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A dilapidação dos ídolos:

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Agenda 02/04/2020 às 16:18

Reflexões sobre uma categoria especial de crimes culturalmente motivados, à luz da corrente de pensamento pós-positivista, tendo por plano de fundo o caso do fenômeno da destruição de templos afro-religiosos no Rio de Janeiro.

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

As Ciências Humanas constituem-se em domínio do conhecimento dotado de profundo significado para a compreensão da trajetória de diversas civilizações, forjadas desde a Antiguidade, sob as mais variadas óticas. A maioria das ciências que compõem este gênero são fruto do século XIX, com o movimento intelectual do cientificismo e positivismo, inicialmente filosófico mas que atravessou diversas províncias do conhecimento, tais como a Ciência da História, a Sociologia, a Antropologia e a Ciência Jurídica, esta última da qual o Direito Penal é derivado. Sua importância a partir do século XIX auxiliou decisivamente na compreensão dos diversos fenômenos socioculturais tanto sob a perspectiva microcósmica quanto sob a ótica macrocósmica.

Especialmente quanto à Ciência da História, a escola de pensamento positivista a influenciou sobremaneira ao longo do século XIX, com os estudos iniciais do historiador Leopold von Ranke (1795-1886) e sua concepção de “História Científica”, dissociada de juízos de valor próprios do pesquisador, almejando a conquista de uma narrativa histórica universal, desde as mais priscas eras até a atualidade, com base na sequência de eventos que marcaram cada período histórico. Esta suposta neutralidade científica seria uma relevante marca da escola historiográfica desenvolvida por Leopold von Ranke, cujas controvérsias já iniciariam no século XIX com a escola marxista de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), diante de seu conceito de materialismo histórico dialético.

Contudo, em especial a partir do século XX, a tese da neutralidade científica, uma das bases do positivismo enquanto categoria epistemológica, tornou-se objeto de profunda controvérsia entre os teóricos do período, especialmente a partir da publicação do periódico francês Annales d'Histoire Économique et Sociale, que se tornou importante plataforma de formulação de novas teses e escolas historiográficas, como a chamada “Escola dos Annales” e a “Nova História”, associada ao movimento de História Culural a partir de meados do século XX, em especial após a década de 1970. Nestes novos aportes teóricos para a Ciência da História, o ideário de separação do sujeito cognoscente do objeto cognoscível, uma das bases teóricas do positivismo, é profundamente questionado, ensejando uma aproximação desses dois elementos de abordagem epistemológica, estimulando-se assim a exposição dos juízos de valor que fundamentam e conduzem a experiência do intérprete no processo hermenêutico característico da elaboração de trabalhos acadêmicos e científicos.

Nesse sentido, o positivismo, em seus múltiplos reflexos no âmbito das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (positivismo histórico, positivismo sociológico, positivismo filosófico, positivismo jurídico, dentre outros), foi objeto de transformação e releitura a partir do século XX, desdobrando-se em uma escola de pensamento que passou a ser chamada de pós-positivista. O pós-positivismo, ao ensejar a reaproximação do sujeito de conhecimento do objeto de conhecimento, permite a exposição dos juízos de valor que influenciam o estudioso na elaboração de sua pesquisa, deitando raízes especialmente na Ciência da História, na Sociologia, Antropologia e Etnologia – importantes áreas de conhecimento das Humanidades –, bem como na Ciência Jurídica enquanto espécie do gênero das Ciências Sociais Aplicadas.

O tema deste estudo versa sobre categoria delitiva do Direito Penal contemporâneo, a saber, a dos crimes culturalmente motivados. Semelhante classificação tem sua hermenêutica e aplicação melhor empregadas com a contribuição de outras áreas do conhecimento, dotadas de repertório teórico mais ligado às Ciências Humanas, mormente a Sociologia, Antropologia e Etnologia, sem olvidar da pesquisa sobre a origem dos fenômenos socioculturais típica da Historiografia. A interdisciplinaridade desenvolvida neste estudo é característica encontrada nas abordagens pós-positivistas, como meio para se promover a aproximação entre sujeito cognoscente e objeto cognoscível, cuja pluralidade fenomênica o afasta de óticas unívocas e ligadas a apenas uma área do conhecimento. Cada vez mais as diversas espécies de ciências que compõem o gênero de Humanidades são pesquisadas conjuntamente, sem perda de sua originalidade e autonomia características.

A temática deste estudo será contextualizada com a insidiosa prática de destruição de templos afro-religiosos no Brasil, cujas expressões mais significativas são os da Umbanda e do Candomblé, o que se sustentará constituir do ponto de vista da doutrina penalista como um crime culturalmente motivado, além de expressão do delito previsto no art. 208 do Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei Federal n. 2.848/1940 – CPB/1940), cujo preceito primário apresenta a seguinte disposição: “Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”. Segundo informações veiculadas por meio da imprensa jornalística, que serão apresentadas ao longo deste estudo, semelhante conduta vem sendo perpetrada por organizações criminosas ligadas ao narcotráfico e milícias privadas cujos chefes professam a fé cristã, em alguns casos ligada aos movimentos religiosos pentecostal ou neopentecostal.

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Os objetivos deste estudo são os de apresentar à comunidade acadêmica o conceito, âmbito de aplicação e hermenêutica dos crimes culturalmente motivados à luz da abordagem pós-positivista e interdisciplinar, considerando especialmente as contribuições da História, Sociologia, Antropologia e Etnologia na extensão da natureza delitiva do vilipêndio público de ato ou objeto de culto religioso nos templos afro-religiosos em regiões periféricas do limite municipal, apresentando como estudo de caso a perseguição empreendida nas favelas cariocas dominadas por organizações criminosas; e propor a aplicabilidade da prevenção geral positiva como função para as penas impostas a tal prática, visando ao recrudescimento da Lei Penal aos que demonstrem ostensivamente a incapacidade de compreensão da religião alheia e da liberdade de culto garantida na forma de direito fundamental previsto no art. 5º, VI, da Constituição do Brasil. A opressão a grupos vulneráveis e subalternos constitui-se em grave violação de direitos humanos, que não se coaduna com o Estado Democrático de Direito estabelecido no Brasil a partir de 1988 EC1.

A metodologia aplicável na elaboração do presente estudo é de natureza histórica, dedutiva e dialética, em torno do levantamento bibliográfico de obras referenciadas de Direito Penal, Criminologia, História, Sociologia e Antropologia, sob uma perspectiva interdisciplinar com pretensões transdisciplinares, dada a permanência de abordagens epistemologicamente unívocas especialmente na Ciência Jurídica, pelo que se sustenta a imperiosa necessidade do aporte teórico de outras províncias das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas para melhor compreensão de determinados fatos jurídicos – especialmente os delitos, atos ilícitos penais cuja relevância social ostenta-se diuturnamente no mundo fenomênico. Nesse sentido, o referencial teórico-metodológico utilizado deita raízes na História Cultural, reflexo do movimento dos Estudos Culturais (Cultural Studies) na Historiografia, especialmente nos estudos elaborados por Patricia Birman e Maria Cevasco; outrossim, no âmbito da Ciência Jurídica, optar-se-á pela segura referência de obras clássicas de Direito Penal, em especial as dos juristas Nelson Hungria, Cezar Roberto Bitencourt e Damásio de Jesus, considerando o anacronismo existente na previsão legal do crime de vilipêndio público de atos ou objetos de culto religioso, por ainda refletir a redação original de 1940 – cujo preceito secundário merece profundas críticas, como se verá adiante, mas que a doutrina se refere com a profundidade e exatidão adequadas para o presente estudo.


2. CRIMES CULTURALMENTE MOTIVADOS À LUZ DOS ESTUDOS CULTURAIS E DA ESCOLA DE PENSAMENTO PÓS-POSITIVISTA

O Direito Penal caracteriza-se como privilegiado ramo da Ciência Jurídica, dotado de profundo repertório teórico-doutrinário, considerando especialmente a historicidade de seu principal diploma, o CPB/1940. Um importante tema de pesquisa deste província do conhecimento jurídico envolve o conceito de infração penal, gênero composto pelo crime (também chamado de delito) e pela contravenção penal (também denominada “crime anão” pelo insigne Professor Nelson Hungria, autor do anteprojeto do Código Penal Brasileiro de 1940. A teoria do delito reside no contexto narrado, sendo objeto de profundos debates entre os juristas. Âmbito ainda mais restrito comporta o estudo da classificação doutrinária dos crimes, temática de interesse para expressiva parte dos penalistas, destacando-se para estudos mais aprofundados nesta temática a obra de Damásio de Jesus (Cf. JESUS, 2015).

Tradicional função do Direito Penal é a proteção de bens jurídicos relevantes para a sociedade, que não comportam resguardo integral e exclusivo de outras províncias da Ciência Jurídica, em apreço ao que a doutrina penalista designa de Princípio da Intervenção Mínima, do qual a subsidiariedade constitui-se como reflexo neste desiderato. Essa função protetiva de bens jurídicos individuais ou coletivos relevantes também pode ser compreendida enquanto reflexo da própria proteção dos direitos humanos, desenvolvida no âmbito da sociedade internacional especialmente a partir do término da II Grande Guerra (1939-1945). A tutela da dignidade humana, alçada a fundamento da República Federativa por meio do art. 1º, III, da Constituição do Brasil de 1988, vai ao encontro da contemporânea teoria funcionalista teleológica ou moderada do jurista alemão Claus Roxin, bem como ao modelo de intervenção mínima supramencionado e refinado na obra do também jurista germânico Winfried Hassemer (cf. BITENCOURT, 2019).

Tópico relevante no estudo da teoria do delito diz respeito ao elemento subjetivo do crime, que tradicionalmente é gênero composto das espécies dolo2 e especial fim de agir. Os crimes culturalmente motivados, nesse desiderato, constituem-se em categoria delitiva que se relaciona sobremaneira com a referida divisão metodológica do elemento subjetivo do crime no Direito Penal. Contudo, desde logo afasta-se o objeto do presente estudo do conceito de especial fim de agir, considerando que na dogmática jurídico-penal pátria os crimes que possuem especial fim de agir são identificados como tal em sua própria estrutura3, o que não ocorre com os crimes culturalmente motivados. Nestes, a motivação de ordem cultural integra o próprio dolo, que se traduz na conduta praticada em qualquer crime previsto no ordenamento jurídico-penal, não se vinculando a categorias já tradicionalmente estabelecidas nas Ciências Criminais, o que caracteriza os crimes culturalmente vinculados enquanto nova categoria delitiva na doutrina penalista brasileira (cf. DE MAGLIE, 2017).

Os crimes culturalmente motivados hodiernamente são estudados no âmbito dos atos de violência de gênero, que, no Brasil, relacionam-se aos tipos penais de violência doméstica e familiar contra a mulher previstos na Lei Federal n. 11.340/2006 (“Lei Maria da Penha”) e em tipos penais como o de Feminicídio (art. 121, §2º, VI, do CPB/1940). No entanto, verifica-se que os desdobramentos teóricos no estudo desta categoria delitiva têm deixado raízes noutros elementos presentes na cultura brasileira, como em ofensas ao meio ambiente – emblemático neste sentido o caso da “Farra do Boi” (cf. MARTINS, 2017).

Sustenta-se, neste estudo, que os crimes culturalmente motivados constituem-se em categoria jurídico-doutrinária que também pode ser associada a elementos inerentes à matriz religiosa da sociedade brasileira, uma vez que a crença predominante também influencia sobremaneira a cultura de determinado povo. A predominância formal do Cristianismo no Brasil e a construção de uma sociedade pautada na matriz ética judaico-cristã não justifica atos de violência contra templos afro-religiosos, como depredações e danos a objetos religiosos em terreiros de Umbanda e Camdomblé, em especial aqueles localizados em comunidades carentes dominadas por organizações criminosas cujos líderes professam a religião cristã. Infelizmente, contudo, tal fenômeno vem ocorrendo com indesejada frequência, o que motiva uma abordagem científica que não se vincule a apenas um ramo do conhecimento, mas que seja apta a agregar outras áreas das Humanidades.

Imperiosa a necessidade, pois, de um estudo multidisciplinar, interdisciplinar e com pretensões de transdisciplinaridade, pois o fenômeno social objeto deste estudo é de natureza plural e não admite uma abordagem unívoca, seja da Ciência do Direito, seja da Ciência da História, ou das Ciências Sociais. Nos desdobramentos da Teoria da História, a fase atual da pesquisa historiográfica já comporta um entrelaçamento com outras áreas do conhecimento em Humanidades. Destaque-se, nesse sentido, relevante excerto da prestigiada obra de Burke (2012, pp. 40-41):

Vivemos em uma era de linhas indefinidas e fronteiras intelectuais abertas, uma era instigante e, ao mesmo tempo, confusa. Podem-se encontrar referências a Mikhail Bakhtin, Pierre Bourdieu, Fernand Braudel, Norbert Elias, Michel Foucault e Clifford Geertz nos trabalhos de arqueólogos, geógrafos e críticos literários, assim como de sociólogos e historiadores. O surgimento do discurso compartilhado entre alguns historiadores e sociólogos, alguns arqueólogos e antropólogos, e assim por diante, coincide com um declínio do discurso comum no âmbito das Ciências Sociais e Humanidades e, a bem da verdade, dentro de cada disciplina. Mesmo uma subdisciplina como a História Social agora está correndo o risco de dividir-se em dois grupos, um deles preocupado com as principais tendências, o outro, com estudos de caso de pequena magnitude. Na Alemanha, em especial, os dois grupos estão ou estavam em conflito, com os chamados “historiadores societais” (Gesellschaftshistoriker) como Hans-Ulrich Wehler, de um lado, e os praticantes de “micro-história”, como Hans Medick, de outro. Apesar dessa tendência à fragmentação, é surpreendente notar quantos dos debates fundamentais acerca de modelos e métodos são comuns a mais de uma disciplina.

A posição acima exposta, do festejado historiador britânico Peter Burke, demonstra a significativa aproximação entre os ramos que compõem as Humanidades em temas que demandem pesquisa integrada, sem ocorrer o abandono da autonomia relativa a cada esfera do conhecimento. Existem, contudo, fenômenos sociais a que também cabe ao Direito debruçar-se, como o objeto deste estudo, relacionado aos crimes culturalmente motivados de matriz religiosa. Logo, torna-se possível a desejada interdisciplinaridade de segmentos das Ciências Humanas (História, Sociologia, Antropologia, Etnologia) e das Ciências Sociais Aplicadas (Direito), sem se descurar do adequado fundamento filosófico, necessário nas pesquisas que demandem a abordagem do ser humano em suas relações com o mundo fenomênico.

Reflexo da escola historiográfica cultural a partir do século XX, foi o movimento dos Estudos Culturais, de matriz anglo-saxônica (Cultural Studies), cuja interdisciplinaridade dos temas de pesquisa (inclusive com elementos de convergência entre a Teoria Literária e a Ciência da História) também é desejável na abordagem conferida ao presente estudo, que tem por pretensão a promoção do diálogo entre o Direito, a História e a Antropologia, no amplo espectro das Humanidades. A ideia de uma “cultura de minoria” como tema privilegiado de estudo nas Ciências Humanas (cf. CEVASCO, 2003) é deveras significativa na pesquisa sobre os desdobramentos da expansão das religiões africanas e suas variações no Brasil, em especial quanto à Umbanda, religião de matriz africana que adquiriu colorido próprio especiamente a partir do século XX, tornando-se legitimamente brasileira na atualidade.

Outrossim, o aporte teórico do movimento de Estudos Culturais também é relevante quando se verifica a aparente ausência de razões que justifiquem (ou sequer expliquem) a prática da depredação de templos afro-religiosos em comunidades carentes, especialmente do Rio de Janeiro. Tais delitos, culturalmente motivados e baseados no ódio a elementos presentes na cultura africana, que tanto influenciou o Brasil em seus mais de trezentos anos de aplicação do insidioso modo de produção econômica escravista, demonstram um paradoxo sociocultural que encontra possíveis paralelos na obra literária de Nelson Rodrigues, especialmente no drama retratado em “Anjo Negro” (RODRIGUES, 1947)4.

Sobre o autor
Divo Augusto Cavadas

Divo Augusto Pereira Alexandre Cavadas é Advogado e Professor de Direito. Procurador do Município de Goiânia (GO). Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP). Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO). Especialista em Direito Penal, Direito Tributário e Filosofia. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Realizou estudos junto à Universidad de Salamanca (Espanha), Universitá di Siena (Itália), dentre outras instituições. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Diplomado pela Câmara Municipal de Goiânia e Comendador pela Associação Brasileira de Liderança, por serviços prestados à sociedade.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVADAS, Divo Augusto. A dilapidação dos ídolos:: crimes culturalmente motivados e destruição de templos afro-religiosos à luz de uma hermenêutica interdisciplinar e pós-positivista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6119, 2 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79131. Acesso em: 22 nov. 2024.

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