3. ULTRAJE AOS CULTOS AFRO-RELIGIOSOS NO RIO DE JANEIRO À LUZ DO DIREITO PENAL CONTEMPORÂNEO E DOS ESTUDOS CULTURAIS
Uma vez estabelecido o conceito e âmbito de aplicação dos crimes culturalmente motivados, bem como a necessidade de melhor compreendê-los sob uma ótica interdisciplinar que associe o Direito à História, Sociologia, Antropologia e Etnologia, ilustra-se o referido conceito com sua expressão no Brasil do século XXI: a depredação de templos afro-religiosos por líderes de organizações criminosas em regiões socioeconomicamente carentes, em especial do Rio de Janeiro, cuja inserção cada vez maior de comunidades cristãs ligadas ao movimento religioso neopentecostal promoveu a adesão de líderes locais de facções criminosas, os quais, infelizmente, passaram a adotar posturas intolerantes quanto a outras manifestações culturais de religiões de matriz africana, num ambiente de elevada efervescência social onde o respeito e o pluralismo deveriam ser fomentados, até mesmo para a manutenção da paz social, abalada pela permanência de organizações criminosas aliada à omissão estatal no desenvolvimento de políticas públicas de educação, saúde, segurança e manutenção do controle social típicos da tradicional estrutura de Estado.
Sob a ótica etnológica, contudo, é importante mencionar que, a partir do século XX, as perspectivas estruturalistas de estudo em Humanidades passaram por sérios desdobramentos, também influenciados pelo pós-positivismo predominante nos movimentos intelectuais do período. Neste desiderato, a compreensão de que existiriam culturas ou comunidades desprovidas de patamar civilizatório compatível com o modelo ocidental – e, por certo, até mesmo a validade da ideia de um “patamar civilizatório” - foram gravemente questionadas, e a ideia de um “processo civilizador” (cf. ELIAS, 1990) foi objeto de uma atual releitura no âmbito da Etnologia.
Semelhantemente, na Antropologia, o conceito de cultura foi profundamente revisado pelas perspectivas pós-estruturalistas, sob a influência do pós-positivismo filosófico e do pós-colonialismo histórico. O século XX, nesse sentido, foi palco de uma profunda guinada científica e filosófica, reflexo sobretudo da proteção internacional dos direitos humanos, que passou a predominar a partir da I Grande Guerra (1914-1918) e, principalmente, após a II Grande Guerra (1939-1945), derivada da ascensão dos organismos intergovernamentais na sociedade internacional, com especial enfoque na Organização das Nações Unidas, o que representou significativos desdobramentos na História Política recente5.
A liberdade de crença e de culto garantida como direito fundamental em diversas Constituições ocidentais, inclusive a brasileira, fundamenta a ideia de que a depredação de templos afro-brasileiros não apenas se constitui em crime previsto no CPB/1940, mas também revela grave violação dos direitos humanos internacionalmente protegidos – principalmente quando o Estado brasileiro, instado a reprimir semelhante conduta ou promover políticas públicas de conscientização ao pluralismo religioso, omite-se. A necessidade de respeito às diferentes crenças no Brasil demonstra sua formação cultural multifacetada, o que traz à baila a extensão do próprio conceito de cultura, objeto de interesse da Antropologia. Importante escólio sobre a definição e âmbito de aplicação da cultura, bem como o concernente afastamento de visões superficiais sobre a matéria, pode ser encontrada na obra de Laraia (1986, pp. 44-45):
É comum, entre os diferentes setores de nossa população, a crença nas qualidades (positivas ou negativas) adquiridas graças à transmissão genética. “Tenho a física no sangue” - dizia uma aluna que pretendia mudar a sua opção de ciências sociais para a de física, invocando o nome de um ancestral. “Meu filho tem muito jeito para a música, pois herdou esta qualidade do seu avô”. É este um outro exemplo comum. Muito contribuiu para afirmações deste tipo a divulgação da teoria de Cesare Lombroso (1835-1909), criminalista italiano que procurou correlacionar aparência física com tendência para comportamentos criminosos. Por mais absurda que nos possa parecer, a teoria de Lombroso encontrou grande receptividade popular e, até recentemente, era ministrada em alguns cursos de direito como verdade científica. Em nossos dias o mau uso da sociobiologia tem exercido o mesmo papel. O perigo desses tipos de explicações é que facilmente associam-se a tipos de discriminações raciais e sociais, numa tentativa de justificar as diferenças sociais. Assim, até mesmo o sucesso empresarial passa a ser explicado como uma forma de determinação genética e é ilustrado com a enumeração das diferentes dinastias de industriais ou empresários. O homem é resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridos pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade.
A matriz cultural latina, colonial, escravocrata e autoritária do Brasil desde antes de sua formação enquanto Estado-nação é importante vetor metodológico para se compreender a dificuldade de alteridade de parcela da sociedade brasileira quanto a manifestações religiosas de matriz africana, nada obstante a relevância de sua influência na própria construção da cultura brasileira, especialmente a partir do século XVIII com a expansão do tráfico negreiro no período colonial, apenas obstada formalmente com a Lei Eusébio de Queirós em 1850 EC. Semelhante cenário favorece a prática de crimes culturalmente motivados por razões ligadas a conflitos religiosos, paradoxal frente ao ambiente formal (por força da Constituição do Brasil) e materialmente plural (pela formação multiétnica e multicultural da sociedade brasileira) das expressões religiosas no país. A depredação e destruição de templos afro-religiosos em regiões carentes do país, destacando-se as favelas do Rio de Janeiro, tendo por fundamento a opção religiosa de líderes locais de organizações criminosas ligadas ao narcotráfico, portanto, pode ser caracterizada como reflexo de tal categoria jurídico-penal.
Especificamente quanto à prática criminosa ora apreciada neste estudo, importante destacar-se que ela reflete uma visão distorcida sobre cultura, baseada no determinismo expressado no excerto supramencionado, do insígne antropólogo brasileiro Roque de Barros Laraia. Referido determinismo, calcado em uma ótica estruturalista de que uma crença possa ser superior ou mais civilizada que outra, ou mesmo que tal ou qual expressão religiosa pode ser caracterizada como a manifestação de um mal espiritual, lamentavelmente conduz a um crime culturalmente motivado – quanto à depredação e destruição de templos afro-religiosos, especificamente aquele previsto no art. 208 do CPB/1940, consistente no “Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo”.
As fontes pesquisadas – matérias jornalísticas alusivas a um período que abrange os anos de 2013 a 2019 – expõem a inserção de movimentos religiosos pentecostais e neopentecostais em comunidades carentes no Rio de Janeiro e sua influência tanto em moradores de tais comunidades quanto nas lideranças locais do crime organizado ligado ao narcotráfico. A referida ligação pode se manifestar tanto na intervenção em “julgamentos” realizados pelos narcotraficantes a indivíduos desviantes dos mecanismos de controle social informal6 estabelecidos nas comunidades carentes – normalmente são absolvidos quando se convertem ao cristianismo representado pelo movimento do líder religioso interventor7 – quanto na influência direta, ao converterem os líderes criminosos locais, que passam a reproduzir relações de dominância sobre indivíduos que professam outras crenças, tendo como medida extrema a conduta de tais narcotraficantes ao destruir ou depredar templos afro-religiosos em suas regiões de domínio8.
Enfim, uma crítica que pode ser dirigida aos crimes culturalmente motivados por razões ligadas à violação do direito fundamental de crença e culto religioso, em especial quanto às religiões de matriz africana (afro-religiões), diz respeito ao reduzido grau de repressividade estatal, considerando o preceito secundário do art. 208 do CPB/1940 (“Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa”). Ainda que o parágrafo único do dispositivo em comento apresente causa de aumento de pena pelo emprego de violência (“Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência”), trata-se de crime de menor potencial ofensivo, julgado perante os Juizados Especiais Criminais, sendo aplicáveis ao procedimento todos os mecanismos típicos do movimento despenalizador e de abolicionismo penal moderado que ensejaram a publicação da Lei Federal n. 9.099/1995, tais como a possibilidade de transação penal e suspensão condicional do processo, ainda quando o crime é praticado com violência. O que remanesce ao hermeneuta é a possibilidade de aplicar cumulativamente penas de outros crimes associados ao de Ultraje a Culto, por força do concurso material ou formal de delitos, ou mesmo do crime continuado, aplicando-se os arts. 69 a 71 do CPB/1940.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: POR UMA HERMENÊUTICA PÓS-POSITIVISTA E INTERDISCIPLINAR DOS CRIMES CULTURALMENTE MOTIVADOS
Verifica-se, pois, que a depredação e destruição de templos afro-religiosos por líderes criminosos locais em comunidades carentes brasileiras, especialmente observado no estado do Rio de Janeiro, revela a prática de delito que pode ser caracterizado pelo moderno prisma dos crimes culturalmente motivados, categoria delitiva então aplicável a condutas de violência de gênero e ofensas ao meio ambiente penalmente imputáveis, mas ainda não explorado do ponto de vista científico no que concerne aos atos narrados ao longo deste estudo, lamentáveis e que revelam uma profunda violação a normas de proteção internacional dos direitos humanos que o Brasil incorporou a seu ordenamento jurídico, tal como a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica).
Outrossim, propõe-se uma hermenêutica deste desvio social penalmente imputável que contemple não apenas o Direito Penal ou a Ciência Jurídica, mas também outros ramos do conhecimento em Humanidades, especialmente a Ciência da História, a Sociologia, a Antropologia e a Etnologia, assim como a Ciência das Religiões, considerando também a inserção, cada vez mais crescente, do Cristianismo protestante derivado dos movimentos pentecostais e neopentecostais nas comunidades carentes do Brasil, com foco no recorte espacial considerado neste estudo (estado do Rio de Janeiro), o que é interpretado por líderes locais de facções criminosas convertidos a semelhante crença como uma demonstração de autoridade espiritual dos atores envolvidos que, calcada na denominada Teologia do Domínio (cf. CUNHA, 2014), apregoa a adoção de uma postura conflitiva às manifestações que supostamente se contraponham à cosmovisão histórica e cultural do Cristianismo monoteísta, o que vitimiza, sobremaneira, as expressões afro-religiosas também presentes em tais comunidades, principalmente ligadas às religiões da Umbanda e do Candomblé, possuidoras de uma dinâmica própria influenciadora dos desdobramentos culturais da própria sociedade brasileira, realidade pesquisada nos chamados Estudos Afro-brasileiros em especial a partir da década de 1990 (cf. BIRMAN, 1997)
Semelhante hermenêutica interdisciplinar, dotada permanentemente pela pretensão transdisciplinar, compreende não apenas a adoção da ótica pós-positivista no ensino e pesquisa das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, mas também expressa-se na figura do movimento de Estudos Culturais (Cultural Studies), oferecendo contributo significativo para a compreensão de fenômenos típicos da sociedade plural da pós-modernidade, que não comporta abordagens unívocas e baseadas em uma rígida divisão metodológica dos ramos tradicionais de conhecimento.
Torna-se, pois, necessária a elaboração de políticas públicas de alteridade religiosa e democrática, bem como maior investimento em segurança pública, para que o Estado possa atingir as regiões mais carentes de seu território e estimular uma convivência harmoniosa entre fiéis das diferentes manifestações religiosas que se expressam nestas comunidades, enquanto expressão da laicidade do Estado brasileiro, desde a proclamação da República em 1889 – cuja liberdade de culto e crença é direito fundamental formalmente estabelecido, mas que enseja seu cumprimento material mormente quanto às expressões afro-religiosas presentes no Brasil há séculos, mas duramente oprimidas por segmentos sociais incapazes de exercer a alteridade típica do pluralismo democrático.
Neste sentido, o presente estudo constitui-se numa inicial compreensão do autor sobre a matéria, de profundo interesse científico, e que pode se desdobrar em trabalhos acadêmicos futuros, dado seu relativo ineditismo frente a tão grave fenômeno na sociedade brasileira. O país precisa de uma gradual superação de sua negativa matriz cultural latina, colonial, escravocrata e autoritária, inclusive como corolário da proteção internacional de direitos humanos a que se comprometeu quando da incorporação de tratados internacionais sobre a matéria, que garantem a proteção de minorias e grupos vulneráveis, inclusive de expressões religiosas como as da Umbanda e do Candomblé no território de comunidades carentes. Favelas, aglomerados, vilas e outras denominações variáveis de acordo com a região do país (em especial, no caso da realidade carioca de favelas - enfocada neste estudo - onde há maior inserção do Cristianismo derivado dos movimentos pentecostais e neopentecostais) jamais podem ser penalizados pela conduta intolerante de líderes criminosos locais, uma vez que tais expressões religiosas igualmente se encontram amparadas pelo direito fundamental à liberdade de crença e culto.