UM PERIGO CONTRA A DEMOCRACIA
Rogério Tadeu Romano
Disse Alberto Kopittke que “o PL de Bolsonaro é praticamente uma cópia do Decreto Supremo 4078 editado há 5 dias atrás pela autoproclamada Presidente da Bolívia, Jeanine Ãnez, que garantiu a excludente de ilícitude para as Forças Armadas bolivianas reprimirem os movimentos que eclodiram no país. Outro sinal que passou quase que desapercebido foi que o Ministério da Defesa e não o da Justiça e Segurança Pública é que foi acionado para construir a minuta da proposta.
Na verdade, o PL de Jair Bolsonaro não tem nenhuma preocupação com o problema da criminalidade do país. Ele tem como alvo a possibilidade de um aumento das mobilizações de rua no país, como está ocorrendo em todo o continente, autorizando policiais e as forças armadas a fazerem uso da força letal contra pessoas envolvidas em manifestações sociais. O Projeto é uma preparação para a possibilidade do Brasil viver um processo de mobilização social e segue a sugestão dada pelo filho 03 do Presidente, Eduardo Bolsonaro, há poucos dias atrás, sobre a necessidade de se tomar medidas duras, como um novo AI5 no país.”
No livro “Political (in)justice: authoritarianism and the rule of law in Brazil, Chile, and Argentina” sobre os regimes autoritários na América do Sul, o Professor Anthony Pereira, do Kings College de Londres, destaca uma peculiaridade do autoritarismo militar nacional. Diferentemente dos demais países, a ditadura brasileira, embora constitucionalmente ilegal, sempre se preocupou em garantir a legalidade formal mesmo de seus atos mais autoritários, a começar pelos diversos Atos Institucionais, cuidadosamente escritos até milhares de Inquéritos Militares, que registravam todas as perseguições totalmente arbitrárias.
Não é novo o interesse do governo com relação a legislação com relação ao excludente de ilicitude, que, agora, viria nas chamadas operações de LGO.
O manifestante assim seria tratado não como tal, mas como “terrorista”, e como tal deveria ser tratado com violência.
Esse projeto é próprio de uma tradição envolvendo os regimes autoritários no Brasil, seja no Estado Novo, seja na ditadura militar.
No passado, no Brasil que vivia a ditadura militar, foi editado o Decreto-lei 314, de 13 de março de 1967, que, em seu artigo 25, introduziu na Lei de Segurança Nacional a incriminação de diversos atos isolados já previstos na lei penal comum, os quais passaram à categoria de crimes políticos quando praticados com o propósito de atentar contra a segurança do Estado. Assim, tinha-se um tipo penal, envolvendo: Praticar massacre, devastação, saque, roubo, seqüestro, incêndio ou depredação, atentado pessoal, ato de sabotagem ou terrorismo, impedir ou dificultar o funcionamento de serviços essenciais administrados pelo Estado ou mediante concessão ou autorização.
Posteriormente, a ditadura militar editou o Decreto-lei 510, de 20 de março de 1969, modificando aquele artigo 25, que passou a ter a seguinte redação: Praticar devastação, saque, assalto, roubo, sequestro, incêndio ou depredação, ato de sabotagem ou terrorismo, inclusive contra estabelecimento de crédito ou financiamento, massacre, atentado pessoal, impedir ou dificultar o funcionamento de serviços essenciais administrados pelo Estado ou mediante concessão ou autorização.
A Lei 6.620, de 1978, artigo 26, incriminou a conduta ao dispor: Devastar, saquear, assaltar, roubar, seqüestrar, incendiar, depredar ou praticar atentado pessoal, sabotagem ou terrorismo, com finalidades atentatórias à segurança nacional.
A par do fato de que assaltar não tem uma acepção técnica definida, ao contrário de roubar, furtar, a matéria revelava erros técnicos flagrantes já identificados naquele período da vida nacional.
Veio a Lei 7.170, de 1983, ainda na égide de uma doutrina de segurança nacional, legislar com relação a crimes praticados com o propósito de atingir o Estado e desestabilizar as instituições.
Mas, discute-se aqui a questão da competência para instruir e julgar crimes cometidos contra a segurança nacional.
O artigo 30 da Lei 7.170, de 1983, determina que compete à Justiça Militar julgar os crimes nele previstos.
Sobre tal já escrevi:
“O projeto do ministro Sérgio Moro desconhece os elementos componentes da legítima defesa; abre a porta à subjetividade, oferecendo licença para matar ao acrescentar parágrafo 2.º ao artigo 23, assim redigido: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
Quebra-se, com essa proposta, o eixo central da figura da legítima defesa, consistente em agir para fazer cessar uma agressão, com ânimo de se defender. Na hipótese apresentada por Moro, acolhe-se como legítima defesa uma agressão desnecessária, fazendo dessa excludente um escudo protetor da violência policial, tendo por desculpa o medo, a surpresa ou a violenta emoção, da parte daquele que é especificamente treinado para enfrentar riscos, aliás, naturais ao seu mister.
Mas é inaceitável que pretenda escusar o excesso doloso, consistente em prolongar desnecessariamente uma reação com intenção direta de agredir, sob a escusa de se agir com medo ou surpresa, como bem acentuou o professor Miguel Reale Jr.em artigo para o Estado de São Paulo, em 7 de setembro do corrente ano.
De outra parte, amplia-se especificadamente para os policiais a situação de legítima defesa, ao prever que o agente de segurança pública age licitamente em face de risco iminente de conflito armado, para prevenir injusta e iminente agressão. Redundante a figura: risco iminente de conflito armado para prevenir iminente agressão, como ainda acentuou o ex-ministro Miguel Reale Jr.
Assim a proposta apresenta uma conduta imoderada, desproporcional, objetivando justificar essa nova hipótese de legítima defesa, como excludente.
A tudo isso se somaria a legitimação do famigerado auto de resistência, tão condenado na doutrina.
Essa proposta que escapa aos limites da sensatez é a do excludente de ilicitude, figura jurídica que Bolsonaro defende que seja aplicada a atos de violência praticados por policiais. Em caso de morte, em vez de o policial responder a processos que averiguarão se ele cometeu homicídio sem justificativa plausível, estará sempre preestabelecido que agiu em legítima defesa.
Não haverá investigação. Existe projeto com este objetivo, de autoria do próprio Bolsonaro, em tramitação na Câmara.
Não se desconhecem os riscos que policiais correm ao enfrentar bandidos em terreno perigoso, e muitas vezes usando armas melhores e mais poderosas que as suas. É certo que não se pode considerar normal esta situação. Deve-se enfrentá-la.
Seria legitimar o que chamam de auto de resistência, afrontando-se os limites da razoabilidade empírica. Leve-se ainda em conta a imprescindível aplicação do princípio da reserva de lei.
Urge rechaçar um projeto naquilo que cria para os policiais uma legítima defesa que não existe para os demais, e pode albergar uma proteção excessiva aos policiais.”
Reconheça-se a gravidade do projeto e suas repercussões no âmbiot das relações sociais e em suas manifestações democráticas.