I - Introdução
O objetivo do estudo se limita à análise de um capítulo da obra "O Processo" de FRANZ KAFKA, denominado pelo tradutor Modesto Carone de "Diante da Lei".
A orientação da Professora MARIA GARCIA é no sentido de que se deve analisar aquele texto do ponto de vista da linguagem (comunicação) e jurídico (constitucional), através dos autores e escolas de interpretação, citando-se fontes bibliográficas e dispositivos constitucionais.
Trata-se, como se vê, de tarefa das mais complexas, dada à dificuldade inerente à leitura e compreensão de FRANZ KAFKA, aliando-se isto à percepção de tudo que se estudou durante este semestre letivo (o que envolveu, quanto ao aspecto jurídico-lingüístico, inúmeros autores nacionais e estrangeiros).
Ao invés de fazermos um breve apanhado ou resumo do que se estudou, preferimos desenvolver, a partir do texto indicado pela nossa Professora, uma reflexão acerca de importante tema de direito constitucional, relacionado às dificuldades que surgem diariamente quanto ao acesso à jurisdição, garantia constitucional das mais importantes e destacadas.
Convém dizer que o estudo desenvolvido criou a necessidade de fazermos uma nova leitura de todo o material didático do semestre, o que nos levou a enfrentar, novamente, com muito gosto, obras de alto nível técnico, de autores respeitados, tais como CANOTILHO, HESSE, BONAVIDES, GORDILLO, TEMER, BASTOS, MAXIMILIANO, SICHES etc.
A fidelidade à escola filosófica da PUC/SP fez com que a maior parte das considerações desenvolvidas por HANS KELSEN (dogmática jurídica) fossem seguidas no estudo. Esta é a razão que nos levou a não aprofundarmos ou a não descer a minúcias ou detalhes sobre aspectos históricos, políticos ou sociológicos dos temas abordados.
Entendemos ser necessário enfrentar inicialmente o tema da hermenêutica jurídica para só depois analisar especificamente o texto de FRANZ KAFKA, vinculando-o, posteriormente, ao princípio constitucional do amplo acesso à jurisdição, alcançando-se, na etapa final, as conclusões que permitem uma compreensão ampla do que estudamos.
II - Interpretação jurídica (algumas noções)
É sabido que na base de todo e qualquer problema de natureza jurídica está a questão da interpretação . O professor, o magistrado, o advogado, enfim, todo e qualquer operador do Direito, para extrair alguma noção de uma ou mais normas jurídicas, precisa, de antemão, interpretá-las, fixando o sentido ou o significado jurídico das normas objeto de questionamento, visando demarcar o seu campo de incidência.
Eis a razão pela qual julgamos ser necessário constar do início de nosso estudo um espaço dedicado à interpretação das normas jurídicas, sendo certo, porém, que, por ser outro o objetivo principal de nossas indagações, apreciaremos o tema apenas para delinear algumas das linhas mestras da HERMENÊUTICA, naquilo que for aplicável ao nosso tema principal. 1
Partimos da premissa de que o intérprete se vê diante de várias significações possíveis para as normas analisadas, exatamente em razão do sentido verbal das mesmas não ser unívoco, pois o legislador, ao transformar em normas o fruto de suas valorações políticas, 2 utiliza-se da linguagem natural, que é caracterizada pela vagueza e ambigüidade, além de sua textura aberta, 3 razões pelas quais normalmente as prescrições legais são imprecisas, embaraçando, muitas vezes, a transmissão clara das mensagens normativas.
Correto parece ser, no labor científico, verificar, no interior do sistema, quais as normas que foram prestigiadas pelo legislador constituinte, para desvendar aquelas que foram erigidas em princípios gerais regentes desse mesmo sistema, 4 vetores estes que serão de grande utilidade para a solução dos questionamentos que levantaremos a propósito do texto de FRANZ KAFKA.
De algo, porém, estaremos sempre atentos, em razão disto ser uma das premissas básicas de todo e qualquer estudo científico, qual seja: o Direito, como ordem normativa da conduta humana, merece ser interpretado sem arbitrariedades, 5 onde o jurista dogmático, visando compreender suas normas para bem descrevê-las (pois não é sua tarefa julgar as normas do ordenamento), sempre deverá reter na memória a noção de que devem ser respeitados os limites oferecidos pela própria norma, no sentido de não se chegar a uma interpretação "contra legem". Sabemos que este limite não é claro, não estando nem muito menos delimitado com a precisão necessária, mas a questão é de não se ultrapassar o conteúdo jurídico oferecido pela normas interpretadas. 6
Referido destaque parece ser importante, na medida em que, na atualidade de nosso mundo jurídico, muitas são as teses e discussões doutrinárias que colocam o justo em situação de prevalência em face do Direito, o que supomos ser incorreto, principalmente quando essas mesmas teses acabam sendo aceitas por aqueles que transformam as normas gerais e abstratas em normas individuais e concretas, por intermédio das decisões e sentenças, que são os magistrados.
Com tal afirmação, queremos deixar certo que A NORMA JURÍDICA É A BALIZA DA ATIVIDADE INTERPRETATIVA DO JURISTA DOGMÁTICO, algo que é assim colocado para que se respeitem as vigas mestras do sistema jurídico pátrio, que são os princípios da certeza e da segurança jurídica, além do tradicional princípio da tripartição das funções estatais. 7
Tal posicionamento, longe de derivar de posições meramente opinativas, deflui do que sempre foi ensinado pela doutrina mais autorizada, como é o caso da seguinte lição de Carlos Maximiliano, "verbis":
"Cumpre evitar {o intérprete}, não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais este se apaixonou, de sorte que vislumbra no texto idéias apenas existentes no próprio cérebro, ou no sentir individual, desvairado por ojerizas e pendores, entusiasmos e preconceitos. ‘A interpretação deve ser objetiva, desapaixonada, equilibrada, às vezes audaciosa, porém não revolucionária, aguda, mas sempre atenta respeitadora da lei’.
"‘Toda inclinação, simpática ou antipática, enfraquece a capacidade do intelecto para reconhecer a verdade, torna-o parcialmente cego. A ausência de paixão constitui um pré-requisito de todo pensamento científico’". 8
Não é nosso propósito, aqui, destacar todas as regras de interpretação das normas constitucionais 9 a serem objeto de análise. Limitaremos essas colocações iniciais somente àquilo que julgamos necessário à correta interpretação do texto de FRANZ KAFKA.
Ademais, em matéria de interpretação do Direito, não parece ser possível estabelecer princípios rígidos ou uma escala de precedência entre os diversos métodos existentes, pois não há subordinação ou hierarquia entre os vários recursos da hermenêutica, de vez que "a teoria da interpretação há de contentar-se com fornecer diretivas um pouco mais vagas e plásticas que, sem abandonarem o intérprete a um empirismo incontrolado, alguma coisa peçam todavia à delicadeza e à finura do seu senso jurídico". 10
Colocadas tais premissas hermenêuticas, convém delinear o que entendemos do texto de FRANZ KAFKA, para vinculá-lo posteriormente à questão constitucional destacada na introdução.
III – O saboroso texto de KAFKA
KAFKA, no capítulo denominado "Diante da Lei" por Modesto Carone, estabelece um interessante e intrigante diálogo entre K. (o personagem principal do livro "O Processo") e um determinado sacerdote.
Analisado o texto, constatamos que se trata de uma parábola em que se destaca a dificuldade que tem o cidadão comum para ter acesso ao Poder Judiciário. Isto é revelado pela imensa dificuldade em interpretar ou compreender a mensagem expressada pelo porteiro que estava diante da lei (ou tribunal).
O homem do campo que se dirigiu ao porteiro e pediu para entrar na lei recebeu como resposta que a entrada não seria admitida de imediato, sendo possível a admissão posteriormente. Como está referido no texto, "o homem do campo não esperava tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele".
O sacerdote, conversando com K., revelou-lhe que duas seriam as interpretações possíveis acerca da suposta negativa expressada pelo porteiro, a saber: uma primeira interpretação seria no sentido de que o porteiro (ao contrário do que K. pensou inicialmente) não haveria enganado o homem do campo, porque teria negado a ele apenas inicialmente o devido acesso à lei, de vez que ao final da conversa deixou dito que ninguém mais poderia ser admitido na porta da lei, pois esta entrada estava destinada somente a ele (homem do campo); já a segunda interpretação, que também contraria o entendimento inicialmente firmado por K., era no sentido de que o enganado seria justamente o porteiro, interpretação esta que parte da ingenuidade do porteiro, que não conhece o interior da lei, mas somente o caminho que precisa percorrer continuamente diante da entrada.
O que se constata do texto, pois, é a existência de mais de uma interpretação possível para a questão do acesso à Justiça.
Fato é que se o homem do campo tivesse interpretado corretamente a negativa inicial do porteiro, o que não ocorreu, teria tido acesso posterior à lei ou à justiça, pois o encerramento da parábola é no sentido de que ali ninguém mais poderia entrar a não ser o próprio homem do campo, dado que a ele estava reservado aquele espaço.
Como se vê, o texto revela as dificuldades que surgem nos relacionamentos humanos diariamente, tudo porque às vezes não desvendamos corretamente as mensagens transmitidas por nossos interlocutores.
Isto também ocorre com as mensagens normativas (até com bastante freqüência), razão pela qual resolvemos, a partir das idéias destacadas por KAFKA, apreciar criticamente o princípio constitucional explícito do amplo acesso à jurisdição, porquanto todo aquele que se achar DIANTE DA LEI deve ter acesso direto a ela, sob pena de não se viver, ainda que formalmente falando, em um regime de Estado de Direito.
IV - O resultado da interpretação jurídica será apenas um dos resultados possíveis
Como vimos acima, duas pelo menos eram as interpretação possíveis da mensagem transmitida pelo porteiro. Assim também ocorre com a interpretação de mensagens normativas, o que torna mais difícil e complexo o trabalho dos juristas (e o que leva à necessidade de sua existência e permanência).
Oportuno se torna dizer que, na linha da corrente filosófica que adotamos (HAHS KELSEN, Teoria Pura do Direito), o resultado das análises interpretativas que faremos será apenas um dos resultados possíveis, sendo que afastamos a intenção de fazer prevalecer a solução por nós adotada como se ela fosse a única solução correta para os problemas que surgirem no decorrer de nossa explanação.
Afigura-se-nos correta referida premissa, pois, segundo ensinamento do notável Hans Kelsen, "a questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a ‘correta’, não é sequer -- segundo o próprio pressuposto de que se parte -- uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito". 11
O resultado, portanto, de nossa tarefa interpretativa do texto de KAFKA e da Constituição, no aspecto que interessa ao presente estudo, será um resultado apenas possível, nunca um resultado que seja o único correto, por não ser permitido ao cientista do Direito valorar a norma a ponto de sustentar ser esta ou aquela interpretação a única aplicável ao caso sob análise. Isto decorre da convicção de que o Direito a aplicar forma "uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo o ato que mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível". 12
Também adotaremos neste estudo a noção de ser o Direito um conhecimento tecnológico, prático, voltado para a decidibilidade de conflitos, ainda que tais conflitos sejam meramente teóricos, porque são frutos da mente de quem estuda determinado assunto sob o nível da ciência jurídica "stricto sensu". Para tanto, sempre daremos um resultado para nossas pesquisas acerca do sentido das normas analisadas, sentido este que será apenas um dos possíveis sentidos a dar à questão posta.
Sabedores, porém, de que a interpretação é um mero ato de vontade e de valoração, não cabendo à Ciência do Direito dizer qual é o sentido mais justo ou correto, mas apenas apontar as interpretações possíveis, 13 utilizaremos no presente estudo a Lógica do Razoável de Recasén Siches, para escolhermos, dentre as possíveis interpretações que se nos apresentarem, a que nos parecer mais razoável, por estar de acordo com as regras e princípios jurídicos sob questionamento. 14 Somente assim conseguiremos realizar trabalho com alguma finalidade prática, tarefa a que o jurista deve obrigatoriamente se submeter, pois de nada adiantará a elaboração de estudo desprovido de qualquer intenção de servir para a evolução do pensamento jurídico e para a decidibilidade de conflitos.
V – A importância da interpretação sistemática
Para conseguirmos extrair do Texto Constitucional os múltiplos relacionamentos com o texto de KAFKA, teremos que, desde o início, adotar como proposta exegética a consideração dos princípios e regras jurídicas em harmonia com o contexto geral do sistema constitucional. Com isto queremos dizer que, a despeito de não menosprezarmos nenhum dos conhecidos métodos interpretativos, a coordenação e o inter-relacionamento das normas constitucionais será buscado pela via da interpretação sistemática, considerada o método por excelência da hermenêutica jurídica por Paulo de Barros Carvalho, 15 em razão de permitir uma visão grandiosa do Direito.
Como observou o inesquecível Geraldo Ataliba, "qualquer proposta exegética, objetiva e imparcial, como convém a um trabalho científico, deve considerar as normas a serem estudadas, em harmonia com o contexto geral do sistema jurídico. Os preceitos normativos não podem ser corretamente entendidos isoladamente, mas, pelo contrário, haverão de ser considerados à luz das exigências globais do sistema, conspicuamente fixados em seus princípios. Em suma: somente a compreensão sistemática poderá conduzir a resultados seguros. É principalmente a circunstância de muitos intérpretes desprezarem tais postulados metodológicos que gera as disparidades constantemente registradas em matéria de propostas de interpretação". 16
Realmente, na perquirição do significado ou conteúdo de qualquer texto normativo, e especialmente quando o texto é a Constituição, 17 o intérprete, ao invés de atentar unicamente para regras isoladas, deverá voltar os olhos para o sistema constitucional, compreendido como um todo uno, harmônico e coerente. Com noção dessa natureza, nosso empenho deverá ser no sentido de fazer com que as normas constitucionais se ajustem umas às outras, fazendo com que eventuais antinomias sejam meramente aparentes, solucionáveis pelos critérios interpretativos existentes.
Sobre a interpretação sistemática, veja-se o que escreveu Luís Roberto Barroso:
"O método sistemático disputa com o teleológico a primazia no processo interpretativo. O direito objetivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmonicamente. A interpretação sistemática é fruto da idéia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas. Em bela passagem, registrou Capograssi que a interpretação não é senão a afirmação do todo, da unidade diante da particularidade e da fragmentaridade dos comandos singulares". 18
Verifique-se, inclusive, que uma das raríssimas intervenções do legislador constituinte em matéria de interpretação constitucional foi dada pelo texto da Constituição da Thecoslováquia, de 1948, quando nela restou estabelecido que "a interpretação das diversas partes da Constituição deve inspirar-se no seu conjunto e nos princípios gerais sobre os quais se alicerça". Vale a citação como notícia histórica, sendo que agiu correto nosso legislador constituinte em não adotar regra semelhante, já que o campo das prescrições impositivas, voltado para a disciplina do comportamento humano, é impróprio para as definições e estabelecimento de critérios interpretativos, algo que é encargo da doutrina, como se sabe.
Ao adotarmos tal premissa metodológica -- decorrente da estrita observância do método da interpretação sistemática, tal como posto pela melhor doutrina --, acreditamos operar no sentido da concretização do princípio da unidade da Constituição, que na pena do constitucionalista português Gomes Canotilho é considerado como princípio interpretativo, quando com ele se quer significar que o direito constitucional deve ser interpretado de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas, princípio este que acaba por obrigar o intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar. 19
Do quanto ficou escrito, pode-se inferir que temos como pretensão básica a consecução do objetivo exegético delineado por Carlos Maximiliano, no sentido de que o Direito deve ser interpretado inteligentemente, "não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, ou este, juridicamente nulo". 20