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A Emenda Constitucional nº 45/2004 e a competência penal da Justiça do Trabalho

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Agenda 29/12/2005 às 00:00

V - Do Inciso I, ‘d’ do Art. 108 da Constituição e a Competência Hierárquica

            A nosso sentir, outro indicativo da existência manifesta da competência penal oriunda do inciso IV do art. 114, acrescido pela Emenda Constitucional n. 45/04, decorre da análise do inciso I, ‘d’ do art. 108 do diploma constitucional, que trata da competência dos Tribunais Regionais Federais.

            O referido dispositivo constitucional dispõe expressamente sobre a competência funcional e hierárquica para julgar o habeas corpus contra ato de juiz federal.

            Nisso tal dispositivo se distingue muito do dispositivo contido no mencionado inciso IV do art. 114, por duas razões. Em primeiro lugar, porque sua inserção se faz sentir - ao contrário do inciso I, ‘d’ do artigo 108 da Constituição - na esfera de competência originária e ordinária de primeiro grau.

            Em segundo lugar porquanto, na formulação do inciso IV, in fine, do art. 114 há uma outra referência manifesta à competência penal: a conexão entre o habeas corpus e a matéria correlata, ainda que tal atribuição tenha se expressado de maneira extensiva e conectada [16] à competência para julgar o habeas corpus [17].

            Em não se tratando de competência funcional e hierárquica como está disposto no inciso do art. 108, I, ‘d’, não se vislumbra outra hipótese de matéria sujeita à competência do juiz do trabalho de primeiro grau, que não aquela decorrente dos atos de processamento da competência penal-trabalhista, pois na hipótese de prisão civil decorrente de ato do juiz, a competência é, de forma indiscutível, do Tribunal Regional do Trabalho.

            Poder-se-ia imaginar a hipótese do cabimento de habeas corpus diretamente ao juiz de primeiro grau, que não se tratasse de competência originária dos tribunais, para os casos, por exemplo, de prisão, pela autoridade policial, de sindicalista em meio a movimento paredista.

            Todavia, mesmo, nessa hipótese, não há como desconectar a competência penal da competência para o habeas corpus, pois o fato gerador da medida decorreria sempre de uma conduta passível de ser capitulada em algum tipo penal [18], já que o exercício de greve, por si só, não constitui crime, ao contrário, trata-se, de liberdade fundamental.

            Se se tratar de crime comum, ainda que decorrente da relação de trabalho, a competência para o habeas corpus é da Justiça Comum; se se tratar de crime penal-trabalhista [19], a competência é, sem dúvida do juiz do trabalho de primeiro grau. O sistema resultaria caótico se fosse dado ao juiz do trabalho apenas conceder ou negar uma ordem de soltura, intervindo na jurisdição e no processo virtual ou efetivamente instaurado perante outro juízo.

            Para marcar bem a nota distintiva da competência penal conexa ao habeas corpus, nos termos do inciso IV, seria produtivo distinguir-se uma modalidade de atribuição manifesta de competência: a competência penal manifesta, por extensão.

            Em síntese, a competência penal que decorre do inciso IV do artigo 114 da Constituição transcende a competência penal hierárquica para o habeas corpus e, além disso, se estende para os crimes que decorram da relação de trabalho.


VI – Da Limitação da Competência Penal da Justiça do Trabalho

            A tese da assunção da competência penal pela Justiça do Trabalho não significa, contudo, que todo delito criminal oriundo da relação de trabalho seja da sua competência. Não obstante a referida mutação do critério subjetivo para o critério objetivo, a competência da Justiça do Trabalho somente pode atender aos requisitos de adequação e legitimidade se se configurar, de forma restritiva, não como competência penal comum, mas como tutela jurídica processual de caráter especial, ou seja, como competência penal-trabalhista. Vejamos.

            Se levado a extremo a tese da competência objetiva, estaria inserida na esfera trabalhista, inclusive, a ação penal para julgamento de homicídio praticado pelo empregado contra o patrão, decorrente de desentendimento na execução dos meios de trabalho. Todavia, a prevalecer tal entendimento, a finalidade da especialização de tal ramo do Judiciário perderia sentido e adequação.

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            A saída para esse aparente dilema é a concepção de que a competência penal e não-penal (ou econômica) da Justiça do Trabalho se guia pela teleologia da descompensação jurídica da relação de poder e sujeição [20] que existe de fato na prestação de trabalho sob dependência e subordinação econômicas.

            Andou bem, pois, o constituinte ao estender a tutela judiciária especial (que estava restrita à subordinação ´´jurídica´´) a todo tipo de trabalho prestado sob subordinação econômica.

            A extensão dessa tutela judiciária ‘específica’ da relação de ´´poder e sujeição´´ deve ser não apenas abrangente, mas também eficaz, de forma a abarcar tanto o aspecto proativo, promocional e econômico, como também o aspecto punitivo.

            Nessa ordem de idéias, o suposto paradoxo de conjugar a perda do foco de tutela específica, com a necessidade de lidar com o fenômeno trabalho de uma forma mais abrangente se resolve na restrição da competência penal para as hipóteses em que o tipo penal, na sua delineação hipotética, dependa da relação de trabalho exercido sob dependência econômica.

            Assim, o homicídio ocorrido em razão de desentendimento quanto à execução dos meios de trabalho não se desloca para a competência trabalhista porque o tipo penal homicídio se aperfeiçoa, do ponto de vista hipotético e formal, independentemente da noção de relação jurídica de trabalho. A relação de trabalho pode apenas ou não, dependendo da hipótese, ser circunstância de aumento de pena, na forma do art. 226, II do Código Penal.

            Por outro lado, os crimes contra a organização do trabalho, previstos nos artigos 197 a 207 do Código Penal, bem assim, o crime de redução à condição análoga à de escravo (Código Penal art. 149) dependem, na qüididade de sua configuração formal, da noção jurídica da relação de trabalho subordinado. Ou seja, sem a noção de subordinação econômica do trabalho, tais crimes sequer se configurariam em tese.

            Mais tecnicamente, fundados na lição de DAMÁSIO DE JESUS, podermos afirmar que a competência penal da Justiça do Trabalho se limita aos casos em que a existência da relação de trabalho, sob subordinação econômica, constitui elementar do fato típico, e não mera circunstância do crime.

            DAMÁSIO DE JESUS explica que circunstâncias são "determinados dados que, agregados à figura típica fundamental, têm a função de aumentar ou diminuir as suas conseqüências, em regra, a pena" [21]. Já a elementar, ou elemento específico do tipo, desclassifica (atipicidade relativa) ou destipifica (atipicidade absoluta) o fato como crime.

            Assim, a relação necessária de adequação legítima somente se aperfeiçoa quando a relação de trabalho economicamente subordinado surge na própria elementar da tipificação penal, já que a mera circunstância é assessória, não justificando, assim, a necessidade de uma tutela judiciária especializada.

            O requisito da integração da elementar do tipo penal coincide, dessa maneira, o critério de atribuição de competência penal pela natureza da infração, nos termos do inciso III do art. 69 do Código de Processo Penal.

            O crime de assédio sexual, portanto, previsto pelo artigo 216-A do Código Penal, também é da competência da Justiça do Trabalho, já que a subordinação decorrente da relação de trabalho é elemento específico do tipo.

            Nesse sentido se delineia a distinção entre crime comum, circunstancialmente decorrente da relação de trabalho, e delito penal-trabalhista.

            É importante sublinhar, ainda, que o disposto no art. 109,VI da Constituição da República, que dispõe expressamente a competência da Justiça Federal para os crimes contra a organização do trabalho, não inibe as conclusões ora expendidas, senão vejamos.

            É que a despeito da literalidade de tal dispositivo, a jurisprudência, consolidada na Súmula n. 115 do extinto Tribunal Federal de Recursos, consagrou que a competência da Justiça Federal, para essas hipóteses, somente se configura quando se trate de lesão penal de transcendência coletiva e com repercussão geral na organização do trabalho, concebida como sistema.

            Em face disso, o que se sustenta aqui é que apenas os crimes contra a organização do trabalho, de aspecto individualizado, é que se deslocariam da competência da Justiça Estadual, para a Justiça do Trabalho.

            Em face, contudo, da própria ‘adequação legítima’ já acenada, é fundamental que o constituinte desloque ou revogue o mencionado inciso VI do art. 109 da Constituição, a fim de que o fenômeno trabalho tenha um tratamento penal holístico, inclusive do ponto de vista coletivo.

            Assinale-se, por fim, que em face do que dispõe o inciso IX do artigo 114 da Constituição da República, e das razões ora expendidas, especialmente a inexistência de um critério de atribuição penal específica na Constituição, simples lei ordinária poderá trasladar para a Justiça do Trabalho os crimes em que a relação de trabalho subordinado, a despeito de não de compor a elementar da figura típica, for conexa, acessória ou circunstancial ao elemento específico do tipo penal, tais como nos crimes contra a ordem previdenciária, previstos nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal.

            Evidentemente, os crimes, cuja competência esteja atribuída diretamente na Constituição, não poderão ser deslocados para a competência da Justiça do Trabalho pela via ordinária, ainda que tenham a relação de trabalho como integrantes da elementar penal, ou que mantenham com ela relação de conexão ou assessoriedade, em razão do sistema de hierarquia das normas jurídicas.


VII – À guisa de Conclusão

            De uma forma bem objetiva, sintetizamos as seguintes conclusões acerca da competência penal da Justiça do Trabalho:

            1.A Emenda Constitucional n. 45/04, ao suprimir as figuras do ‘empregador’ e ‘trabalhador’ da delineação da competência da Justiça do Trabalho, transmutou o critério de atribuição da competência trabalhista, da perspectiva subjetiva para a objetiva;

            2.Tal transmutação para o critério objetivo significou a assunção da competência penal pela Justiça do Trabalho, além daquela simplesmente hierárquica, tanto pela natureza da infração, nos termos do art. 69, III do Código de Processo Penal, como pela relação de adequação legítima entre o processo penal-trabalhista e a Justiça do Trabalho;

            3.Não existe fundamento dogmático ou doutrinário a sustentar a tese de que a competência penal desafia atribuição manifesta na Constituição, uma vez que a atribuição de competência pode se efetivar também de forma latente;

            4.Tendo o Supremo Tribunal Federal definido a natureza penal da ação de habeas corpus, o inciso IV do art. 114 da Constituição é indicativo de que à Justiça do Trabalho foi atribuída bem mais do que simples competência penal-trabalhista latente;

            5.A conexão entre o habeas corpus, de competência originária de 1º grau, e a matéria sujeita à jurisdição da Justiça do Trabalho, como consta do inciso IV do art. 114 da Constituição, é também indicativo de um plus em relação à mera atribuição penal latente; nesse caso, a atribuição de competência penal-trabalhista é manifesta, ainda que por extensão;

            6.Somente os crimes, cuja elementar do tipo penal forem compostos pela relação de trabalho economicamente subordinado, é que estão na esfera penal da Justiça do Trabalho; os crimes, cujas circunstâncias decorram da relação de trabalho, somente poderão se deslocar para a competência da Justiça do Trabalho com a específica autorização de lei ordinária; da mesma forma, os crimes contra a ordem previdenciária, nos termos do inciso IX do art. 114 da Constituição;

            7.Diante disso, se delineia a distinção entre crime comum, circunstancialmente decorrente da relação de emprego (v.g. art. 226,II do Código Penal) e delito penal-trabalhista (v.g. crimes contra organização do trabalho; redução à condição análoga à de escravo e assédio sexual).

            8.Os crimes contra a organização do trabalho, que, antes da E. C. 45/04, eram da competência da Justiça Estadual, nos termos da Súmula 115 do extinto TFR, se deslocam para a competência da Justiça do Trabalho; os crimes contra a organização do trabalho, concebida de uma forma coletiva e como sistema, continuam na órbita da Justiça Federal, em face do que dispõe o art. 109,VI da Constituição.


Notas

            01

STF CJ 6.959-6 (DF) - Ac. Sessão Plenária, 23.05.90 - Rel. Ministro Sepúlveda Pertence - Revista LTr. 59-10/1370.

            02

Idem, relator Min. Sepúveda Pertence.

            03

Cf. CORRADO, Renato, apud MARANHÃO, Délio Direito do Trabalho - Rio de Janeiro: FGV, 1966, p.29

            04

Cf. As Nulidades no Processo Penal - 5 ed. revista e ampliada - São Paulo: Malheiros Editores, 1996. p. 60.

            05

a exemplo das demandas em que o sindicato, como substituto processual, litigava contra o empregador sem alteração da competência trabalhista.

            06

Cf. CINTRA, A. C. A., GRINOVER, A. P., DINAMARCO, C. – Teoria geral do processo – 7ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990 p. 205.

            07

Cf. CINTRA (1990) ob. cit., pp. 205 e 207.

            08

Cf. CINTRA (1990) ob. cit., pp. 207/208

            09

Cf. CINTRA (1990) ob. cit., p 204.

            10

In Comentários ao Código de Processo Civil – vol. VII – 4ª ed – Rio de Janeiro: Forense, 1992, prolegômenos, p. XII

            11

na própria dicção da Constituição do precitado inciso IV do art. 1°.

            12

Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n. 17, p.189

            13

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal I - São Paulo: Saraiva, 1990. pp. 407/408.

            14

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999, p. 128.

            15

Cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio – Introdução ao estudo do direito – técnica, decisão dominação – São Paulo: Atlas, 1988, p. 312.

            16

Dispõe o inciso IV, in fine, do art. 114 da Constituição: "(...) habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição" (grifo nosso)

            17

Saliente-se, novamente, a grande identidade que existe entre o bem jurídico tutelado pelo habeas corpus e vários dos delitos penais-trabalhistas, consoante se viu no tópico anterior.

            18

Tanto da conduta dos grevistas, patrões, como até da autoridade policial.

            19

A distinção, para efeitos de competência, entre crime comum e crime da esfera penal-trabalhista será perpetrada no tópico seguinte.

            20

Como ressalta REGINAL MELHADO, o conceito de ´´subordinação jurídica´´ é o aparato jurídico utilizado pelo capital para legitimar e encobrir o seu poder privado de sujeitar o trabalho. Cf. in Poder e Sujeição – os fundamentos da relação de poder entre capital e trabalho e o conceito de subordinação jurídica – São Paulo: LTr, 2003, p. 216.

            21

in Direito Penal - 1º Vol. - Parte Geral - 13ª ed., revista/ampliada – São Paulo: Saraiva, 1988, p. 139
Sobre o autor
José Eduardo de Resende Chaves Júnior

doutor em Direitos Fundamentais pela Universidad Carlos III de Madrid, juiz do Trabalho em Belo Horizonte (MG), vice-presidente da Rede Latino-americana de Juízes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES JÚNIOR, José Eduardo Resende. A Emenda Constitucional nº 45/2004 e a competência penal da Justiça do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 909, 29 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7787. Acesso em: 24 nov. 2024.

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