4. ADO 26 E MI 4733: O JULGAMENTO DO STF E SUAS REPERCUSSÕES PARA ALÉM DO DEBATE PÚBLICO
A defesa das pautas dos movimentos LGBTs ainda é um tema polarizado e que suscita muitas paixões, o que não poderia ser diferente. Tomando por referência o breve e superficial relato histórico trazido à baila no início do presente trabalho, é possível perceber que, por traz do ‘preconceito nosso de cada dia’, aparentemente banal, existem séculos de perseguição, opressão e marginalização institucionalizada pelo próprio Estado às liberdades sexuais e de autodeterminação dos indivíduos que não se encaixavam nos padrões heteronomativos fixados.
Não há dúvidas de que a heteronormatividade – agora de natureza moral - ainda presente em nossa cultura é um reflexo direto do ódio institucionalizado de outras épocas e que privar o indivíduo do exercício de sua liberdade sexual e, mais ainda, de sua identidade de gênero, é uma violência sem precedentes, todavia, tais questões não são objeto do presente trabalho, que apenas tem o condão de jogar luz, sob o ponto de vista técnico-jurídico, na maneira que se deu a criminalização das práticas homotransfóbicas pelo Judiciário.
A decisão proferida pelo Supremo Tribunal, no julgamento da ADO 26 e do MI 4733, gravita em torno da linha invisível que separa os limites de atuação entre o Judiciário e o Legislativo. Vale salientar que as referidas ações constitucionais não foram unidas no mesmo julgamento à toa. Embora guardem suas diferenças, estas demandas se aproximam, essencialmente, por tratarem de omissão legislativa que, de algum modo, venham a violar a Constituição, impedindo-lhe de dar concretude a um direito previsto. (NEVES, 2018, p.158)
Ocorre, porém, que a decisão proferida pelo Min. Celso de Melo na ADO 26 não se limitou apenas à reconhecer a existência de uma omissão normativa inconstitucional por parte do Poder Legislativo da União, mas também, estabeleceu uma interpretação conforme para enquadrar a homofobia e a transfobia, em qualquer de suas manifestações, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, que tipifica os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. (BRASIL, 2019, p.154)
O Senado Federal, no entanto, considerou que a decisão do STF extrapolou os limites de atuação do judiciário, usurpando a competência legislativa privativa do Congresso Nacional para legislar em matéria penal, nos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, razão pela qual, ingressou com o Projeto de Decreto Legislativo nº 404/2019 com o objetivo de sustar os efeitos da decisão prolatada pelo Supremo. (SENADO FEDERAL, 2019)
Além dos limites de atuação do Judiciário face ao Poder Legislativo, há outros aspectos no julgamento em questão que merecem um olhar mais atento, principalmente, por terem ficado à mingua de um enfrentamento adequado pela Suprema Corte. A inovação no âmbito criminal jamais pode perder de vista os Princípios Constitucionais do Direito Penal, sejam os implícitos ou os explícitos. Recorrendo aos ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci, por se tratar da mais drástica opção estatal para regular os conflitos e aplicar as sanções, a aplicação da lei penal deve amoldar-se ao princípio regente da dignidade humana, bem como, ao princípio histórico do Devido Processo Legal, que guarda suas raízes no Princípio da Legalidade. (NUCCI, 2016, p. 71)
Segundo o Princípio da Legalidade (ou Reserva Legal), as normas penais incriminadoras somente podem ser criadas a partir da lei em sentido estrito, e com isso, diga-se aquelas emanadas do Poder Legislativo, devendo ser respeitado os procedimentos previsto no artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal, bem como, do artigo 1º do Código Penal brasileiro, segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem tão pouco, pena “sem prévia cominação legal”. (Idem. p.72)
Outro ponto que também evidencia o aparente afastamento dos princípios penais e das garantias constitucionais é a utilização da analogia para tipificar as práticas de homofobia e transfobia com os crimes contra a igualdade racial, tipificados pela Lei 7.716/89. Como se sabe, a analogia é um procedimento autointegrativo do direito que cria uma norma jurídica onde, originalmente, não existe. Muito embora ela seja perfeitamente aplicável em vários ramos do direito, quando se trata de matéria penal, a analogia não poderá ser aplicada, pelo menos, ‘in malam partem’ (em prejuízo da parte), sob pena de flagrante mitigação do Princípio da Legalidade (ou Reserva Legal). (Idem. p.89)
Diante desses relevantes obstáculos à pretensão do STF de tornar crime as práticas de homofobia e transfobia, o Ministro Relator destacou que a referida decisão não se trataria de uma criação legislativa por parte do judiciário, nem tão pouco, de uma interpretação analógica ‘in malam partem’, mas sim, de uma “mera subsunção de condutas homotransfóbicas aos diversos preceitos primários de incriminação definidos em legislação penal já existente”, uma vez que tais práticas caracterizaram-se como uma modalidade de racismo; o ‘racismo social’.
Analisando melhor o conceito de subsunção, do ponto de vista semântico, esta pode ser compreendida como a ação ou efeito de subsumir, isto é, incluir (alguma coisa) em algo maior, mais amplo. Do ponto de vista jurídico, representa a adequação de fato jurídico naturalístico em sentido amplo (seja uma conduta humana, um fato da natureza ou algum fato intangível fisiologicamente, porém, relevante para o direito) à uma determinada norma jurídica. (DIREITONET, 2019)
Em matéria penal, a subsunção pode ser compreendida como o reconhecimento da tipicidade, que por sua vez, deve levar em conta o Princípio da Taxatividade, segundo o qual, as leis penais incriminadoras devem ser escritas de maneira suficientemente clara, evitando-se ambiguidades, imprecisão ou qualquer outro tipo de indeterminação semântica que venha a deixar em dúvida os destinatários da norma e os aplicadores do direito acerca do seu conteúdo, evitando-se diferentes e contrastantes aplicações do direito. (NUCCE, 2016, p.78)
Se de um lado, um artigo 5º, inciso XLI, da Constituição Federal, ao dispor que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” se mostra suficiente para o Supremo diagnosticar a mora do Congresso e criminalizar práticas discriminatórias homotransfóbicas, por outro lado, a decisão proferida também se mostra extremamente frágil e arbitrária ao ignorar os Princípios Constitucionais do Direito Penal e, de maneira artificiosa e semanticamente elástica, considerar a criminalização da homofobia e da transfobia uma mera subsunção de tais condutas aos preceitos incriminadores da Lei de Racismo.
Apresentado 100 (cem) anos após a abolição da escravidão pela Lei Áurea, o Projeto de Lei nº 668/89, que culminou na lei de crimes raciais, constitui um marco histórico na República do Brasil, não havendo quaisquer dúvidas quanto à intenção do legislador ao alcance pretendido com a norma incriminadora promulgada. Vale aqui destacar o seguinte trecho da justificação do referido PL que refuta a ideia de subsunção incorporada pela ADO 26 (CAMARA DOS DEPUTADOS, 2019):
“O negro deixou, sem dúvida, de ser escravo, mas não conquistou a cidadania. Ainda não tem acesso aos diferentes planos da vida econômica e política. É mais do que evidente que as desigualdades e discriminações raciais marcam a sociedade, o Estado e as relações econômicas em nosso País. Passados anos da Lei Áurea, esta é a situação real. Embora os valores culturais – em suma, a herança cultural africana – mantenham a capacidade de impregnar a vida do brasileiro, quaisquer que sejam os traços étnicos, o negro está privado do direito à cidadania em uma prática odienda do racismo. ”
É imperioso notar que, por traz de uma decisão que, aparentemente, parece atender ao clamor público de uma população vitimada pelas práticas discriminatórias homotransfóbicas, pode haver um risco a democracia constitucional, tendo em vista que não há legitimidade representativa quando o Poder Judiciário passa a legislar. Regimes totalitários, que representam a antítese da democracia, são comumente marcados por mecanismos e teorizações jurídico-políticas que enfraquecem o poder normativo da lei. (FERREIRA, 2018, p.148)
A questão da criminalização da homofobia ainda não possui um ponto final com o referido julgamento. Não se sabe ainda se os efeitos da decisão serão sustados pelo Projeto de Decreto Legislativo 404/2019, ou se a matéria será, em um futuro breve, regulamentada pelo Congresso, ou mesmo, se os Juízes de piso irão mitigar os princípios penais constitucionais para dar efetividade a tipificação realizada pelo STJ.
Todavia, o julgamento em análise conclama a uma reflexão acerca dos fins e dos meios quando se trata das exacerbações entre os Poderes da República, uma vez que, nem sempre, a falta de legitimidade do Judiciário estará em sintonia com o melhor interesse público, ou com os daqueles legitimados para representarem os interessas da população pelo exercício do voto.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito embora a referida decisão do Supremo Tribunal venha a se conciliar com os anseios da População LGBT, bem como de todos aqueles que defendem uma tutela penal específica para práticas discriminatórias homotransfóbicas, é preciso que se tenha um olhar cauteloso quanto ao modo de efetivação dessa inovação jurídica.
A separação dos poderes, assim como os Princípios Constitucionais do Direito Penal. são, essencialmente, pilares estruturantes do Estado Democrático de Direito. A história das civilizações não deixa dúvidas quanto aos riscos do desequilíbrio e da supressão do consagrado sistema de freios e contrapesos (ditaduras, regimes totalitários, abuso de poder), bem como, da inobservância das garantias individuais pelo Direito Penal.
É notório que o esforço hermenêutico empregado pela Suprema Corte brasileira, no julgamento da ADO 26 e do MI 4733, para enquadrar as práticas discriminatórias de caráter homófobo e transmófobo na lei de crimes raciais, ultrapassou a linha que baliza a correta atuação do Poder Judiciário, em especial, quanto ao descompasso dos argumentos apresentados na fundamentação da decisão com os princípios constitucionais do direito penal que se aplicam, inclusive, ao próprio legislador.
A proteção jurídica do direito à liberdade sexual e de autodeterminação, embora necessária, não deve ser concretizada à revelia dos Princípios Constitucionais do Direito Penal, nem tampouco, de modo que venha a estremecer o equilíbrio entre os poderes da república. Enquanto ainda não se tem um desfecho definitivo, tendo em vista o pleito do Senado para sustar os efeitos da decisão, a tramitação do Projeto de Lei nº 515/2017, que também trata dos crimes tipificados pelo Judiciário e a repercussão do julgado perante os juízes de primeiro grau, é importante atentar-se para o papel institucional dos atores que compõem esta trama.
6. REFERÊNCIAS
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