5. Do erro de fato e do erro de direito
Consiste o erro de fato em se ter uma falsa ideia sobre o exato sentido das coisas, crendo-se uma realidade que não é verdadeira. Consiste o erro de direito em enganar-se a respeito da existência da regra jurídica própria ao ato praticado (ignorância da regra) ou interpretá-la de forma equivocada, para aplicá-la ao fato concreto ou ao ato a ser cumprido. O erro de fato ou o erro de direito não gera obrigações (SILVA, 1973, p. 612).
No entanto, nem sempre é fácil distinguir o erro de fato do erro de direito. É que, algumas vezes, o próprio relato do evento ocorrido no mundo fenomênico, que é o antecedente da norma individual e concreta, é construído com a linguagem das provas e com conceito definido por uma norma jurídica.
No que concerne ao lançamento, para Carvalho (2008a, p. 450) "o erro de fato é um problema intranormativo, um desajuste interno na estrutura do enunciado, por insuficiência de dados lingüísticos (sic) informativos ou pelo uso indevido de construções de linguagem que fazem as vezes de prova. Esse vício na composição semântica do enunciado pode macular tanto a oração do fato jurídico tributário como aquela do conseqüente (sic) em que se estabelece o vínculo relacional. Ambas residem no interior da norma e denunciam a presença do erro de fato."
Há erro de fato quando, na norma individual e concreta de exigência da multa, ocorre um desajuste entre o enunciado da infração ou da relação obrigacional, e o enunciado, daquela ou desta, que estaria autorizado pelas provas juntadas ao auto de infração.
"Já o erro de direito é também um problema de ordem semântica mas envolvendo enunciados de normas jurídicas diferentes, caracterizando-se como um descompasso de feição externa, internormativa" (CARVALHO, 2008a, p. 451). Há erro de direito no lançamento quando um ou mais elementos do fato jurídico tributário, no antecedente, ou um ou mais elementos da relação obrigacional, no consequente, ou ambos estão em desalinho com os enunciados da hipótese ou da consequência da regra-matriz do tributo (CARVALHO, 2008a, p. 451).
Também há erro de direito quando o enunciado da infração ou da relação obrigacional, da norma individual e concreta de exigência da multa, está em desalinho com o enunciado da hipótese ou da consequência da norma geral e abstrata sancionadora aplicável à infração que foi inferida.
6. Do erro de acusação fiscal
O erro de acusação fiscal pode ser "de fato" ou "de direito". O "erro de fato" ocorre quando a infração relatada no antecedente da norma individual e concreta de exigência da multa não é a que melhor se ajusta às provas juntadas ao auto de infração. O sujeito passivo tem bons argumentos para contestar a ocorrência da infração. O "erro de direito" ocorre quando a infração relatada, embora ajustada às provas, não se subsome à hipótese da norma geral e abstrata sancionadora que foi aplicada ou que deveria ser aplicada a outro relato de infração, mais específico, que também pode ser inferido pelo exame das provas.
O erro de acusação fiscal implica improcedência do auto de infração e, por conseguinte, cancelamento do crédito tributário por ele exigido, que inclui imposto, multa por sonegação e juros moratórios. Isso porque:
a) "motivo" do ato é o "fato" que autoriza ou exige a prática do ato; motivo é "pressuposto" para a elaboração do "ato-norma";
b) no auto de infração: o "fato" é a "infração", que é reconstruída (mentalmente) por meio das provas; o "ato-norma" é a norma individual e concreta de exigência de multa e a de lançamento do imposto;
c) "motivação" é a descrição do motivo do ato administrativo, parte integrante da "estrutura" do "ato-norma"; no ato-norma de exigência de multa, motivação é o relato da infração praticada; a motivação deve observar a "Teoria dos Motivos Determinantes", do Direito Administrativo, segundo a qual "uma vez enunciados pelo agente os motivos em que se calçou, ainda quando a lei não haja expressamente imposto a obrigação de enunciá-los, o ato só será válido se estes realmente ocorreram e o justificavam" (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 408).
Ante o exposto, "o erro de fato vicia, no plano fáctico da constituição do ato-norma, o motivo do ato; por outro lado, o erro de direito vicia a motivação, elemento da estrutura normativa da norma individual e concreta do lançamento tributário" (SANTI, 2001, p. 267). Assim, erro de fato ou de direito na acusação fiscal, torna "invalidável" o ato-norma de exigência de multa e, portanto, o ato-norma de lançamento do tributo, já que a exigência do tributo é resultado de infração que não está demonstrada ou cujo relato não se subsome à infração descrita na hipótese de norma geral e abstrata sancionadora aplicável ao caso.
6.1. Acusação fiscal com erro de fato
É extensa a relação de deveres instrumentais cometidos ao contribuinte do ICMS desde a ocorrência do evento tributado até a declaração à Fazenda Pública do valor do imposto devido no período que inclui aquele evento. É necessário: emitir Nota Fiscal para cada operação de saída de mercadorias ou de produtos acabados; escriturar a Nota no livro Registro de Saídas; escriturar as Notas Fiscais de aquisição de mercadorias ou matérias-primas no livro Registro de Entradas; calcular as somas, no mês, de débitos e de créditos do imposto daquele e deste livro; transportá-las para o livro Registro de Apuração do ICMS; realizar o confronto entre essas somas no mês, para apurar o valor do imposto a recolher (saldo positivo) ou o valor do saldo credor do imposto (saldo negativo) a ser transportado para o mês seguinte; declarar esses valores em Guia de Informação e Apuração do ICMS (GIA); ou ainda, relativamente a eventos tributados específicos, recolher diretamente o imposto por guia de recolhimentos especiais. Muitos, portanto, podem ser os tipos de infração praticados pelo contribuinte ao exercer todas essas atividades.
Quando a infração praticada pelo sujeito passivo for simples e o agente fiscal descrevê-la sem circunstanciá-la além do necessário, dificilmente a descrição se afastará de conduta que pode ser inferida pelo exame das provas. Não haverá erro de fato. A descrição da infração certamente se enquadrará com justeza a infração descrita na hipótese de norma geral e abstrata sancionadora da lei do ICMS, não havendo, portanto, erro de direito.
Algumas vezes, porém, as provas juntadas ao auto de infração permitem construir mais de uma descrição para a infração. Deve-se evidentemente escolher a que o contribuinte terá mais dificuldade em impugnar.
Exemplos:
a) por meio de documentos oficiosos (controle paralelo) apreendidos no estabelecimento do contribuinte, infere-se ter havido sonegação do imposto em um período, mas os documentos não permitem identificar os dados de cada operação de saída realizada sem emissão de documento fiscal:
o contribuinte deve ser acusado de “ter deixado de pagar o ICMS de R$ ..., no período de ... a ..., apurado por meio de levantamento fiscal” – com multa capitulada na al. "a" do inc. I do art. 85 da Lei 6.374/1989;
não é correta a acusação de “ter deixado de emitir documentos fiscais em operações de saída tributadas” – com multa capitulada na al. "a" do inc. IV do art. 85 da lei –, pois ela exigiria o conhecimento de dados essenciais de todas as operações de saída sem emissão de documento fiscal;
b) caminhão de propriedade do remetente foi abordado pela fiscalização, transportando mercadorias desacompanhadas de documento fiscal:
o contribuinte deve ser acusado de “ter remetido e transportado mercadorias desacompanhadas de documentação fiscal, apreendidas pelo Auto de Apreensão de Bens n° ...” – com multa capitulada na al. "a" do inc. III do art. 85 da Lei 6.374/1989;
não é correta a acusação de “ter deixado de emitir documento fiscal” – com multa capitulada na al. "a" do inc. IV do art. 85 da lei;
esta infração, anterior à constatada, pode não ter ocorrido – o motorista pode ter esquecido de pegar Nota Fiscal já emitida ou pode ter recebido por engano Nota Fiscal de mercadorias adquiridas por outro cliente e que foram transportadas por outro veículo;
c) ao examinar o livro Registro de Entradas do contribuinte, constatou-se a escrituração de créditos do ICMS de documentos considerados inidôneos; não há prova de que as mercadorias não entraram no estabelecimento:
o contribuinte deve ser acusado de "ter se creditado de valores de ICMS no total de R$ ..., no período de ... a ..., decorrentes de entradas de mercadorias no estabelecimento, acompanhadas de documentos que não atendem às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36 da Lei 6.374/1989" – com multa capitulada na primeira parte da al. "c" do inc. II do art. 85 da Lei 6.374/1989;
não é correta a acusação de "ter se creditado indevidamente de valores de ICMS no total de R$ ..., no período de ... a ..., decorrentes de escrituração de documentos que não atendem às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36 da Lei 6.374/1989 e que não correspondem a entradas de mercadorias no estabelecimento" – com multa hoje capitulada na segunda parte da al. "c" do mesmo inciso[13] –, pois deveria ter sido provado que as mercadorias não entraram no estabelecimento.[14]
6.2. Acusação fiscal com erro de direito
Em alguns casos, os documentos juntados para comprovar a infração permitem ao agente fiscal construir duas ou mais descrições para a infração, que se subsomem a infrações descritas nas hipóteses de duas ou mais normas gerais e abstratas sancionadoras. No entanto, só uma norma deve ser aplicada.
Exemplos:
a) contribuinte remeteu mercadoria para demonstração dentro do território do Estado, com suspensão do lançamento do imposto, mas ela não retornou ao estabelecimento de origem dentro de 60 (sessenta) dias nem foi realizada a transmissão de sua propriedade:
o contribuinte deve ser acusado de “ter deixado de pagar ICMS de R$ ..., por meio de guia especial, em remessa de mercadoria para demonstração dentro do território do Estado, que não retornou ao estabelecimento de origem dentro de 60 (sessenta) dias nem foi realizada a transmissão de sua propriedade” – com multa capitulada na al. “e” do inc. I do art. 85 da Lei 6.374/1989;
não são corretas as acusações de:
I) “ter deixado de emitir, no 61º (sexagésimo primeiro) dia contado da remessa da mercadoria, a Nota Fiscal prevista nos §§ 1º e 2º do art. 320 do RICMS/2000”[15] – com multa capitulada na al. "a" do inc. IV do art. 85 da Lei 6.374/1989 –, pois nela deve constar o número, a data e o valor da guia de recolhimentos especiais (item 3 do § 2°), o que mostra que o dever de recolher o ICMS precede o de emitir a Nota Fiscal;
II) “ter deixado de pagar ICMS de R$ ...., por haver emitido e escriturado documento fiscal de operação tributada, como se fosse isenta” – com multa capitulada na primeira parte da al. "c" do inc. I do art. 85 da lei –, pois, a remessa, isenta, só se torna tributada quando a mercadoria não retorna ao estabelecimento de origem em 60 dias ou, nesse prazo, não é transmitida a sua propriedade;
b) contribuinte creditou-se de determinado valor no Campo “Outros Créditos” de GIA; notificado a apresentar documentos que fundamentassem o valor creditado, o contribuinte não atendeu à notificação:
o contribuinte deve ser acusado de “ter se creditado indevidamente de R$ ... de imposto, lançado no Campo ‘Outros Créditos’ da GIA de .../... (mês/ano)” – com multa capitulada na al. “j” do inc. II do art. 85 da Lei 6.374/1989, que cuida de hipótese não prevista nas alíneas anteriores;
embora pareça mais ajustada ao caso, não é correta a acusação de “ter se creditado de R$ ... de imposto, lançado no Campo ‘Outros Créditos’ da GIA de .../... (mês/ano), não fundado em documento e sem a correspondente entrada da mercadoria no estabelecimento ou sem a aquisição de sua propriedade ou sem o recebimento de prestação de serviço” – com multa capitulada na al. “b” do inc. II do art. 85 da Lei 6.374/1989;
é que a base de cálculo da multa prevista na alínea “b” é o valor escriturado como o da operação ou da prestação, mas o fisco não obteve documento com a escrituração desse valor; haverá erro de direito na base de cálculo da multa se o agente fiscal, mal interpretando a norma, fixá-la como o quociente entre o valor do imposto creditado e 0,18; no entanto, a base de cálculo da multa prevista na al. “j” é o valor do crédito indevidamente escriturado;
c) contribuinte emitiu Notas Fiscais de vendas de mercadorias em determinado período para destinatário de outro Estado – com alíquota interestadual de 7% (sete por cento) –; transporte por conta do remetente das mercadorias; há declaração de preposto da empresa de destino das mercadorias, de que esta não celebrou negócio jurídico com o remetente; notificado, o remetente não apresentou outros documentos que comprovassem a realização das operações:
o contribuinte deve ser acusado de "ter deixado de pagar o ICMS de R$ ..., no período de ... a ..., por ter emitido Notas Fiscais que indicam outro Estado como destino das mercadorias, sem que estas tenham saído do território paulista" – com multa capitulada na al. “g” do inc. I do art. 85 da Lei 6.374/1989;[16]
não são corretas as acusações de:
I) "ter emitido Notas Fiscais, no período de ... a ..., que consignam declaração falsa quanto ao estabelecimento de destino das mercadorias" – com multa capitulada na primeira parte da al. “b” do inc. IV do art. 85 da lei;[17]
II) "ter remetido e transportado, no período de ... a ..., mercadorias desacompanhadas de documentação fiscal" (a teor do disposto na primeira parte do inc. III do art. 184 do RICMS/2000)[18] – com multa capitulada na al. “a” do inc. III do art. 85 da Lei 6.374/1989;[19]
nas duas primeiras acusações exige-se o total dos valores de imposto que correspondem à diferença entre a alíquota interna e a interestadual;
a segunda e a terceira acusações não serão verdadeiras se falsa for a declaração do preposto;
a norma geral e abstrata sancionadora aplicada na terceira acusação é geralmente utilizada em situações de flagrante, que não é o caso;
a existência da "presunção legal relativa" do § 3º do art. 23 da Lei 6.374/1989 é decisiva para a escolha da primeira acusação,[20] que se subsome perfeitamente à infração descrita na hipótese da norma geral e abstrata sancionadora, especialmente elaborada para os casos da espécie;
a presunção legal relativa inverte o ônus da prova: é o contribuinte quem deve provar que as mercadorias foram de fato remetidas e transportadas para o destinatário indicado nas Notas Fiscais;
diante do “conflito aparente de normas”, a norma geral e abstrata sancionadora aplicada à primeira acusação, mais específica, prefere às aplicadas à segunda e à terceira acusações ("critério da especialidade").