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Entre a lei e a realidade: o trabalho dos refugiados no Brasil

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3 DIREITO DO TRABALHO DOS REFUGIADOS NO BRASIL

3.1 LEGISLAÇÃO PROTETIVA NACIONAL

No que se refere ao Brasil, podemos notar uma ampla legislação tratando do tema refugiados, com boa carga principiológica. De fato, nota-se uma preocupação, inclusive recente, em tratar do tema no País, diante de uma situação nova vivida e almejando adequação às tendências internacionais e à própria legislação brasileira prévia, em especial a Constituição Federal de 1988.

O trabalho de acolhimento dos refugiados no Brasil passa muito pelas mãos de grupos particulares, ligados, por exemplo, a instituições religiosas. No entanto, há também a participação de órgãos públicos, em especial o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), criado por lei e que conta com a participação de órgãos governamentais e da sociedade civil, todos com direito a voto.

Há também a atuação do ACNUR, completando uma estrutura tripartite refletida no CONARE que reúne estes atores envolvidos com refugiados no Brasil. As atribuições do comitê envolvem, conforme dispõe a lei 9.474/1997, julgar os pedidos de refúgio em primeira instância; determinar a perda e cessação da condição de refugiado; contribuindo também com orientações e coordenando ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados.

Este trabalho de acolhimento com base em legislação protetiva é, de fato, recente. No entanto, observa-se que, em meio ao regime militar brasileiro da década de 1970, já existiam iniciativas de destaque e que envolviam o trabalho tanto da ACNUR quanto de instituições como as Cáritas, na época ligadas à Igreja Católica. (MOREIRA, p. 15).

O trabalho se intensificou com o processo de redemocratização. Na verdade, ele foi facilitado pela própria política interna e externa desenvolvida a partir daí: tendo como objetivo inserção nos regimes internacionais e mudança da percepção dos demais países acerca de quem seria o Brasil após a retomada da democracia, este passou a engajar-se em questões que envolviam direitos humanos e a proteção da dignidade, abrindo mão de parte de sua soberania em prol da defesa da pessoa.

Essa nova posição verificou-se na assinatura dos Pactos de 1966 relativos a direitos civis e políticos, no ingresso no Tradado de Não Proliferação Nuclear, mas também em adequação de sua legislação interna aos novos objetivos. Como destaque, temos a proteção conferida pela Constituição de 1988 e o estatuto dos refugiados, previsto como lei a ser aprovada em curto prazo pelo Programa Nacional de Direitos Humanos de 1996.

No que tange a trabalho, já destacado como importante forma de integração do refugiado e de promoção de sua dignidade, observamos desde logo o disposto no art. 5º, caput, da CF:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade-, à igualdade, à segurança e à propriedade[...].

Ademais, em artigo anterior, esta pugna pelo valor do trabalho enquanto fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV), sendo ainda mais assertiva ao incluir em seu rol de direitos fundamentais o direito ao trabalho (art. 6º, caput) e ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XII). Em todos estes casos, não estão excluídos os estrangeiros e, em especial, os refugiados.

Aliás, é como determina a Convenção de Genebra de 1951, em seus artigos 17, 18 e 19, ratificada pelo Brasil, ao impor aos seus signatários o dever de tratamento igualitário aos refugiados no que se refere ao trabalho.

A Convenção 97 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) assegura o mesmo tratamento a trabalhadores brasileiros e estrangeiros residentes no país, também esta ratificada pelo Brasil.

Como referenciado, temos além da Carta Magna o Estatuto dos Refugiados como meio de proteção e de definição de políticas públicas, direitos e deveres dos mesmos. Trata-se da Lei nº 9.474, de julho de 1997, que trouxe a definição do termo refugiado, transcrito em seguida:

Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:

I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;

II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;

III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

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Nota-se que o conceito da lei brasileira é mais amplo e, portanto, protetivo que o adotado pela Convenção da ONU Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e que cunhou o termo refugiado como aquele que possui fundado temor de perseguição por razões de raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas. Adentra-se, pois, na seara de proteção daqueles que são obrigados a deixar seu país de nacionalidade por conta de grave e generalizada violação de direitos humanos.

Ainda se nota, segundo o apontado por Moreira (2014, p. 93), que o marco jurídico em questão:

Foi visto como inovador, de vanguarda, avançando sobretudo ao incluir a definição ampliada dada pela Declaração de Cartagena de 1984 (instrumento regional aplicado na América Latina), reconhecendo como refugiados pessoas que fugiram de seus países em decorrência de graves violações de direitos humanos. Outro ponto de contribuição se referia à composição do CONARE, que abarcava a participação de atores da sociedade civil com direito a voto.

O Brasil já contava, então, com importante legislação protetiva, o que foi ainda complementado por ocasião da promulgação da lei de nº 13.445, no ano de 2017, que, apesar do teor mais geral – ao se referir como relativa ao migrante em sua totalidade -, reforça o já previsto nas leis anteriores ao buscar tratar o migrante não como um invasor ou “fugitivo”, passível de atenção redobrada para garantia da segurança nacional, mas como sujeito de direitos.

Atentas à questão trabalhista, essas leis também buscam assegurar a prática laboral, ao estipular, a exemplo do art. 6º, que “O refugiado terá direito, nos termos da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, a cédula de identidade comprobatória de sua condição jurídica, carteira de trabalho e documento de viagem”.

Bem como ao assegurar que:

Art. 43. No exercício de seus direitos e deveres, a condição atípica dos refugiados deverá ser considerada quando da necessidade da apresentação de documentos emitidos por seus países de origem ou por suas representações diplomáticas e consulares.

Art. 44. O reconhecimento de certificados e diplomas, os requisitos para a obtenção da condição de residente e o ingresso em instituições acadêmicas de todos os níveis deverão ser facilitados, levando-se em consideração a situação desfavorável vivenciada pelos refugiados.

As leis são enfáticas ao determinar a possibilidade e a importância do trabalho para integrar e garantir dignidade aos que aqui buscam refúgio. Isso se torna ainda mais claro como princípio ao observar o disposto na lei de migração, verbis:

Art. 3º A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes:

[...]

X - inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas;

XI - acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social;

XII - promoção e difusão de direitos, liberdades, garantias e obrigações do migrante.

De fato, deve ser lembrado, como apresentou Paschoal, que em um ambiente como o encontrado pelo refugiado, repleto de pessoas estranhas e que, por muitas vezes nem falam a sua língua, asseverado em razão da pressão psicológica e econômica vivida por este

O trabalho, certamente, auxiliaria o refugiado a superar (ou tentar superar) as dores da perseguição sofrida, bem como as saudades de casa, além de colaborar no processo de adaptação ao ambiente, conhecendo novas pessoas e fazendo novos amigos. (apud DINALI, 2013, p. 10).

3.2 CHOQUE DE REALIDADE

Ocorre que, apesar da ampla legislação protetiva, são constantes as denúncias de trabalhadores estrangeiros que, especialmente por não conhecerem a língua, as leis e os costumes do país, se veem explorados e enganados, à revelia da proposta de integração. Muitos acabam, desta maneira, em trabalhos semelhantes ao escravo em fábricas de tecidos e de alimentos.

Oferecer trabalho nestas condições não significa acolhimento, diante do que foi apresentado, mas verdadeiro aproveitamento diante da situação degradante que o refugiado vive.

A estas se somaram denúncias de dificuldades em se conseguir trabalho por conta da antiga referência na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) fazer constar o termo “refugiado”, agora substituído por “Estrangeiro com base na Lei n° 9.474 de 22/07/1997” ou “Estrangeiro com base no Art. 21, §1º da Lei nº. 9.474 de 22/07/1997”, este para o caso dos solicitantes de refúgio. (DINALI, p. 12, 2013).

Além disso, segundo aponta Veras Júnior (2016, p.37):

Apesar da Lei para refúgio ser considerada avançada, ao chegar no Brasil, o(a) recém-chegado(a) precisa seguir uma série de procedimentos para conseguir ser reconhecido(a) pelo Estado nacional brasileiro como “refugiado”. A solicitação de refúgio deve ser feita pelo Departamento da Polícia Federal, que encaminha o pedido para o CONARE. Esse comitê do Ministério da Justiça e Cidadania entra em contato com o solicitante marcando uma entrevista, que pode demorar até um ano para acontecer. No entanto, as informações a respeito desses passos burocráticos não chegam de forma imediata para a população refugiada que ao entrar no país, geralmente, de deparam com a falta de representantes de instituições públicas que possam orientá-la.

O processo descrito é necessário para que o refugiado obtenha o reconhecimento de sua condição no Brasil e, assim, consiga a emissão de sua Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), de forma que possa usufruir de direitos trabalhistas nas mesmas condições dos demais trabalhadores, previstas na lei do trabalho.

Segundo aponta a mesma autora, o mesmo se deu por conta do desconhecimento por parte dos contratantes da condição do refugiado, somado à concepção equivocada de que seria um fugitivo de suas reponsabilidades ou por conta de algum crime cometido em seu país de origem. Diante disso, o Brasil acaba sendo muitas vezes apenas um país de passagem ou caminho para outros países próximos. (VERAS JÚNIOR, 2016, p. 38).

O desconhecimento e o preconceito, no entanto, ainda não acabaram e tendem a se intensificar em períodos de maiores dificuldades no país de recebimento do migrante, sendo aferido em várias matérias jornalísticas publicadas diariamente e que atestam um cenário de pouca receptividade e acolhimento.

A exemplo disso, fato ocorrido no ano de 2018, tendas de refugiados venezuelanos foram atacadas por um grupo de brasileiros no estado de Roraima, após o crescimento da violência e da ocupação no mesmo estado.1 A exploração também é verificada no mesmo estado, que tem atraído muitos refugiados em razão de sua proximidade à Venezuela, que vive grave crise econômica, havendo uma situação específica em que migrantes trabalham seis dias por semana por R$ 300,00 trezentos reais) mensais, tendo consciência de que estão sendo explorados, mas também de que a situação de rua anteriormente enfrentada é ainda pior.2

Os relatos apresentam pagamento de salário abaixo do mínimo, longas jornadas, somados a ambientes de exploração infantil e exploração sexual. Com base em dados obtidos por pesquisa sobre Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, somente 56,4% dos refugiados residentes em São Paulo e Rio de Janeiro no ano de 2007 estavam trabalhando, sendo que apenas 32,8% tinham carteira de trabalho assinada pelo empregador. (MOREIRA. 2014, p. 94).

Diante de tudo isso, revela-se a importância tanto de uma conscientização quanto de uma promoção de atividades visando incluir os refugiados e garantir de fato a preservação de sua dignidade. A conscientização deve ser tanto do refugiado quanto do nacional, enquanto as ações devem passar pela garantia de justiça e acesso ao trabalho.

3.3 AS AÇÕES INCLUSIVAS E DESAFIOS

Conforme afirma Saadeh, citado por Dilani, a Convenção de 1951 preceitua em seu artigo 16 que os refugiados possuem o “direito de ter acesso à justiça e gozar, assim como os nacionais e desde que preenchidos requisitos comuns, do direito à assistência judiciária e à isenção de custas”. (2013, pp. 13-14). Assim, verifica-se a possibilidade de o migrante recorrer ao poder judiciário para auferir seus direitos previstos na legislação, bem como deste poder ser livrado de situações de exploração por ação do Ministério Público do Trabalho.

Quanto a esse acesso à justiça, note-se que, assim como ocorre com o nacional, ainda que a atividade laboral seja exercida de maneira informal, sem CTPS ou mesmo sem documento que comprove o status de refugiado do migrante – ou ainda quando este não conseguiu ainda ou pediu o reconhecimento deste status -, o trabalho efetivamente prestado deve ser acobertado pela legislação, sendo ao refugiado garantido acesso ao valor devido segundo a legislação trabalhista nacional.

Também para buscar garantir um acesso à justiça a estas pessoas, que se podem reputar necessitadas diante de sua situação, há a atuação de grupos em faculdades de Direito em todo o país, responsáveis pela devida assistência aos refugiados, que também pode ser prestada por advogados. Anote-se, no entanto, que tendo os mesmos direitos trabalhistas dos nacionais, os refugiados também podem ingressar em juízo por meio de reclamação trabalhista e fazer sua defesa por conta própria, valendo-se do instituto do jus postulandi, nos termos dos art. 651 c/c 839, alínea “a” da CLT.

Entre as ações que buscam ajudar os refugiados em sua inserção, ganham destaque tanto as perpetradas pelo governo quanto aquelas organizadas por particulares.

Podem ser citadas algumas cartilhas informativas criadas, como a “Cartilha de Direitos Trabalhistas para refugiados no Brasil”, publicada pela ACNUR em 2015 e iniciativas mais antigas do Ministério do Trabalho e Emprego, como o “Guia do Trabalho Decente aos Estrangeiros”, do ano de 2010, e a cartilha “Como trabalhar nos países do Mercosul”, do ano de 2005. (DINALI, p.17). As iniciativas informam àqueles refugiados que já obtiveram o reconhecimento de sua condição no país alguns de seus direitos trabalhistas básicos, além de como proceder nos casos de violação desses mesmos direitos.

Enquanto isso, algumas instituições privadas também atuam na proteção dos refugiados, com apoio ou não do governo brasileiro. O ACNUR é uma das principais instituições que buscam fazê-lo, seja por meio da publicação de cartilhas informativas, como já assinalado, seja por atuação junto a ONGs, como as Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro (CARJ) e a de São Paulo (CASP).

O ACNUR atua no Brasil, conforme definido no Estatuto do Refugiado (lei 9.474/1997), junto ao Comitê do Ministério da Justiça (CONARE), órgão em que possui representação permanente. No caso das Cáritas, como aponta Veras Júnior (2016, p.39), estas promove[m] programas, como o “Centro de Acolhida a Refugiados”, objetivados na “integração do refugiado na comunidade para torná-lo autossuficiente economicamente”. Além disso, através da cooperação com instituições de ensino técnico e profissionalizante (SENAI, SESI, SEC, por exemplo), a Cáritas, e suas ramificações, desenvolve projetos a fim de capacitar refugiados (as) para as relações de trabalho brasileiras.

Outras instituições religiosas também contam com papel importante na luta por inserção de refugiados no mercado e na busca por direcioná-los a locais do país onde possam ser mais bem integrados, aliando-se a empresas de aviação e outras que possam acolher os migrantes em seus quadros, como as que vêm atuando em Roraima, com a chegada recente de venezuelanos, tornando difícil a convivência na cidade de Pacaraima e arredores.3

Apesar disso, diante da falta de integração de muitos dos migrantes e da crise vivida, se observa a grande opção destes pela criminalidade. Em Roraima, por exemplo, 65% dos crimes cometidos entre janeiro e agosto do ano de 2018 tinham por suspeitos venezuelanos, tendo sido 39 destes presos em flagrante ou indiciados.4 Com isso, pode se notar um amplo caminho a ser trilhado para colocar em prática o disposto na legislação nacional. Apesar de bastante protetiva, o conjunto de leis ainda enfrenta sérios gargalos a serem eliminados, desde a falta de recursos, passando pela burocracia na concessão de status de refugiado aos que o pedem e esbarrando no preconceito ainda demonstrado pelos cidadãos brasileiros e que tende a se estender diante da situação de crise vivida dentro e fora do território nacional.

Todos estes pontos são sérios entraves à integração destas pessoas que, como todas as demais, contam com proteção à sua dignidade, que passa pelo trabalho e pelo acolhimento, a ser desenvolvido.

Sobre os autores
Caio Rafael Coelho de Sá Rufino

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário.

Luís Eduardo Bomfim Lima

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário.

Thamyris Gabrielle Loureiro de Sousa e Silva

Graduada em Direito pela UFPI. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RUFINO, Caio Rafael Coelho Sá; LIMA, Luís Eduardo Bomfim et al. Entre a lei e a realidade: o trabalho dos refugiados no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5950, 16 out. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77162. Acesso em: 18 mai. 2024.

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