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Franz Kafka e o difícil acesso a proteção jurisdicional.

Uma releitura jurídica

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Agenda 01/01/2000 às 01:00

VI – A supremacia hierárquica das normas constitucionais

Quando se elege como objeto de estudo um tema extraído da Constituição deve ser esclarecida a necessária observância e perfeita compreensão da relevância da proposta, dado que se estará tirando conclusão do Texto Jurídico que domina o cenário jurídico, em razão da supremacia hierárquica das normas jurídicas ali estabelecidas.

É pacífico o entendimento de que a importância do estudo da Constituição reside na reconhecida superioridade hierárquica de suas normas em relação às demais normas que constam de nosso direito positivo ou do nosso sistema jurídico-positivo (conjunto de atos normativos expedidos pelo Estado).

Um ponto é certo: a Constituição é o complexo de normas fundamentais de um dado ordenamento jurídico, ou a ordem jurídica fundamental da comunidade, como diz Konrad Hesse, acrescentando, ainda, que "a Constituição estabelece os pressupostos da criação, vigência e execução das normas do resto do ordenamento jurídico, determinando amplamente seu conteúdo, se converte em elemento de unidade do ordenamento jurídico da comunidade em seu conjunto, no seio do qual vem a impedir tanto o isolamento do Direito Constitucional de outras parcelas do Direito como a existência isolada dessas parcelas do Direito entre si mesmas". 21

Por ser a Constituição, vista aqui no seu conteúdo normativo, "aquele complexo de normas jurídicas fundamentais, escritas ou não escritas, capaz de traçar as linhas mestras do mesmo ordenamento", 22 é que se dá a ela a denominação de Lei Fundamental, porque nela é que estão exarados os pressupostos jurídicos básicos e necessários à organização do Estado, além da previsão das regras asseguradoras de inúmeros direitos aos cidadãos, colocando-se, em razão disso, como base, ponto de partida e fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico pátrio.

É o que, com palavras bem mais precisas e elegantes, tem ensinado nosso mestre Celso Ribeiro Bastos, ao analisar a questão da inicialidade fundamentante das normas constitucionais:

"Como sobejamente conhecido, as normas constitucionais fundam o ordenamento jurídico. Inauguram a ordem jurídica de um dado povo soberano e se põem como suporte de validade de todas as demais regras de direito. São normas originárias, fundamentantes e referentes, enquanto que as demais se posicionam, perante elas, como derivadas, fundamentadas e referidas. Aquelas de hierarquia superior, e estas, logicamente de menor força vinculatória". 23

O jusfilósofo Hans Kelsen, por sua vez, ao dissertar sobre a Constituição no exercício do papel de fundamento imediato de validade da ordem jurídica, explica o porquê de tal raciocínio:

"O Direito possui a particularidade de regular a sua própria criação. Isso pode operar-se por forma a que uma norma apenas determine o processo por que outra norma é produzida. Mas também é possível que seja determinado ainda -- em certa medida -- o conteúdo da norma a produzir. Como, dado o caráter dinâmico do Direito, uma norma somente é válida porque e na medida em que foi produzida por uma determinada maneira, isto é, pela maneira determinada por uma outra norma, esta outra norma representa o fundamento imediato de validade daquela. A relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infra-ordenação. A norma que regula a produção é a norma superior; a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior". 24

Considerada dessa maneira, a Constituição é a referência obrigatória de todo o sistema jurídico, inclusive dela própria, uma vez que estabelece no seu próprio corpo as formas pelas quais poderá ser reformada (por intermédio do processo de emenda ou de revisão, na atual Carta Magna brasileira), daí surgindo a noção de hierarquia 25 entre as normas jurídicas, de tal sorte que normas de grau superior são as que constam das Constituições (Constituição Federal, Constituições dos Estados-Membros e Leis Orgânicas Municipais, sendo que as duas últimas também se submetem à primeira) e normas de grau inferior são as veiculadas por intermédio de leis ordinárias, leis complementares, medidas provisórias etc.

Em razão dessa superioridade, devem ser extirpados do ordenamento jurídico em que exista uma Constituição em vigor quaisquer atos contrários a ela que tenham a pretensão de produzir efeitos jurídicos, inexistindo lugar, inclusive, para regras jurídicas que pretendam ser superiores à própria Constituição ou que, sendo normas constitucionais originárias, sejam inconstitucionais. 26

Digno de menção é este trecho da lição de Gomes Canotilho e Vital Moreira:

"A Constituição ocupa o cimo da escala hierárquica no ordenamento jurídico. Isto quer dizer, por um lado, que ela não pode ser subordinada a qualquer outro parâmetro normativo supostamente anterior ou superior e, por outro lado, que todas as outras normas hão-de conformar-se com ela.

"................................

"A principal manifestação da preeminência normativa da Constituição consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo, de modo a eliminar as normas que se não conformem com ela". 27

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Assim sendo, toda e qualquer norma, seja de direito público, seja de direito privado, que contrariar comando constitucional, será tida por inconstitucional, sendo norma inválida perante o sistema normativo, 28 devendo ser expulsa do mesmo de acordo com os mecanismos processuais existentes (controle da constitucionalidade difuso e concentrado). À supremacia das normas constitucionais todas as demais normas devem adequar-se.

Mais uma vez é Hans Kelsen quem bem explica a propalada superioridade hierárquica da Constituição, ensinando-nos que "a ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental pressuposta. A norma fundamental -- hipotética, nestes termos -- é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora". 29


VII – O princípio constitucional do amplo acesso à jurisdição

Pois bem, o texto de KAFKA revelou a dificuldade do acesso à lei enquanto ato normativo gerador de direitos e obrigações, no seu aspecto dinâmico, porque o homem do campo visava ter acesso à aplicação concreta do Direito, visando solucionar algum problema que lhe afligia.

Isto acabou não sendo possível, em razão da equivocada interpretação dada à negativa inicial do porteiro em termos de acesso à lei.

A partir desta situação artificialmente criada por KAFKA, compete-nos a análise do acesso à jurisdição em território pátrio.

O ponto de partida em termos dogmáticos reside no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal de 1988, que estabelece que "A LEI NÃO EXCLUIRÁ DA APRECIAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO LESÃO OU AMEAÇA A DIREITO".

Trata-se de previsão constitucional das mais relevantes para o regime de Estado de Direito mantido no Brasil, dado que se garante a efetiva prestação jurisdicional, envolvendo atos de governantes e governados, inclusive nos casos de ameaça de futura lesão de direitos.

Este preceito constitucional acaba por revelar que nem mesmo uma equivocada interpretação poderá levar à vedação do acesso a uma prestação jurisdicional rápida, eficaz e justa. Isto decorre da utilização inicial da palavra LEI. Se nem o legislador poderá estabelecer limitações não previstas na Constituição, muito menos será admitido que o intérprete, o magistrado ou qualquer outro operador do Direito venha a enxergar limitações diante da plenitude do que se estabeleceu a título de direito ou garantia fundamental, que dificilmente poderia ser suprimido por Emenda (conf. art. 60, § 4º, inciso IV).

Conforme destacou Nelson Nery Junior, "embora o destinatário principal desta norma seja o legislador, o comando constitucional atinge a todos indistintamente, vale dizer, não pode o legislador e ninguém mais impedir que o jurisdicionado vá a juízo deduzir pretensão". 30

Transportada a questão revelada por KAFKA para o território pátrio, tem-se que a Constituição se apresenta como elemento impeditivo de toda e qualquer atuação particular ou governamental que possa significar vedação ao acesso que todos têm ao Poder Judiciário.

Entendimento contrário violaria a interpretação sistemática da Constituição, que aponta realmente na direção de garantir no Brasil o amplo acesso à jurisdição, com os meios e recursos inerentes ao ato.

A compreensão exata do texto de KAFKA leva o estudioso a entender que não basta a previsão constitucional para o acesso à justiça se revelar como algo efetivo e concreto. Isto é assim porque também se faz necessário todo um delineamento infraconstitucional, por via da legislação ordinária, como forma de serem estabelecidas as leis de natureza processual que facilitem e incentivem a distribuição de um maior volume de demandas judiciais.

Ocorre que no Brasil o investimento realizado junto ao Judiciário é pequeno e insatisfatório, o que prejudica em muito a satisfação das pessoas que por um motivo qualquer estão em litígio. O preceito constitucional sob análise está diretamente vinculado a investimentos mais importantes quanto ao Poder Judiciário, pois de nada adianta a previsão geral e abstrata se não existem soluções administrativas e legislativas concretas e eficientes para viabilizar uma prestação jurisdicional rápida, eficiente e justa. Este é o ideal a ser buscado, ainda não alcançado no Brasil.

Só assim poderemos passar a visualizar ou a interpretar o princípio do amplo acesso à jurisdição de forma a dele extrair noções mais eficazes e que solucionem de forma mais imediata os conflitos de interesse qualificados por pretensões resistidas.


VIII – Conclusões

Com o objetivo de sintetizar o que foi visto ao longo do estudo, elencaremos, em seguida, sob a forma de itens, as principais conclusões a que chegamos.

1. Por conter normas que dão estrutura (organização) ao Estado, normas que estabelecem a forma de elaboração das outras normas e que fixam os direitos e as responsabilidades dos indivíduos, é que a Constituição passa a ser reconhecida como Lei Fundamental, por ser a base de todo o direito positivo da comunidade que a adote, em especial naqueles países que possuem um sistema baseado na lei escrita, sobrepondo-se, inclusive, em relação aos demais atos normativos por estar situada no vértice da pirâmide jurídica que representa idealmente o conjunto de normas jurídicas vigentes em determinado espaço territorial.

2. A Constituição Federal serve como referência obrigatória de todo o sistema jurídico, que ela própria inaugura, pondo-se como suporte de validade de todas as normas jurídicas da comunidade e sendo a matriz de toda e qualquer manifestação normativa estatal.

3. Por ocupar o cimo da escala hierárquica no ordenamento jurídico, todas as demais normas deverão conformar-se com a Constituição Federal. À supremacia das normas constitucionais todas as demais normas devem adequar-se.

4. O estudioso do Direito, em especial o jurista dogmático, não deve se afastar do conteúdo jurídico das normas a serem interpretadas, respeitando os limites oferecidos pela própria norma, visando unicamente compreendê-las para bem descrevê-las, pois não é sua tarefa julgar as normas do sistema.

5. A norma jurídica é a baliza da atividade interpretativa do jurista dogmático, algo que é assim colocado para que se respeitem as vigas mestras do sistema jurídico pátrio, que são os princípios da certeza e da segurança jurídica, além do tradicional princípio da tripartição das funções estatais.

6. O resultado das análises interpretativas realizadas neste estudo é apenas um dos resultados possíveis, nunca um resultado que seja o único correto, por não ser permitido ao cientista do Direito valorar a norma a ponto de sustentar ser esta ou aquela interpretação a única aplicável ao caso sob análise.

7. A coordenação e o inter-relacionamento das normas constitucionais sempre deverá ser buscado pela via da interpretação sistemática, em razão deste método da hermenêutica jurídica permitir uma visão grandiosa do Direito, pois não se deve atentar unicamente para regras jurídicas isoladas, mas sim voltar-se os olhos para o sistema constitucional, compreendido como um todo uno, harmônico e coerente.

8. O sentido jurídico da Constituição é o único sentido possível e válido de ser estudado pelo jurista dogmático, por ser este o sentido que aproxima o estudioso da característica própria do Direito – e, por conseqüência, das próprias normas constitucionais --, que é a imperatividade, que se traduz na obrigatoriedade do cumprimento dos preceitos normativos por parte daqueles a quem os mesmos são dirigidos.

9. O texto de KAFKA aponta para uma dificuldade de interpretação de alguém que pretendia ter acesso à Justiça, não tendo alcançado este objetivo em razão da equivocada interpretação da mensagem expedida por um agente estatal.

10. Fato é que se o homem do campo tivesse interpretado corretamente a negativa inicial do porteiro, o que não ocorreu, teria tido acesso posterior à lei ou à justiça, pois o encerramento da parábola é no sentido de que ali ninguém mais poderia entrar a não ser o próprio homem do campo, dado que a ele estava reservado aquele espaço.

11. O texto revela as dificuldades que surgem nos relacionamentos humanos, tudo porque às vezes não conseguimos desvendar com precisão as mensagens transmitidas por nossos interlocutores, algo muito freqüente em termos de transmissão de mensagens normativas.

12. O princípio do amplo acesso à jurisdição se revela como previsão constitucional das mais relevantes parra o regime de Estado de Direito mantido no Brasil, dado que se garante a efetiva prestação jurisdicional, envolvendo atos de governantes e governados, inclusive nos casos de ameaça de futura lesão de direitos.

13. Transportada a questão revelada por KAFKA para o território pátrio, tem-se que a Constituição se apresenta como elemento impeditivo de toda e qualquer atuação particular ou governamental que possa significar vedação ao acesso que todos têm ao Poder Judiciário.

14. A compreensão exata do texto de KAFKA leva o estudioso a entender que não basta a previsão constitucional para o acesso à Justiça se revelar como algo efetivo e concreto. É que também se faz necessário todo um delineamento infraconstitucional, por via da legislação ordinária, além de um necessário investimento material, algo que viria a incrementar a solução de conflitos de interesses qualificados por pretensões resistidas.

Sobre o autor
André Luiz Borges Netto

advogado constitucionalista em Campo Grande (MS), professor universitário, mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES NETTO, André Luiz. Franz Kafka e o difícil acesso a proteção jurisdicional.: Uma releitura jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. -1278, 1 jan. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/773. Acesso em: 18 nov. 2024.

Mais informações

Texto baseado em trabalho do curso de Doutorado em Direito Constitucional da PUC/SP, objetivando uma releitura de texto de Franz Kafka frente à realidade jurídica atual

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