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Breves considerações acerca de controvérsias geradas pela Emenda Constitucional nº 45/2004 no tocante à competência trabalhista

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Agenda 17/01/2006 às 00:00

Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. Previdência privada; 3. Prestação de serviços médicos; 4. Representação comercial; 5. Empreitada; 6. Considerações Finais; 7. Referências bibliográficas.

Palavras-chave: competência trabalhista – EC nº 45/ 2004 - controvérsias – critérios – definição – previdência privada - empreitada – representação comercial – prestação de serviços médicos.


1. Considerações iniciais

            Na definição de Ives Gandra Martins Filho (2005, p. 33), a competência da Justiça do Trabalho passou por uma "evolução ampliativa", tendo em vista que a Constituição de 1967 limitava a sua competência às relações de emprego estável (empregados e empregadores), a Constituição de 1998 abrangeu os trabalhadores avulsos e os desempregados (trabalhadores e empregados) e a Emenda Constitucional nº 45/04 (EC 45/2004), ao mencionar ações oriundas da "relação de trabalho", incluiu todas as "lides conexas à relação de emprego".

            Constata-se que, de certa forma, a EC 45/04 operou uma quebra de paradigma, pois positivou o que a jurisprudência poderia ter feito por meio da interpretação da Constituição de 1988. Houve, portanto, uma mudança de foco.

            Anteriormente à EC 45/04, muitos conflitos decorrentes do trabalho, especialmente aqueles não inclusos no mercado formal, ficavam à margem de solução, pois a competência da Justiça do Trabalho acolhia apenas as relações de emprego. Certamente esta "demanda reprimida" virá à tona, haja vista que se revela consabido que existe no país um grande número de cidadãos laborando na informalidade.

            Nesse norte, o alargamento operado pela EC 45/2004 poderá constituir uma forma de atendimento aos anseios de um grande número de pessoas, as quais vivem completamente dissociadas das garantias individuais, relativas ao trabalho, asseguradas pela Constituição.

            No entanto, com o advento da EC 45/2004, dúvidas surgiram acerca da definição da competência em diversas situações fáticas que envolvem relação de trabalho, mormente naquelas em que não houve menção expressa nos incisos do novel art. 114 da Constituição Federal, ou seja, nas relações compreendidas nos incisos I e IX do referido preceito legal.

            De forma a abranger algumas das "relações de trabalho", abordar-se-á a natureza das relações jurídicas que envolvem previdência privada, contrato de empreitada, de representação comercial, bem como de prestação de serviços médicos, as quais suscitam dúvidas quanto à competência, em face da superveniência da recente Emenda Constitucional.

            Impera, prima facie, se proceda à definição do que seja relação de trabalho, assim como se apresenta indispensável à apreciação das controvérsias sob análise a observância do fato de o legislador, por imprecisão técnica, haver mencionado em dois incisos do art. 114 da Constituição Federal (CF), a expressão "relação de trabalho".

            Relação de trabalho "poderia ser definida como uma relação jurídica de natureza contratual entre trabalhador (sempre pessoa física) e aquele para quem presta serviço (empregador ou tomador dos serviços, pessoas físicas ou jurídicas), que tem como objeto o trabalho remunerado em suas mais diferentes formas"

            Nesse sentido, em havendo relação de trabalho, basta que uma pessoa física preste a outra pessoa (pessoa física ou pessoa jurídica) determinados serviços típicos de um contrato de atividade para que se compreenda na competência da Justiça Laboral. Registre-se que as relações de consumo, absolutamente, estão excluídas desta esfera de competência, porque têm por objeto não o trabalho, mas o produto ou o serviço, conforme se abordará ao diante.

            Há que se destacar, ainda, uma incongruência trazida pelo art. 114 da CF, o qual, no inciso I, confere competência ampla e irrestrita à Justiça do Trabalho, de pronto, e no inciso IX aparentemente lhe retira tal competência, condicionando-a a regulamentação legal infraconstitucional.

            Diante de tal incongruência, surgiram basicamente três correntes doutrinárias acerca da extensão do que se pode nominar "elastecimento" da competência trabalhista. A primeira - defendida maciçamente pelos Magistrados trabalhistas - confere sentido amplíssimo à expressão "relações de trabalho", de modo que toda e qualquer relação de trabalho seria apreciada pela Justiça Laboral. A segunda, restritiva, entende que a interpretação conjugada dos incisos I e IX não permite conferir às "relações de trabalho" sentido diferente de relação de emprego. A terceira, intermediária, intenta encontrar critérios para filtrar as ações de autônomos que devam, ou não, passar à competência do Judiciário trabalhista.

            Com relação ao inciso I, este consubstancia o princípio da competência específica ou competência material original, que abrange as ações oriundas imediata e diretamente da relação de trabalho. No que diz respeito ao inciso IX, - que externa o princípio da competência decorrente ou competência material derivada, pois trata das controvérsias que decorrem de maneira indireta e mediata da relação de trabalho - crê-se que a melhor exegese a lhe ser conferida consiste em interpretá-lo no sentido de que a Justiça do Trabalho será competente para dirimir ações envolvendo outras relações de trabalho não insertas no art. 114, na forma que a lei disciplinar.

            Tais relações estariam por surgir, em decorrência da evolução tecnológica, ou devido à interpretação dos demais incisos do art. 114 da CF. Outra função a que se propõe a norma (inciso IX) consiste em recepcionar textos legais que já atribuíam competência à Justiça do Trabalho.

            Nessa linha, deve-se ter em mira a distinção clara entre os incisos I e IX, a fim de que o avanço trazido pelo texto constitucional não seja desvirtuado por interpretações errôneas. Impende, para tanto, se proceda a uma exegese conforme o processo sistemático, comparando as normas referentes ao mesmo objeto, de modo a conciliar as palavras anteriores com as posteriores, a fim de esgrimir o sentido de cada uma.

            Nessa linha de pensamento, vêm a calhar as lições de Carlos Maximiliano, o qual leciona:

            Não se presumem antinomias ou incompatibilidades nos repositórios jurídicos; se alguém alega a existência de disposições inconciliáveis, deve demonstrá-la até a evidência. (...) Não raro, à primeira vista duas expressões se contradizem; porém, se examinadas atentamente (subtili animo) descobrimos o nexo culto que as concilia. É quase sempre possível integrar o sistema jurídico; descobrir a correlação entre as regras aparentemente antinômicas (MAXIMILIANO, 1981, p. 134).

            Representaria retrocesso interpretar a norma constitucional em comento como se fosse constituída de silogismos perfeitos. Isso porque o processo lógico de interpretação, segundo Carlos Maximiliano:

            Rígido sobremaneira, quando levado às últimas conseqüências, não se adapta aos objetivos da lei, consistente em regular a vida, multiforme, vária, complexa. Torna-se demasiado grosseiro a áspero para o trabalho fino, hábil, do intérprete, que é forçado a invocar o auxílio de outros elementos, da teleologia, dos fatores sociais. Degenera facilmente emverdadeira pedanteria escolástica. Oferece aparência de certeza, exterioridades ilusórias, deduções despretenciosas; porém, no fundo, o que se ganha em rigor de raciocínio se perde em afastamento da verdade, do Direito efetivo, do ideal jurídico (MAXIMILIANO, 1981, p. 124 e 125).

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            Em primeiro plano, impera se considerem ambos os incisos como inseridos em um todo. A aparente generalidade do inciso I é precisada pelo conteúdo do inciso IX. Na verdade, esse inciso (ROMITA, 2005, p. 140) "serve como cláusula geral para permitir a longevidade do sistema".

            De modo a balizar a coexistência dos incisos I e IX do art. 114 da Carta Magna, Neto obtempera:

            Enquanto o inciso I do art. 114 estabelece a competência para as relações de trabalho típicas, o inciso IX do mesmo dispositivo funciona como uma janela de abertura que permite ao legislador infraconstitucional incluir na competência trabalhista outras questões derivadas da relação de trabalho, como, por exemplo, alargar o rol do inciso VII para incluir não só os empregadores, mas também todo tomador de serviço nas ações relativas às penalidades administrativas, ou mesmo para incluir na esteira do inciso VIII, a execução das contribuições fiscais decorrentes das sentenças que proferir (NETO, 2005, p.241).

            Pode-se exemplificar como decorrente da relação de trabalho o litígio que ocorre em razão do cumprimento de normas coletivas de trabalho envolvendo o sindicato profissional e a empresa empregadora na cobrança das receitas sindicais, cuja competência é da Justiça do Trabalho (Lei 8.984/95). Neste caso, a gênese da contenda não constitui uma relação de trabalho, mas o pressuposto fático-jurídico que dá origem ao conflito é uma relação de trabalho, ou seja, o conflito decorre de uma relação de trabalho.

            Pode-se mencionar, ainda, outros exemplos de lides decorrentes da relação de trabalho, tais como o litígio entre o beneficiário do seguro desemprego e a entidade pública devedora dessa vantagem, o litígio entre o sindicato dos avulsos e o tomador dos serviços e entre o avulso e o Órgão Gestor de Mão-de-Obra ou sindicato.

            Sob esse prisma, o inciso IX se refere às demandas que (através de lei infraconstitucional), tenham como pressuposto fático-jurídico litígio que de forma indireta ou mediata se ligam à relação de trabalho, tendo por partes um terceiro e pelo menos um dos sujeitos da relação de trabalho.

            Aliás, se fosse intento do constituinte derivado determinar a competência da Justiça do Trabalho apenas para as relações de emprego, poderia ter preservado a redação do art. 114. Há que se convir, outrossim, que o legislador não discutiria por mais de uma década a matéria para apenas reproduzi-las com outras palavras.

            Isso se constata da análise do processo legislativo da Emenda Constitucional. Houve, na Comissão Especial do Projeto de Emenda Constitucional 96/1992 da Câmara dos Deputados, aprovação de parecer preservando o sistema originário do art. 114, entretanto, em Plenário, foi aprovado destaque para substituir a expressão "relação de emprego" por "relação de trabalho", sem que houvesse votação de qualquer emenda no Senado Federal.

            De outra banda, embora tenha havido grande elastecimento da competência, crê-se que não passarão à competência trabalhista todas as ações oriundas da relação de trabalho. Cumpre atender ao princípio da razoabilidade, pois não se pode deslembrar que se trata de Justiça especial. Do contrário, a se exagerar a ampliação da competência, muito pouco restaria à Justiça Comum.

            Observe-se que a expressão "relação de trabalho" não apresenta utilização linear no texto da EC 45/04, o que se infere do inciso VII, no qual nitidamente foi utilizada com o sentido de relação de emprego. Sob esse prisma, resta claro que sua definição e abrangência constitui tarefa da doutrina e da jurisprudência.

            Releva registrar, ainda, que como se trata de competência material, o critério que vem sendo preconizado pelo STF e pelo Superior Tribunal de Justiça é o da definição da causa petendi. Além disso, outra não pode ser a conclusão senão a de que o art. 114 constitui norma de eficácia plena e imediata

            Por certo que a remessa de feitos em andamento na Justiça Comum à Justiça do Trabalho representa exceção à regra da perpetuatio jurisdictionis, o que está autorizado pelo art. 87 Código de Processo Civil, uma vez que externa caso de competência absoluta. Diante disso, impera que a Justiça Comum decline de ofício dos feitos que envolvam relação de trabalho, evitando futuras ações rescisórias com base no art. 485, inciso II, CPC.


2. Previdência privada

            Não resta qualquer dúvida de que competente a Justiça do Trabalho para julgar as lides decorrentes de plano complementar de previdência privada, haja vista que se trata de litígio entre empregado e empregador, acerca de matéria estabelecida no contrato de trabalho.

            Nessa linha de entendimento se expressa majoritariamente a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Pacífico, de seu turno, o entendimento do Supremo Tribunal Federal quanto à matéria. Seguem esse norte, outrossim, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Superior do Trabalho.

            Há dois aspectos interessantes que devem ser abordados, entretanto. O primeiro diz respeito às demandas intentadas pela viúva ou viúvo, ou pelo dependente. Há quem sustente que nesses casos a competência é da Justiça Comum, porque não se trata de questão entre empregado e empregador. Ousa-se discordar de tal entendimento, contudo, tendo em vista que a questão sub judice decorre do contrato de trabalho.

            Faz-se imprescindível, nesse sentido, destacar a mudança no critério de definição de competência ocasionado pela EC 45/2004, o qual, dantes atribuído às pessoas, atualmente dá-se com relação à matéria.

            Sendo assim, em falecendo o empregado que demandava contra a empresa empregadora, a(o) viúva(o) ou o dependente são apenas substitutos processuais, segundo o art. 43 do Código de Processo Civil, motivo pelo qual, em razão de a matéria em discussão rezar sobre o contrato de trabalho, competente a Justiça do Trabalho para processar o feito.

            Registre-se que ainda que não se trate de substituição processual, mas de demanda intentada após a morte do empregado, mesmo assim competente a Justiça do Trabalho. Não se há de afastar sua competência em função da pessoa, pois além de haver legitimidade processual, o fato de a(o) viúva(o) ou dependente integrar um dos pólos da demanda não modifica a natureza da relação existente entre o empregado e o empregador, - objeto da causa de pedir - o qual tem origem em contrato de trabalho.

            Um segundo aspecto relevante diz respeito às discussões acerca da chamada "reserva de poupança", hipótese em que o pedido, relativo à discussão de valores de tal poupança, não pertine ao contrato de trabalho. Tampouco o pedido diz respeito a litígio que tenha relação direta ou imediata com a relação de trabalho.

            A lide, isto sim, tem como pressuposto fático-jurídico uma relação de trabalho, ou seja, o conflito decorre de uma relação de trabalho, inserindo-se no inciso IX do art. 114 da CF. Por conseguinte, não acena situação inserta na competência da Justiça do Trabalho, enquanto não houver lei infraconstitucional que a regule.

            Extrai-se essa conclusão, outrossim, da ausência de ligação entre a relação de trabalho e o saque ou discussão dos valores descontados do salário do empregado a fim de formar a reserva de poupança, depositada em entidade de previdência privada. Assim, como não se discute complementação de aposentadoria, mas mecanismo de adesão facultativa, sem relação com o contrato de trabalho, em não havendo lei que regule a situação, competente para feitos desta natureza a Justiça Comum.


3. Prestação de serviços médicos

            O contrato de prestação de serviços caracteriza-se pela ausência de subordinação e de continuidade. Refere-se aos trabalhadores autônomos, dentre os quais se inserem os profissionais liberais, desde, é claro, que estes não tenham relação de emprego.

            Nessa senda, a prestação de serviço que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial, reger-se-á de acordo com o Código Civil, segundo o art. 593 desse diploma legal.

            A regra atual prevê que todas as matérias que envolvam relação de trabalho são objetos da competência material da Justiça do Trabalho. Uma das principais dificuldades para a fixação da competência, contudo, parece ser a relação de consumo na qual há prestação de serviços.

            A fim de delimitar o alcance do inciso I, bem como de modo a tecer a diferença entre relação de trabalho e relação de consumo, a primeira premissa a ser observada consiste em definir a que caráter foi prestado o serviço, se a prestação de serviços foi ou não intuitu personae. Em um segundo momento, há que se analisar a prestação de serviço à luz do princípio da vulnerabilidade, servindo-se dos conceitos do direito do consumidor a fim de balizar o tratamento da competência segundo o critério da hipossuficiência.

            Otávio Amaral Calvet, ao caracterizar relação de trabalho, chega a duas conclusões. Primeira: o trabalhador deve ser pessoa natural. Entre duas pessoas jurídicas há relação meramente civil, pois acaso contratada uma empresa prestadora de serviços, deverá ela contratar um trabalhador. Segunda: na relação de trabalho há o tomador do serviço, que aufere a energia de trabalho do trabalhador com o fim de incrementar sua produção ou melhorar suas atividades junto ao usuário final. O tomador dos serviços encontra-se entre o trabalhador e o usuário final. Numa relação de trabalho, portanto, nunca poderá figurar como tomador do serviço o usuário final, este mero consumidor, segundo se depreende da definição de consumidor do art. 2º do CDC.

            A título de exemplo, segundo as conclusões do articulista, cita-se um paciente que consulta os serviços de um médico em uma clínica. Em relação ao paciente, há relação de consumo com a clínica, que o realiza por meio de um de seus trabalhadores. Entre o médico e a clínica ou hospital há relação de trabalho, ainda que aquele seja autônomo ou eventual.

            Se o paciente (consumidor) buscar diretamente um médico, profissional liberal autônomo, haverá relação de consumo, já que não ocorre relação de trabalho entre o trabalhador e o usuário final, consumidor. Desta feita, não se inserem na competência da Justiça do Trabalho, por exemplo, a relação entre paciente e médico.

            Há quem diga que a relação gerada pela prestação de serviço é de trabalho, em qualquer situação, porque compará-la a mercadoria constituiria forma de degradar a pessoa humana. Não se trata disso, todavia. Impera observar tão-somente a natureza da relação jurídica existente entre o profissional e o cliente. Mostra-se inegável que o cliente é consumidor. Aliás, o §2º do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor distingue serviço de relação de trabalho.

            Nesse passo, a lide entre o prestador de serviço e o consumidor tem por objeto a defesa do cidadão enquanto consumidor de um serviço, desimportando o trabalho em si. O credor do trabalho não objetiva dispor da energia de trabalho do prestador, mas sim, tem por finalidade usufruir do serviço, do produto pronto.

            Discorda-se, em parte, entretanto, da primeira conclusão erigida pelo articulista retro mencionado, isso porque se deve analisar o caso concreto à luz do princípio da vulnerabilidade, segundo a teoria finalista do conceito de consumidor esposada pela festejada doutrinadora Cláudia Lima Marques.

            Releva consignar que os conceitos trazidos à baila dizem respeito ao direito do consumidor. Aplicável, todavia, à base dos fundamentos definidores da relação de trabalho, pois de gênese semelhante.

            De acordo com a mencionada teoria, a definição de consumidor constitui o fator de sustentação da tutela especial conferida aos consumidores, a qual existe exclusivamente em virtude do fato de o consumidor ser a parte vulnerável nas relações contratuais. Assim como ocorre com a definição de consumidor, do mesmo modo, cumpre balizar quem necessita da tutela especial conferida pelo direito do trabalho.

            Reveste-se de relevância, nesse cenário, destacar o que se pode nominar de "pessoas jurídicas vulneráveis". Nesse sentido, oportuna a lição da autora alhures citada:

            Mas existe desequilíbrio em um contrato firmado entre dois profissionais? Como regra geral, presume-se que não há desequilíbrio, ou que não é tão grave a ponto de merecer uma tutela especial, não concedida pelo direito civil e pelo direito comercial. Esta presunção está presente, igualmente na lei alemã. Mas, como observamos, por vezes o profissional é um pequeno comerciante, dono de bar, mercearia, que não pode impor suas relações contratuais para o fornecedor de bebidas, ou que não compreende perfeitamente bem as remissões feitas a outras leis no texto do contrato, ou que, mesmo sendo um advogado, assina o contrato abusivo do único fornecedor legal de computadores, pois confia que nada ocorrerá de errado. Nestes três casos, pode haver uma exceção à regra geral, o profissional pode também ser "vulnerável", ser "hipossuficiente" para se proteger do desequilíbrio contratual imposto. (MARQUES, 1999, p.147).

            Dessa maneira, o inciso I do art. 114, ao referir "relações de trabalho", as quais pressupõem pessoa física, em se tratando de trabalhador autônomo, deve ser interpretado com acuidade. Como exceção, sempre que uma pessoa jurídica, diante de uma relação de trabalho (qualidade objetiva), apresentar vulnerabilidade (qualidade subjetiva) - o que se afere segundo o prudente arbítrio do juiz – deverá ter seu conflito apreciado pela Justiça do Trabalho.

            Extrai-se essa conclusão exatamente da finalidade das normas trabalhistas, as quais se propõem à proteção do hipossuficiente, eminentemente quando o prestador de serviço dependa economicamente do tomador (critério da dependência econômica).

            Quanto às microempresas prestadoras de serviços, verbi gratia, grande parte delas são constituídas de típicos trabalhadores revestidos de pessoa jurídica – especialmente por questões tributárias – motivo pelo qual não se mostra razoável sejam consideradas em pé de igualdade contratual em relação às típicas figuras empresárias, pessoa jurídica de grande porte ou em condições fáticas, jurídicas ou econômicas mais avantajadas. Nessa mesma linha de raciocínio devem ser interpretadas as relações entre médico e clínica.

            Dito isso, faz-se mister observar que em muitos casos configura-se relação de trabalho, ainda que prestado o serviço por pessoa jurídica, especialmente quanto aos empresários individuais, às microempresas, paraempreasas e aos trabalhadores parassubordinados (v.g., o médico de família).

            Há que se considerar a vulnerabilidade nesses casos, por exemplo, pelo fato de o serviço consistir a única fonte de sobrevivência do prestador, pelo fato de a "sede" da empresa ser a própria residência do prestador, bem como pelo fato de o prestador de serviço não ter autorização ou não ter condições de laborar ou de contratar com outrem. Tais fatores podem ser perquiridos na audiência conciliatória do art. 331 do Código de Processo Civil e, na própria audiência, o Juiz da Justiça Comum, em percebendo a vulnerabilidade, pode e deve declinar da competência para a Justiça do Trabalho.

            Assim, se o caráter definidor da existência de relação de trabalho consiste em que os serviços sejam prestados intuitu personae, em havendo este caráter, competente será a Justiça do Trabalho. Ademais, cabe aplicar o princípio da proteção a quem requer proteção, ao vulnerável; do contrário, estará desvirtuada a gênese da Justiça do Trabalho.

            A justificativa, portanto, para que não se considere relação de trabalho a prestação de serviços por pessoa jurídica ou por prestador autônomo que o faça mediante trabalho alheio é de que ausente nesses casos o caráter intuitu personae da prestação de serviços.

            Importa consignar a distinção entre prestação de serviço de acordo com o Código de Defesa do Consumidor e segundo a definição de um contrato de atividade.

            Oportuno, nessa senda, o comentário de Júlio Bernardo do Carmo (2005, p. 51):

            Neste contexto, além dos trabalhadores subordinados, a Justiça do Trabalho passa a ostentar competência para julgar as ações movidas por trabalhadores autônomos, eventuais, avulsos, parassubordinados e afins, sendo que no que pertine aos profissionais liberais só não ostenta competência para julgar os litígios oriundos de uma relação de consumo, desde que a lide envolva relação jurídica que ostente em um de seus pólos o fabricante de determinados produtos ou o fornecedor de determinados serviços à comunidade em geral e no outro pólo o destinatário direto da relação consumerista (CARMO, 2005, p.51).

            O Código de Defesa do Consumidor conceitua serviço, no §2º do art. 3º, como qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

            Diante do conceito de serviço, percebe-se que a Lei 8.078/90 diferencia relação de trabalho de relação de consumo. Além disso, resta claro que o conceito de relação de consumo é unitário, ou seja, abarca prestação de serviço e venda de produtos. Seria ilógico concluir que as relações de consumo incidentes sobre a venda de produtos seriam de competência da Justiça Comum, ao passo que aquelas relações de consumo envolvendo prestação de serviços seriam da alçada da Justiça do Trabalho.

            Desse modo, o médico prestador de serviços, seja individualmente, ou associado a outros profissionais, em relação ao seu paciente, inclui-se em uma relação de consumo, o que leva à conclusão de que tal litígio deverá ser dirimido na Justiça Comum. De outro lado, o médico que trabalha uma clínica médica ou hospital, em relação à clínica ou hospital, insere-se em uma relação de trabalho ou de emprego. Nesse caso, portanto, competente para dirimir o conflito a Justiça do Trabalho.

            No primeiro caso, configurada relação de consumo, quaisquer litígios decorrentes da prestação de serviços serão dirimidos pela Justiça Comum, com a devida aplicação do Código de Defesa do Consumidor, seja ação para cobrança de honorários impagos, pelo prestador, seja ação de indenização por danos decorrentes da prestação, pelo tomador.

            De outra banda, aquele que atua em uma relação de consumo, não como fabricante ou fornecedor de serviços, tampouco como destinatário final, mas como trabalhador contratado pelo fabricante ou fornecedor para tornar possível a relação de consumo, como prestador de serviços, terá julgado eventual litígio pela Justiça do Trabalho.

Sobre a autora
Priscilla Mielke Wickert

bacharelanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WICKERT, Priscilla Mielke. Breves considerações acerca de controvérsias geradas pela Emenda Constitucional nº 45/2004 no tocante à competência trabalhista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 928, 17 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7840. Acesso em: 5 nov. 2024.

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