do ordenamento jurídico do foro (funcionam antes das regras de conflitos).
Fala também dos casos de qualificação procedimental. No caso de tratar-se de uma questão procedimental, aplicar-se-ia, automaticamente a lei do foro sem haver qualquer ponderação. Tratando-se, porém de uma questão substancial, já não poderia operar o «forum rule by non choice», tornando-se necessária uma prévia ponderação. Que questões vamos qualificar como procedimentais ou como substantivas?
Considerava, por exemplo, a adopção e a capacidade das partes como questões processuais.
2.Admite as regras de conflitos que podem ser expressas por via legislativa, doutrinal ou jurisprudencial. As regras de conflitos podiam ainda ser implícitas. O problema da escolha da lei, segundo este autor, só se põe depois de se ter chegado à conclusão de que não se trata de um daqueles casos em que a aplicação da lei do foro é independente de escolha ― uma vez chegada a esta conclusão, cabe então às regras de conflitos indicar as normas materiais a aplicar.
― «Enchant rules»: são normas formuladas pelos tribunais, mas não têm a força de precedente vinculativo, mas que acabam por ter a mesma força das regras que são expressas (jurisprudência).
b)«Lex incerta»: (quando não há uma regra de conflitos)
Analisar-se-iam os interesses subjacentes à lei do foro, sendo que ela teria aplicação residual. Só que ele refere que se poderia substituir a lei do foro por uma lei estrangeira quando, por força de uma interpretação conscienciosa do juiz, a lei estrangeira protegesse em maior medida os interesses da lei do foro. Se da «ratio» (da interpretação da «lex fori») não resulta a aplicação da lei estrangeira, então a «lex fori» será aplicada residualmente.
Este domínio não se confunde com as regras de conflitos bilaterais porque, aqui, a competência da lei estrangeira não decorre de nenhuma regra de conflitos, mas sim de uma regra material do foro (a aplicação de uma norma material decorre de outra norma material).
Outra característica deste autor é a jurisdicionalização do DIP.
Tendência para a coincidência da competência jurisdicional com a competência legislativa.
Apercebeu-se EHRENZWEIG que a sua posição («lex incerta») levaria a esta jurisdicionalização do DIP e o «forum shopping» e tentou limitar esta consequência através da fixação de critérios rígidos de competência internacional.
― «Forum non convenience» ―
Tal como CURRIE, EHRENZWEIG procedeu à determinação da lei aplicável recorrendo a uma análise da política legislativa em que se fundamenta a norma de direito material.
Há, contudo, divergências entre esses dois autores:
CURRIE se mostra completamente avesso à doutrina tradicional do DIP., preconizando a abolição das regras de conflitos.
EHRENZWEIG, por sua vez, aceita expressamente as regras de conflitos de origem legislativa, jurisprudencial ou doutrinal, tal como as não formuladas ainda e que correspondem a tendências com alguma expressão na prática judiciária.
Importa, porém, sublinhar que a «choice of law problem» não se põe senão depois de se ter chegado à conclusão de que se não trata de um daqueles casos em que a aplicação da lei do foro é independente de qualquer escolha, no sentido de que não é comandada por uma regra de conflitos → «forum rule by non choice».
Uma vez que se chegue a esta conclusão, as regras de conflitos do fórum indicarão a norma material aplicável.
Na falta de regras de conflitos, a aplicação de uma norma estrangeira só pode resultar da interpretação da norma da «lex fori» segundo a sua «ratio» ou a sua «policy». É da análise da lei do foro que decorre a aplicação da lei estrangeira.
Daqui decorrem duas diferenças entre EHRENZWWEIG e CURRIE:
- CURRIE, como já foi dito, pretende expulsar as normas de conflitos do campo do DIP., diferentemente de EHRENZWEIG que as aceita expressamente;
- EHRENZWEIG faz depender a aplicação do preceito material estrangeiro não da política legislativa específica a que esse preceito corresponde, mas daquela a que obedeça a regra homóloga da «lex fori», diferentemente de CURRIE.
À «lex fori» cabe um papel residual: se a interpretação da lei do foro não nos leva à aplicação da lei estrangeira, é aquela (a «lex fori») que deve ser aplicada.
2.3.3.1) Críticas a esta teoria:
- Face aos objectivos gerais a que o DIP se propõe,, nenhuma teoria que preconize o primado da lei do foro pode justificar-se. Nós aderimos ao princípio da paridade de tratamento entre a lei do foro e as outras leis.
- EHRENZWEIG admite a técnica tradicional do DIP e a existência de regras de conflitos, mas em tudo o que ultrapassa a zona dominada por essas normas, o autor é susceptível das mesmas críticas que foram apontadas a CURRIE.
- Definir o domínio de aplicação espacial de uma norma estrangeira em função do da regra nacional homóloga afigura-se-nos totalmente inaceitável. Não tem fundamento esta união forçada e artificial de elementos provenientes de normas pertencentes a sistemas diversos. Nenhum preceito é separável da razão que o inspira. Toda norma jurídica deve ser entendida como uma unidade essencial constituída pela razão que a determina e em que se apoia o comando que estabelece.
Mas nada impede que se defina o domínio de aplicação espacial de uma norma estrangeira através de uma regra de conflitos da «lex fori», regra esta que pode até resultar da bilateralização de uma norma unilateral.
Teoria da bilateralidade: a norma que só foi concebida e formulada para efeitos de delimitação do sistema local é, em princípio, susceptível de bilateralização ― a regra unilateral, enquanto expressão de justiça do direito de conflitos, encerra em si mesma o embrião de uma norma bilateral, na qual poderá, eventualmente, converter-se.
2.3.3.2) O DIP e a CRP. segundo EHRENZWEIG:
EHRENZWEIG iria distinguir-se pelo aceso combate que moveria contra o «Restatement of Conflict of Laws» e pela propositura de uma solução que vê na «lex fori» a regra geral e o método adequado para a resolução dos problemas internacionais.
Embora partindo da «lex fori», EHRENZWEIG não rejeita as regras de conflitos tradicionais, antes salienta que elas são vinculativas para o juiz. No entanto, em seu entender, estas, além de serem em muito pequeno número, são normalmente criadas em função dos precedentes judiciais (jurisprudência) e não legislativa, e pouco adiantam para a resolução dos problemas concretos. Fora dos casos em que os problemas se resolvem por aplicação destas regras, haveria de recorrer à elaboração teórica. O que chama a sua atenção é que, na maioria dos casos, os juízes aplicam a lei do foro sem que, para tanto, tenham feito funcionar uma qualquer regra de conflitos: são os casos por ele classificados de «forum rule by non choice», nos quais os tribunais fazem funcionar um conjunto de expedientes para lograr a aplicação da «lex fori». Daí a sua conclusão quanto ao carácter básico ou residual deste ordenamento na solução dos conflitos de leis. Ao tomar esta posição, o autor pretende ser coerente com a matriz inspiradora do seu pensamento: se a uniformidade total de decisões é impossível, em lugar de ficcionar como ponto de partida uma igualdade entre as várias ordens jurídicas que depois se vem negar, na prática, por inúmeros meios, vale mais reconhecer à «lex fori» o seu autêntico papel de lei básica ou residual, o que, para além de evitar a sobrevalorização de regras e excepções, permitirá articular as polícias do foro que demandam a aplicação da lei estrangeira.
Na ausência de regras que resolvam esse problema, EHRENZWEIG entende que deve partir-se da «lex fori» e que a sua vontade de aplicação ao caso concreto será sempre decisiva. Na falta daqueles critérios de decisão, uma de três hipóteses:
1.ou se verifica que a lei material do foro não pretende abranger aqueles casos;
2.ou se conclui que ela é susceptível de generalização mesmo para eles;
3.ou, finalmente, se afigura claro que é da intenção da própria lei do foro que se aplique uma regra estrangeira.
A pedra de toque para a decisão seria sempre a «policy» da regra material do foro.
Esta doutrina é uma espécie de expressão de desafio americano ao DIP tradicional. Como que se opera o fim da dissociação entre as competências jurisdicional e legislativa. Por outro lado, o fulcro da questão é deslocado do sistema, da ordem jurídica, para uma lei em concreto, sendo esta que é objecto da escolha. Finalmente, o que determina a aplicação do direito estrangeiro não é, como se pretendia, uma qualquer «super law ideology», mas a «policy» da própria lei do foro, que traça, assim, os limites que os Estados se devem impor na aplicação da sua lei.