Primeiro dia de aula. Eram todos calouros do Curso de Direito.
Logo depois da chamada, o jovem inquieto, antes mesmo que eu me apresentasse como professor, lança a pergunta:
- "Professor, que é Justiça?".
No semblante do jovem, percebi que havia mais do que uma dúvida intelectual. Ele me colocava uma questão existencial. Questões existenciais angustiam a alma humana, não esperam o momento de se expressarem, não respeitam o plano de aula que o professor tivesse preparado.
- "Você me propõe uma questão polêmica".
Foi como iniciei a resposta, enquanto tomava fôlego.
Segundo o ensino clássico, a Justiça explicita-se de três maneiras fundamentais: como Justiça comutativa; como Justiça distributiva; como Justiça geral, social ou legal.
A Justiça comutativa exige que cada pessoa dê a outra o que lhe é devido. A Justiça distributiva manda que a sociedade dê a cada particular o bem que lhe é devido. A Justiça geral, social ou legal determina que as partes da sociedade dêem à comunidade o bem que lhe é devido.
"Entendi tudo, Professor. Mas queria um conceito mais concreto. É o primeiro dia de aula. Estamos perplexos diante do Curso que vamos fazer".
Lembrei-me, então, de Jesus Cristo, que ensinava por meio de parábolas. E lhes contei um caso.
Era uma vez uma viúva cujo marido foi morto, num acidente de trânsito, por um veículo do Estado. O senhor atravessava a rua, atentamente, aproveitando o sinal verde. O carro, em velocidade, não respeitou o sinal. Chocou-se com o homem e arremessou seu corpo a metros de distância.
A viúva, que tinha seis filhos menores, ingressou com uma ação contra o Estado do Espírito Santo, por meio da Defensoria Pública.
Ação muito bem instruída e conduzida, a viúva obteve do juiz sentença favorável, que condenou o Estado a reparar o dano, pensionando a viúva e também os filhos, estes enquanto durasse a menoridade.
Os processos, na Justiça, não andam rapidamente. Enquanto aguardava o desfecho do caso, a viúva, com seus filhos, estava passando duras privações.
Mesmo dada a sentença pelo juiz, a mesma não seria executada de pronto. Manda a lei que, nas sentenças contra o Estado, o juiz submeta, obrigatoriamente, o caso ao duplo grau de jurisdição.
Dizendo em outras palavras: quando o juiz decide uma questão contra o Estado é obrigado a mandar o processo para o Tribunal, a fim de que a matéria seja reexaminada.
No Tribunal o processo demora mais algum tempo, até que os autos retornem ao juiz. E, às vezes, demora tempo demais.
Era Procurador do Estado, no processo, o Doutor Hélio Charpinel Goulart, hoje falecido.
Vendo a situação da viúva e das crianças, bem próxima da miséria, o Procurador requereu ao juiz que, naquele caso, deixasse de mandar o processo para o Tribunal e ordenasse a execução imediata do julgado. Estando ciente de que descumpria a literalidade da lei, o Procurador requereu ao juiz que oficiasse ao Procurador Geral do Estado, dando conta ao mesmo do procedimento dele, Hélio Goulart. Se o Procurador Geral entendesse que seria merecido aplicar-lhe uma punição, o Procurador disse que aceitaria, de bom grado, a punição. Preferia ser punido do que afrontar sua consciência e retardar ainda mais a prestação de Justiça, de que a viúva e os filhos menores eram credores. Disse mais o Procurador. Há um valor em jogo, que é mais importante do que cumprir cegamente o princípio do recurso obrigatório, nas sentenças contra o Estado. O Estado, mais que o particular, tem o dever de ser justo, de socorrer o fraco, de prevenir a indigência. Esse dever do Estado é uma imposição da Constituição Federal, na forma do que preceitua o inciso III do artigo 1º.
Atendendo o que pediu o Procurador, o juiz submeteu o procedimento dele, Procurador, ao crivo dos superiores hierárquicos. E o próprio juiz assumiu também a responsabilidade por aquela quebra da "literalidade legal" pois lhe cabia também determinar a subida dos autos para a instância superior.
Na Procuradoria Geral do Estado, o caso gerou polêmica. Mas afinal decidiu o Procurador Geral que a hipótese em exame era uma exceção. O Procurador não merecia punição. Pugnara pela Justiça e Justiça deveria ser feita à viúva e aos órfãos.
Depois de contar a história, dirigi-me ao jovem aluno que, a esta altura, já estava de cabelo arrepiado e de olhos estatelados:
"Isto, meu caro aluno, é Justiça. É a Justiça do caso concreto. É a realização da Justiça distributiva, a que me referi, antes de contar esta história".
E o menino se deu por satisfeito, nada mais me sendo perguntado.