5. CASOS QUE CHOCARAM O BRASIL
A PM da RMRJ protagonizou massacres que ficaram na memória social como marcas da violência policial contra a população negra e pobre, principalmente para quem mora no estado do Rio de Janeiro.
Dessa forma, nesse capítulo procuro fazer uma síntese de seis dos casos mais conhecidos envolvendo a PMRJ: chacina da Candelária, chacina de Vigário Geral, massacre no Complexo da Maré, execução da Juíza Patrícia Acioli, Amarildo e a execução da vereadora Marielle Franco.
Trata-se de um mero resumo ante a complexidade de cada caso e, havendo interesse em maiores detalhes, é necessário estudos aprofundados.
5.1. CANDELÁRIA
A noite de 23 de julho de 1993 causou indignação no mundo todo. A chacina da Candelária mostrou à comunidade internacional um Rio de Janeiro brutal e dividido, diferente daquele visto nos cartões postais.
Ao todo, cerca de 40 crianças e 02 jovens foram atingidos por disparos de armas de grosso calibre, enquanto dormiam nas proximidades da Igreja da Candelária, localizada no Centro da capital fluminense. Seis crianças e os dois jovens morreram naquela noite. Policiais lotados no 5º Batalhão da Polícia Militar foram acusados pelo crime, posteriormente, verificou-se que no local havia um esquadrão da morte que também traficava drogas.
“Segundo investigações, a chacina se dera em represália a uma ação de meninos de rua na véspera. Quando um de seus companheiros foi detido por policiais, os menores reagiram quebrando uma das janelas da viatura com uma pedra” (BARBOSA, 2016).
Figura 10: Foto de criança morta na chacina da Candelária.
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Fonte: Diário do Rio.
Três policiais foram condenados, todos em liberdade atualmente.
5.2. VIGÁRIO GERAL
Menos de um mês após a chacina da Candelária, a RMRJ foi abalada por um novo massacre. Em agosto de 1993 quatro PMs foram atraídos para uma emboscada, sendo todos executados a tiros a mando de Flávio Negrão, comandante do tráfico de drogas na favela.
A resposta veio logo. Cerca de quarenta homens invadiram a comunidade de Vigário Geral espalhando o terror, resultando na morte de vinte e duas pessoas, todas sem antecedente criminal.
De carro e a pé, os policiais bandidos chegaram divididos em três grupos. Invadiram a favela, “cortaram linhas de telefone e apagaram lâmpadas a tiros. Ao saírem a favela, duas horas depois, deixaram um rastro de sangue inocente: 21 pessoas fuziladas” (BARBOSA, 2016).
Houve uma revolta da comunidade, com os moradores tomando as ruas e danificando viaturas policiais. O transporte público foi paralisado e os acessos à favela foram bloqueados, impedindo a entrada do Instituto Médico Legal de entrar e retirar os corpos.
O episódio gerou provocou uma crise na PM, vários oficiais foram exonerados, inclusive o comandante geral na época, coronel César Pinto. Em nota oficial, o então governador, Leonel Brizola classificou o massacre como uma “inadmissível operação de vingança”. “Ao todo, 52 pessoas foram denunciadas: 47 policiais militares, três policiais civis e dois informantes” (BARBOSA, 2016).
A imagem a seguir mostra a dimensão da noite de terror vivida pelos moradores na Comunidade de Vigário Geral. Vinte e Um corpos espalhados e uma multidão observando, e, imaginando: “quem será o próximo”?
Figura 11: Corpos das 22 pessoas mortas em chacina dentro de Vigário Geral, em 29 de agosto de 1993
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Foto de Márcia Foletto/Agência O Globo.
Dez anos depois, somente cinco policiais foram condenados pelo crime. Desses, apenas dois cumpriram pena.
5.3. MASSACRE NO COMPLEXO DA MARÉ
Uma operação do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) na Comunidade Nova Holanda, no Complexo da Maré, resultou em dez mortes no dia 24 de junho de 2013.
Com a justificativa de que pessoas se aproveitaram da manifestação que ocorria na Avenida Brasil – o nome sempre tão simbólico – para fazer arrastão, policiais ocuparam a favela. Um sargento do BOPE morreu e a vingança da polícia começou, atravessou a madrugada e boa parte da terça-feira (BRUM, 2013).
Conforme relato dos moradores, a PM entrou na favela atirando sem alvo fixo, ou seja, para todos os lados, assustando os moradores que voltavam do trabalho.
Infelizmente, não foi a primeira vez que isso ocorreu. No dia 11 de junho de 2010 policiais do 22º BPM invadiram a comunidade provocando igualmente um show de horrores, atirando sem direção, matando sete pessoas, entre elas uma criança autista com problemas de audição.
A favela Nova Holanda, no bairro de Bonsucesso, é uma das 22 do complexo de favelas da Maré, assim como o Parque União, onde a PM também ataca com frequência. Em abril de 2009, moradores chegaram a pedir a Ordem dos Advogados do Brasil que instalasse um posto fixo no Parque União para coibir os abusos policiais, mas até hoje, a favela continua entregue à violência permanente da polícia (GRANJA, 2010).
Não se tem notícia, até o momento, da punição dos responsáveis pelas duas chacinas.
5.4. AMARILDO, O PÉ DE BOI
No dia 14 de julho de 2013, Amarildo Dias de Souza, morador da comunidade da Rocinha, desapareceu após ser levado por PMs à UPP local.
O desaparecimento de Amarildo foi registrado por sua esposa após dois dias, e se transformou em um símbolo de luta contra a violência policial em todo o mundo.
Ressalte-se que Amarildo recebeu o apelido de “Boi”, “pé de boi”, pois era conhecido por seus vizinhos como um homem forte e bastante trabalhador. Cumpre informar que há relatos de moradores de que na favela da Rocinha há um traficante conhecido como “Boi”, mas que não se trata da mesma pessoa (SILVA, 2014, p. 11).
Após uma tentativa de criminalização da vítima, principalmente por boa parte da imprensa que tentava justificar o desaparecimento de Amarildo, vinte e cinco PMs foram denunciados pelo MP.
Em fevereiro de 2016, o Conselho de Sentença condenou treze PMs pelo crime de tortura seguida de morte. Conforme a sentença, após ter sido levado para interrogatório na UPP, Amarildo foi torturado com descargas elétricas, saco plástico na cabeça e afogamento, o que teria sido a causa de sua morte.
Foi determinado o pagamento de uma indenização no valor de três milhões e meio de reais para à família, contudo, até o momento não se tem notícia que a família conseguiu receber o pagamento.
Em 13 de março de deste ano, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro absolveu e concedeu liberdade a 4 dos 12 PMs que tinham sido condenados pelo tribunal do júri.
5.5. EXECUÇÃO DA JUÍZA PATRÍCIA ACIOLI
Na noite de 11 de agosto de 2011 Patrícia Aciolli se tornou mais uma vítima da parte corrupta da PMRJ. Segundo o Ministério Público, um cabo e um tenente da PM dispararam vinte e um tiros contra a magistrada.
Dentre os assassinos, estavam um grupo de PMs que horas antes teve a prisão decretada pela juíza. Ela mandou prender um grupo de PMs, que eram acusados de extorsão e homicídios. Os assassinos estavam entre este grupo que teve a prisão decretada.
O assassinato de Patrícia era mais que simples vingança pela ordem de prisão. Ela morreu por desafiar quatro organizações criminosas do Rio de Janeiro: o jogo ilegal, o tráfico de drogas, as milícias e a banda corrupta da PM. Infiltradas no poder público, essas quatro máfias criaram um poder paralelo (CORRÊA e BRITO, 2018, p. 16).
Por vários anos a juíza, conhecida por combater a corrupção e os grupos de extermínio da PM, foi protegida por escolta composta por seis PMs de sua confiança, contudo, semanas antes do crime, o comandante do 7º BPM, localizado em São Gonçalo, revogou a proteção, deixando o caminho livre para os bandidos.
Patrícia Aciolli tinha 47 anos, três filhos, e fama de linha dura quando se tratava de PMs corruptos. Nos 19 anos de carreira como juíza, ela passou pela Vara da Infância e Juventude antes de assumir a 4ª Vara Criminal de São Gonçalo, onde permaneceu por longo período até ser executada.
Os envolvidos na execução foram presos e condenados, tanto aqueles que puxaram o gatilho e aqueles que de alguma forma participaram do planejamento. O mandante do crime, o tenente coronel Cláudio L. S. de Oliveira, que comandava o 7º MPM, que, inclusive, cancelou a escolta da magistrada, recebeu a pena mais alta do grupo, pouco mais de 36 anos de prisão, contudo, “continua recebendo R$ 21.420,01 por mês” (CRUZ, 2019).
Se por um lado esse episódio mostra que a justiça cumpriu o seu dever de investigar e punir os criminosos, por outro lado denota a discrepância para com vários outros casos em que vítimas de policiais é o homem comum, pobre e favelado, como nos casos das chacinas ocorridas na Comunidade Nova Holanda, localizada no Complexo da Maré nos anos de 2009, 2010 e 2013.
5.6. EXECUÇÃO DA VEREADORA MARIELLE FRANCO
Em 14 de março de 2018, por volta das 21h40, a vereadora Marielle Franco encerrou um encontro com mulheres negras na Casa das Pretas, no bairro da Lapa,
lembrando uma frase da autora norte-americana de origem caribenha Audre Lorde: “Eu não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”. Repetiu o trecho em inglês para aplausos das amigas (CORRÊA e BRITO, 2018, p. 30).
Um veículo suspeito estacionou em frente ao local da reunião e lá ficou até Marielle sair. Diferentemente do que fazia costumeiramente, a vereadora se acomodou no banco traseiro do carro. Junto a sua assessora ela escolheria as melhores fotos do encontro a pouco encerrado. Seu veículo foi seguido por três quilômetros até um trecho sem monitoramento, quando foi fechado. Marielle levou quatro tiros na cabeça. Seu motorista, Anderson Gomes, também foi morto com três disparos. Sua assessora foi a única sobrevivente.
As investigações apontaram para o possível envolvimento da milícia no caso. Em março deste ano, a Polícia Civil prendeu o ex-policial militar Élcio Vieira Queiroz e o policial reformado Ronnie Lessa.
Em 12 de março de 2019, a Polícia Civil prendeu dois ex-militares acusados de terem assassinado a vereadora e seu motorista. De acordo com a Polícia, o PM reformado Ronnie Lessa atirou contra a vereadora e o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz dirigia o carro que perseguia Marielle.
Os investigadores afirmaram que os criminosos utilizaram munições desviadas da Polícia Federal e atiraram com uma submetralhadora calibre nove milímetros, de uso restrito às forças de segurança. Ainda,
de acordo com as investigações da Delegacia de Homicídios (DH) da capital, em março deste ano, dois dias depois das prisões de Ronnie e do ex-policial Élcio de Queiroz, outro acusado de matar Marielle e Anderson, o grupo teria jogado as armas no mar. Sob o comando de Elaine Lessa, conforme a polícia, o armamento foi descartado próximo às ilhas Tijucas, na altura da Barra da Tijuca (AGÊNCIA BRASIL, 2019).
Na manhã de 03 de outubro de 2019, quatro pessoas ligadas a Ronnie Lessa foram presas, “em um desdobramento das investigações dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, ocorridos em março do ano passado” (AGÊNCIA BRASIL, 2019). Foram presos Elaine Lessa, mulher de Ronnie, seu cunhado Bruno Figueiredo, Márcio Montavano e Josinaldo Freitas.
Até o encerramento deste trabalho as investigações não haviam se encerrado e os acusados permaneciam presos.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados encontrados através dos estudos realizados, que serviram de base para o presente trabalho, indicam que a violência policial está ligada à violência estrutural que se manifesta ativamente nas desigualdades sociais e raciais históricas da sociedade brasileira, sendo a Região Metropolitana do Rio de Janeiro espaço bastante representativa dessa violência em todas as suas dimensões.
A ausência de um efetivo controle nas operações da Polícia Militar da RMRJ contribui para que a violência institucional se transforme em agressão direta, gerando a insegurança que favorece a intolerância e se exterioriza nos abusos cometidos por policiais militares.
É possível concluir que a ação violenta, abusiva ou ilegal da Polícia Militar da RMRJ é uma herança da forma repressiva de ação desta instituição durante o Regime Militar, que ganhou poderes à margem da legalidade. Ademais, isso fez também surgir uma relação entre grupos paramilitares (milícias) e a PM, sendo que o modelo de terror que se implantou durante o Regime Militar não foi desarticulado com a redemocratização do país, sendo, inclusive, aprimorado.
Nesse contexto, verifica-se que, ainda hoje, a população da RMRJ vive uma interação entre um estado policial, um estado punitivo e um estado de exceção, onde tudo é permitido. Contudo, não é regra geral, há diversas formas de agir da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, quando considerada sua região de atuação. Nas áreas habitadas pela classe média e alta a Polícia Militar não age com a mesma violência e tende a seguir mais as leis e o respeito aos direitos civis dos cidadãos.
O Estado do Rio de Janeiro está falido e, conforme constatado nas pesquisas realizadas, a sociedade sofre com a falta de investimentos em diversas áreas. Direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988, como saúde, segurança e educação de qualidade, não fazem parte da vida dessa população, em sua maioria pobre e negra.
Considerando que a cidadania tem como pressuposto a garantia e a efetividade de direitos civis, políticos e sociais, implicando uma efetiva prestação de serviços por parte do Poder Público, conclui-se, portanto, que a população pobre, periférica e favelada, em sua maioria negra, é uma espécie de cidadão de terceira ou quarta classe, tendo em vista os inúmeros direitos que lhe são negados.
Enquanto parte dessa sociedade, o policial militar também sofre as consequências dessa trágica realidade, sendo então vítima da nossa trágica violência, assim como do descaso do Estado para com a suas condições de trabalho e para com a sua própria vida. Logo, uma sociedade que está debilitada não encontra condições de formar um corpo coercitivo a parte de suas deficiências. Dessa forma, verifica-se também que o policial militar colabora, ativa e passivamente, com a violência institucional. Ativamente quando insiste em agir fora dos princípios constitucionais de respeito aos direitos humanos e constitucionais. Passivamente enquanto vítima da falência do Estado do Rio de Janeiro como um todo.
Acredita-se que enquanto a classe média e alta do Estado do Rio de Janeiro, ou seja, aqueles que podem se fazer ouvir, não enxergar os favelados e periféricos como iguais em direitos, não se indignarem e reagirem contra as mazelas, injustiças, exclusão e violência que atingem os mais pobres, estes continuarão à margem da cidadania, e à mercê de um Estado e de uma Polícia Militar que desconsidera os direitos fundamentais dessa população.
Considera-se que esse tema esteja longe de ser esgotado, uma vez que temos cada vez mais a recorrência de casos de policiais envolvidos em atos criminosos, principalmente contra a população negra, favelada e periférica. É necessário que estudos e análises sejam feitos de modo mais aprofundado, a fim de que se possamos buscar alternativas para minimizar ou evitar que casos assim aconteçam. Os Policiais Militares são os responsáveis pela proteção e segurança da sociedade e, portanto, não podem e nem devem estar inseridos na criminalidade, fazendo parte de uma questão tão grave que está longe de se resolver: a negação dos direitos de cidadania à população pobre, favelada e, em sua maioria negra, inclusive o direito à vida.