SUMÁRIO:I – Introdução; II – Da Mutação do Critério de Definição de Competência da Justiça do Trabalho; III – Do Inciso IX do Artigo 114 da Constituição e a «Adequação Legítima» da Atribuição de Competência Penal para a Justiça do Trabalho; IV - Do Inciso I, ‘d’ do Art. 108 da Constituição e a Competência Hierárquica; V – Da Limitação da Competência Penal da Justiça do Trabalho; VI – À Guisa de Conclusão.
I – Introdução
A Emenda Constitucional n. 45, promulgada em 8 de dezembro de 2.004, mas só publicada no Diário Oficial da União em 31 de dezembro do mesmo ano, no que tange à Justiça do Trabalho (JT) teve o objetivo manifesto de abandonar a raiz clássica do Direito do Trabalho, isto é, a relação de trabalho juridicamente subordinada.
Antes da Emenda, a competência da JT estava quase que toda ela concentrada no ora revogado caput do artigo 114; com a promulgação, o caput desdobrou-se em nove incisos. Este estudo sustenta a tese de que este desdobramento, levado a efeito pela referida Emenda Constitucional, conferiu competência penal à Justiça do Trabalho.
O cerne da fundamentação da presente proposição consiste na articulação dos incisos I, IV e IX do novel artigo 114 da Constituição da República, que deságua em duas conseqüências: (i) mutação do critério subjetivo para o objetivo, no que toca à definição de competência trabalhista e (ii) atribuição da competência penal à Justiça do Trabalho, além daquela simplesmente hierárquica, tanto pela natureza da infração, nos termos do art. 69, III do Código de Processo Penal, como pela relação de adequação legítima entre o processo penal-trabalhista e a Justiça do Trabalho.
Ademais disso, sustenta-se que a competência penal da Justiça do Trabalho poderá ser ampliada, pela via ordinária, sem necessidade de emenda constitucional.
II – Da Mutação do Critério de Definição de Competência da Justiça do Trabalho
A anterior ordem constitucional firmava a competência trabalhista, em relação aos litígios decorrentes do contrato de trabalho, em função da pessoa - trabalhador e empregador - não em razão da natureza da matéria. Não é demais ressaltar, que a esse critério, deve-se aditar, naturalmente, o requisito de que a controvérsia decorresse da relação de emprego.
Em outras palavras, a competência da Justiça do Trabalho não decorria apenas de um litígio que tivesse origem na relação de trabalho subordinado, mas que, além disso, fosse qualificado pela condição jurídica das pessoas envolvidas: empregador e trabalhador. Nesse sentido, a competência material da Justiça do Trabalho – ou seja, aquela que decorresse da relação de emprego sem envolver necessariamente o trabalhador e o empregador - somente se aperfeiçoava mediante lei específica.
O Excelso Supremo Tribunal Federal, em sua composição plenária, já havia assentado entendimento dessa ordem [01], fixando que a "determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de Direito Civil, mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo é o fundamento do pedido, tenha sido feita em razão da relação trabalhista, inserindo-se no contrato de trabalho" [02].
Nessa acepção o termo relação de emprego preferia ao de contrato de trabalho, pois o último denotava uma equivocada e conservadora visão contratualista, no sentido de que a competência da Justiça do Trabalho estaria jungida estritamente a cláusulas contratuais, perdendo, assim, toda a abrangência do fenômeno jurídico atinente à relação de emprego.
A visão contratualista mais avançada da relação de emprego capta tal fenômeno, não por um enfoque de conteúdo, porquanto não tem o contrato de trabalho conteúdo específico, mas sim pelo aspecto de sua realização operacional [03].
É importante ressaltar que não impressiona a objeção no sentido de que o critério da pessoa, para se firmar a competência trabalhista, iria importar, se levado às últimas conseqüências, na assunção de competência penal pela Justiça do Trabalho, por exemplo, nos casos de crimes de ação penal privada envolvendo o trabalhador e o empregador.
A Justiça do Trabalho não tinha competência penal porquanto o Ministério Público é o dominus litis. A demanda penal não ocorre entre o réu e a vítima. Mesmo na ação penal privada, consoante o magistério de ADA PELLEGRINI GRINOVER [04], o ofendido, na queixa-crime (ação privada) não é o titular do ius puniendi, mas apenas é extraordinariamente legitimado à ação. Trata-se, pois, de típica substituição processual penal, que, como tal, não altera a competência da lide [05].
Após a Emenda Constitucional n. 45/04 a situação ganhou contornos bem distintos. Com a elisão dos vocábulos ´´empregador´´ e ´´trabalhador´´ do art. 114 da Constituição, a competência da Justiça do Trabalho deixou de se guiar pelo aspecto subjetivo (sujeitos ou pessoas envolvidas na relação de emprego), para se orientar pelo aspecto meramente objetivo, qual seja, ações oriundas da relação de trabalho, sem qualquer referência à condição jurídica das pessoas envolvidas no litígio.
Assim, a ação penal oriunda da relação de trabalho, que processualmente se efetiva entre o Ministério Público e o réu, passou a ser da competência da Justiça do Trabalho, em decorrência da referida mutação do critério de atribuição.
Isso porque o critério objetivo, dessa forma, se comunica com a natureza da infração, que é uma das formas de fixação da competência, nos termos do artigo 69,III do Código de Processo Penal.
III – Do Inciso IX do Artigo 114 da Constituição e a «Adequação Legítima» da Atribuição de Competência Penal para a Justiça do Trabalho
O primeiro óbice que se apresenta à tese afirmada no tópico anterior – competência penal decorrente da assunção do critério objetivo – consiste na alegação de inexistência de atribuição manifesta de competência penal à Justiça do Trabalho.
Antes, contudo, de se examinar se existe ou não tal manifestação em nível constitucional, é importante verificar se a atribuição de competência penal depende de tal requisito de explicitação.
Consoante reconhece a doutrina, não existe qualquer essencialidade técnica nos critérios de definição de competência, que são definidos segundo a experiência prática secular [06], já que eles variam de país para país. [07] No ordenamento brasileiro, de uma maneira geral, o critério-mor é extremamente pragmático, com a consideração concreta de dados objetivos da causa.
De uma maneira geral tais dados são captados a partir da respectiva categoria jurídica, destacando-se, sobretudo, a natureza da relação jurídica que envolva a demanda (crime, ato ilícito civil, relação de emprego, etc.) [08].
A despeito de se tomar a categoria jurídica como critério definidor da competência, nem sempre ela é observada, e isso se passa por uma infinidade de razões de ordem pragmática ou política, à conveniência assistemática do legislador.
O que se percebe é que os intentos de sistematização dos critérios definidores da competência resultam inócuos. Todos os estudos a respeito ressaltam o caráter mais descritivo do que sistêmico da distribuição de competência entre os mais diversos ramos do Judiciário, distribuição essa que envolve até o Poder Legislativo.
Nessa ordem de idéias, embora a tradição tenha consagrado a visão de que a competência para a categoria jurídica «crime» deva vir explicitada na Constituição, para fins de atribuição de competência penal, não existe qualquer fundamento científico ou dogmático a amparar tal entendimento.
O que parece é que se confunde o princípio da reserva legal, que vigora em sede de Direito Penal material, para efeitos da condenação criminal, com a definição, própria do Direito Processual Penal, do ramo judiciário encarregado de proceder ao julgamento da lide.
Ícone da inexistência do critério da atribuição específica é a própria competência penal da Justiça Estadual, que não se encontra inserida de forma manifesta ou latente na Carta Constitucional. Não há objetar nem mesmo com o caráter residual da competência da Justiça Comum, pois se a competência penal dependesse de atribuição manifesta obviamente que seria um contra-senso afirmar que uma competência específica (penal) resultaria do mesmo critério de definição da competência genérica.
Além disso, a competência penal da Justiça Eleitoral – que é também um ramo Especial como a Justiça do Trabalho – não se encontra atribuída especificamente na Constituição, senão no Código Eleitoral. Como veremos nos tópicos que se seguem, a competência penal da Justiça Eleitoral, em sede constitucional, restringe-se ao habeas corpus de natureza hierárquica e funcional, previsto no art. 121. parágrado 4º, inciso V.
Por outro lado, ainda que a distribuição de competência não seja dotada de uma essencialidade técnica, isso não significa que ela não deva observar um critério mais racional de atribuição. A teoria processual desafia, naturalmente, um mínimo de racionalidade e adequação à realidade, sob pena de transformar-se em puro e desordenado arbítrio.
É nesse sentido, pois, que se entende a conceituação de competência perpetrada por CELSO NEVES, que abandona a tradicional ‘medida da jurisdição’, concebendo-a como a relação de «adequação legítima» entre o processo e o órgão judiciário, ou seja, uma noção concreta, pragmática, porém, racional de competência [09]. A idéia do processualista paulista é superar as conceituações quantitativas da competência – competência enquanto medida - para caminhar em direção a uma conceituação qualitativa.
A conceituação qualitativa, segundo CELSO NEVES, tem um aspecto subjetivo e outro objetivo. Do ponto de vista subjetivo, a competência é definida como atributo para o exercício da jurisdição, decorrente da investidura legítima. Do ponto de vista objetivo, que aqui nos interessa mais especificamente, como a relação necessária, de adequação legítima, entre o processo e o órgão jurisdicional [10].
Nessa perspectiva de consideração da competência penal enquanto relação de adequação legítima entre o processo e o órgão judiciário, a competência penal da Justiça do Trabalho decorre da própria necessidade de defragmentação judiciária do fenômeno trabalho.
Em tendo sido alçado à condição de verdadeiro fundamento da República, nos termos do inciso IV do artigo 1º da Carta Magna, o valor social trabalho [11] desafia tutela judiciária abrangente e concreta, no sentido bobbiano, de que a evolução dos direitos partiu da universalidade abstrata, para a atingir a fase de sua concreção. Para tanto, a proteção judiciária do valor social trabalho, para se tornar eficaz e concreta, há de se fazer de forma a evitar a fragmentação, que só enseja procedimentos que conspiram contra a integridade do cumprimento das normas de tutela do trabalho humano.
Daí que a adequação legítima corresponde, perfeitamente, ao critério de fixação da competência penal, atinente à natureza jurídica da infração, previsto pelo inciso III do art. 69 do Código de Processo Penal,
Em outras palavras, a Justiça que lida com a proteção do trabalho é que, sem dúvida, tem maior grau de adequação e legitimidade para a avaliar o teor ofensivo das condutas reprimidas pela ordem penal-trabalhista.
Por outro lado, nos parece decisivo ressaltar, novamente, que o inciso IX do artigo 114 da Constituição permite, perfeitamente, que norma ordinária processual confira competência penal à Justiça do Trabalho.
O precitado inciso III do art. 69 do Código de Processo Penal, desse modo, constitui, assim, a norma de integração da competência penal da Justiça do Trabalho, em interpretação conforme a Constituição – rectius: conforme a Constituição integrada pela Emenda n. 45/04.
Por qualquer lado, portanto, em que se analise a questão, é patente no ordenamento jurídico que há atribuição, manifesta ou latente, de competência penal à Justiça do Trabalho.
IV – Do Inciso IV do Art. 114 da Constituição e a Natureza Jurídica do Habeas corpus
Não obstante inexista fundamento jurídico a sustentar a tese de que a competência penal desafia atribuição específica na Constituição, e, além do mais, ainda que se desconsiderasse a atribuição de competência penal à justiça trabalhista pelo art. 69,III do CPP, em face do que dispõe o inciso IX da Constituição, cumpre ressaltar que a novel competência, prevista pelo inciso IV do mesmo art. 114, em articulação à competência objetiva prevista pelo inciso I do mesmo artigo, também se constitui como esse requisito da atribuição manifesta da competência penal à Justiça do Trabalho.
Muito se discute na doutrina a natureza jurídica do habeas corpus, todavia a polêmica centra-se na questão acerca do caráter recursal ou não dessa medida. Para o nosso estudo interessa outro aspecto, qual seja, a natureza penal ou não desse instituto.
Sem dúvida em sua origem no direito brasileiro, o habeas corpus tinha uma natureza que transcendia o caráter penal. Como não havia outro instrumento de defesa dos direitos e liberdades civis, com a eficácia liminar, a doutrina, pregada por Rui Barbosa, o admitia inclusive para hipóteses não-penais [12].
Com o advento do mandado de segurança, contudo, o caráter penal do habeas corpus ficou ressaltado, pois as questões meramente econômicas ou civis poderiam, a partir de então, ser tuteladas através dessa nova medida judicial criada.
Dessa forma, não obstante a possibilidade da impetração do habeas corpus contra prisão civil (depositário infiel ou em caso de alimentos), ou mesmo contra prisão administrativa, o Supremo Tribunal Federal acabou por consolidar o entendimento, através do Conflito de Competência n. 6979-1-DF, que a ação autônoma de impugnação, denominada habeas corpus, tem desenganada (sic) natureza penal:
"Sendo o habeas corpus, desenganadamente, uma ação de natureza penal, a competência para seu processamento e julgamento será sempre de juízo criminal, ainda que a questão material subjacente seja de natureza civil, como no caso de infidelidade de depositário, em execução de sentença. Não possuindo a Justiça do Trabalho, onde se verificou o incidente, competência criminal, impõe-se reconhecer a competência do Tribunal Regional Federal para o feito". (STF-CC6979-1-DF-Ac. TP, 15.08.91, Relator Min. Ilmar Galvão).
O entendimento consagrado pelo Supremo Tribunal não desconsiderou, portanto, que o habeas corpus possa ser impetrado contra prisão civil ou administrativa, mas que ainda nesses casos, o que define sua natureza penal é a sua própria teleologia – a proteção da liberdade de ir e vir - e não o ato impugnado. Consoante se pode observar dos votos dos Ministros no referido conflito de competência, e principalmente do voto do Ministro Celso de Mello, ainda que a o ato tenha origem extrapenal a natureza da medida é de ação penal.
No mesmo sentido o magistério de TOURINHO NETO, que entende que o habeas corpus tem natureza de ação cautelar, de ação constitutiva ou mesmo declaratória, mas sempre penal, in verbis:
"Trata-se de garantia individual destinada a fazer cessar o constrangimento ou a simples ameaça de constrição à liberdade de locomoção (...) se o habeas corpus não é recurso, no sentido técnico da expressão, qual seria sua natureza jurídica? Às vezes, como nas hipóteses dos incs. II, III, IV e V do art. 648
Também do ponto de vista da Constituição, e a despeito do contorno constitucional do habeas corpus como garante da liberdade fundamental de locomoção, ALEXANDRE DE MORAIS, conclui pelo caráter penal da medida:
"É uma ação constitucional de caráter penal e de procedimento especial, isenta de custas e que visa a evitar ou cessar violência ou ameaça na liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder." [14]
Dessa forma, não há falar nem mesmo, na hipótese do inciso IV do art. 114 da Constituição, em competência penal latente, já que ela é manifesta, no sentido consagrado pela Excelsa Corte.
É verdade que tal inciso, contudo, é passível de leitura restritiva, qual seja, a de que a competência penal da Justiça do Trabalho limitar-se-ia ao habeas corpus.
Todavia, tal entendimento incide e insiste no equívoco, já ressaltado, de que a competência penal desafia atribuição específica.
Nem se alegue, por outro lado, que o argumento hermenêutico de que não há na lei palavras inúteis, militaria a favor da tese restritiva, pois a tal argumento pode-se contrapor o chamado argumento "a maiori ad minus" [15], similar ao argumento "a fortiori", e que consiste em se partir de uma afirmação mais extensa para uma menos extensa. Em termos da argumentação concreta da presente hipótese, o argumento consiste em afirmar que se inclusive o habeas corpus, que constitui o maior bastião da liberdade, é da competência da Justiça do Trabalho, com mais razão há de ser a dos demais procedimento penais, que sequer alcançam alçada constitucional.
Ou seja, se todo o sistema de definição prévia e específica do direito penal decorre da finalidade de proteção do alto valor constitucional da liberdade física, não seria razoável que se estendesse, em caráter de exceção, a competência penal justamente para o instituto que decide de uma forma mais patente e manifesta a liberdade do ser humano, sonegando-a em procedimentos com menor grau de transcendência política.
É importante sublinhar que, ainda que o habeas corpus tenha como objetivo a liberdade e não a pena, a sua denegação tem notória, concreta, efetiva – e até desenganada, na dicção do STF – conotação penal.
Essa conotação penal, especificamente na seara trabalhista, é mais profunda que se pensa. Chama atenção, inclusive, a conceituação mais técnica do habeas corpus no Código de Processo Penal – art. 647 – em que se nota a visceral correspondência entre os núcleos do tipo penal-trabalhista e a conduta do agente que justifique a impetração da medida. O art. 647 do CPP dispõe como núcleo da ação sofrida pelo paciente a locução "sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal". Na maioria dos artigos que definem o crime contra organização do trabalho o núcleo do tipo é sempre ‘constranger sob violência ou grave ameaça’ alguém a alguma coisa.
Em grande parte dos delitos penais-trabalhistas, como por exemplo, o de aliciamento de trabalhadores, o de redução à condição análoga à de escravo (especialmente os incisos I e II do par. 1º do art. 149-A) e até o de atentado contra a liberdade de trabalho o bem jurídico tutelado é o mesmo do habeas corpus, ou seja, a prórpia liberdade física de locomoção.
Saliente-se, por fim, que a opção por um ou outro critério hermenêutico diz respeito muito mais à adequação político-social da decisão do que propriamente ao desate técnico-jurídico da controvérsia. A teoria da argumentação jurídica tem se revelado ineficaz quanto à hierarquização de critérios exegéticos. Como concluiu, há muito, CHAÏM PERELMAN, na lógica jurídica o decisivo é a definição da premissa, a qual não se processa por meio de um mecanismo lógico. E aqui, como se viu, a adequação político-social encontra-se, sem dúvida, na Justiça do Trabalho.