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Perspectivas histórica, antropológica e jurídica dos movimentos abolicionistas no século XIX à luz do pensamento de Michel de Certeau

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Agenda 21/03/2020 às 16:30

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Torna-se possível a aplicação da teoria de Michel de Certeau encetada em sua obra A Invenção do Cotidiano na abordagem da realidade dos povos escravizados no Brasil do século XIX e os esforços empreendidos por parte da comunidade jurídica (por meio da propositura das chamadas “ações de liberdade”), e mesmo por parte das próprias pessoas submetidas à exploração de mão de obra escrava no período, que implicou não apenas a perda de sua liberdade, mas também resultou na gradual perda de sua identidade, o que implicou na necessidade de se elaborar estratégias de microrresistência frente a uma realidade que não era favorável à abolição da escravatura sequer em médio prazo.

Tendo como supedâneo a nostalgia da vida experienciada na África, cujos povos são dotados de cultura própria, e considerando um conceito contemporâneo e crítico de cultura à luz das modernas teorias antropológicas, as estratégias de microrresistência adotadas pelos povos escravizados no Brasil implicaram na apropriação cultural de parte de seus costumes, crenças e imaginário pela sociedade brasileira, bem como se traduziram na permanente busca pela liberdade a partir do século XIX – seja por meio das sociedades abolicionistas organizadas principalmente nas regiões urbanas e dotadas de maior grau de cosmopolitismo face a nova política de extinção do modo de produção escravista adotada pela Europa pós-revolucionária, seja pela atuação solitária e heróica de advogados e membros da comunidade jurídica brasileira que não compactuavam com o modelo escravocrata vigorante desde o período colonial7.

A teoria elucubrada por Michel de Certeau, que deita raízes na escola de pensamento filosófico do pós-positivismo, também se filia a óticas pós-estruturalistas, considerando que inexiste uma escala evolutiva entre as civilizações humanas, rechaçando-se parcela da comunidade científica que se encontrava alinhada ao movimento de darwinismo social em ascensão ao longo do século XIX, influenciado pelo cientificismo no âmbito das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas do período, especialmente a Antropologia e Etnologia. Embora o objeto da pesquisa que resultou na obra A Invenção do Cotidiano não se vincule totalmente à ótica pós-colonial (considerando tratar-se de abordagem que envolve a classe social dos consumidores, vulnerável frente às grandes corporações de fornecedores de produtos e serviços alinhadas com o modo de produção capitalista pós-industrial), a abrangência e profundidade das reflexões e críticas tecidas por Certeau permitem sua aplicação noutros segmentos da sociedade, em recortes temporais e geográficos que autorizam uma hermenêutica adequada ao fenômeno da escravidão novecentista no Império do Brasil, o que resultou em sua decadência após um período considerável de observação das estratégias de microrresistência dos povos escravizados e dos grupos da sociedade civil que resguardaram seus interesses no recorte temporal pesquisado.

Desta forma, torna-se possível a compreensão do processo de abolição da escravatura no Brasil à luz da Ciência da História, com enfoque nos campos da História do Direito, História Política e História do Imaginário Sociocultural, uma vez que a teoria certeauniana é dotada de fortes vínculos com a psicanálise freudiana e lacaniana (também encontrada na obra de outros estudiosos contemporâneos de Certeau, como Michel Foucault), bem como demonstra sua simpatia ao movimento da História Cultural (à época, Nova História Cultural), que por sua vez pode ser considerada um importante reflexo no âmbito da Historiografia do movimento científico-acadêmico dos Estudos Culturais (Cultural Studies), caracterizado, dentre outros aspectos, pelo elevado apreço à multidisciplinaridade, apta a conduzir à interdisciplinaridade e proponente de uma transdisciplinaridade, considerando a aplicação in casu da teoria da complexidade do polímata Edgar Morin (cf. ESTRADA, 2009), a qual se credita importante vetor metodológico não apenas da abordagem deferida à pesquisa que resultou no presente estudo, mas como verdadeiro fio condutor dos demais trabalhos acadêmicos elaborados por seu autor, especialmente ao tecer considerações sobre tão multifacetado tema como a escravidão, cujo conceito e âmbito de aplicação sustenta-se ser mais sociocultural e histórico que jurídico (no Brasil pós-1940, constituindo-se no crime de redução a condição análoga à de escravo previsto no art. 149. do Decreto-Lei n. 2.848/1940 – Código Penal Brasileiro – dotado de rígida tipicidade dissociada do pluralismo típico do insidioso fenômeno social) ou filosófico (ligado à tradição aristotélica de uma “escravidão natural” de matriz psicológica ou socialmente orgânica, que não se satisfaz no pensamento filosófico contemporâneo – para adequada crítica, cf. TOSI, 2003).

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Por fim, ressalte-se que este estudo propõe uma reflexão inicial sobre a matéria, cujo objeto de pesquisa possui amplitude e profundidade significativas no espectro do gênero das Humanidades, pelo que demonstra seu mérito científico de permitir maiores desdobramentos em trabalhos de pesquisa acadêmica futuros, dotado de premete relevância no contexto atual, em que a exploração de mão de obra escrava e em condições análogas lamentavelmente ainda grassa em vários países do sistema global; todavia, a contrario sensu do recorte temporal considerado no presente estudo (século XIX), atualmente a prática de trabalhos forçados constitui-se em grave violação dos direitos humanos reconhecidos por meio de tratados internacionais legitimamente reconhecidos, implicando em diversas hipóteses na fiscalização por organismos intergovernamentais como a Organização Internacional do Trabalho e a Organização das Nações Unidas, sendo fundamento do Direito e da Filosofia Moral a promoção do trabalho digno a todos os seres humanos que reúnam condições para o exercício de semelhante atividade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Maíra Chinelatto; SIENES, Robert Wayne Andrew. Escravos que Matam Senhores: o caso de Francisco de Salles. Campinas, 1876. In: 58ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, jul. 2006, Florianópolis, SC. Anais (on-line). Florianópolis: SBPC, 2006. Disponível em: <https://www.sbpcnet.org.br/livro/58ra/SENIOR/RESUMOS/resumo_2546.html>. Acesso em 23/1/2020.

BIRMAN, Patricia. O Campo da Nostalgia e a Recusa da Saudade: temas e dilemas dos estudos afro-brasileiros. In: Religião e Sociedade, 18(2), 1997. Rio de Janeiro: CER/ISER, 1997.

CAMPELLO, André Emmanuel Batista Barreto. Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil. Jundiaí: Paco Editorial, 2018.

CARVALHO, Gilberto de Abreu Sodré. O Advogado e o Imperador: a história de um herói brasileiro. São Paulo: Duna Dueto, 2015.

CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano – 1. Artes de Fazer. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

DORIGNY, Marcel. As Abolições da Escravatura: no Brasil e no mundo. Tradução: Cristian Macedo e Patrícia Reuillard. São Paulo: Contexto, 2019.

ESTRADA, Adrian Alvarez. Os Fundamentos da Teoria da Complexidade em Edgar Morin. Akrópolis Umuarama, v. 17, n. 2, abr./jun. 2009.

FOUCAULT, Michel. História da Loucura. Tradução: João Teixeira Coelho Neto. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.

FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 28. ed. São Paulo: Paz & Terra, 2014.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. v. I. São Paulo: Paz & Terra, 2008.

FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. 10. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

TOSI, Giuseppe. Aristóteles e a Escravidão Natural. Boletim do CPA, n. 15, jan./jun. 2003. Campinas: CPA, 2003.


Notas

1 Opta-se no presente estudo pelas siglas AEC (“Antes da Era Comum”) e EC (“Era Comum”) em vez de a.C. (“antes de Cristo”) e d.C. (“depois de Cristo”), em apreço a um perfil laico de pesquisa no âmbito da Ciência da História, e mesmo das Humanidades do ponto de vista geral.

2 Um dos mais importantes estudiosos do grande domínio das Humanidades que pode ser mencionado além do referencial teórico deste estudo, Michel de Certeau, é o nome de Michel Foucault (1926-1984). Sua obra por vezes ensejou significativo diálogo entre a História, Filosofia, Psiquiatria, Psicanálise e Direito, como pode ser observado em seus livros História da Loucura na Idade Clássica (1961), O Nascimento da Clínica (1963), Vigiar e Punir (1975), Microfísica do Poder (1979) e História da Sexualidade (1976). A importância conferida às bases epistemológicas da pós-modernidade, movimento filosófico a que o referido pensador era aproximado, pode ser observada em seu livro As Palavras e as Coisas (1966), que propunha uma verdadeira introdução à Arqueologia do Saber, conceito que daria nome ao livro publicado em seguida, no ano de 1969. Embora o presente estudo enfoque a contribuição de Michel de Certeau para o discurso pós-moderno, bem como a possibilidade de aplicação de sua teoria da microrresistência dos grupos dominados aos estratagemas utilizados pelos povos escravizados no Brasil até 1888 EC, em especial o mecanismo jurídico das “ações de liberdade”, não se pode jamais olvidar da contribuição de Michel Foucault, tampouco dos esforços de outros pensadores de meados do século XX nos desdobramentos da escola de pensamento pós-positivista e pós-estruturalista nos domínios das Humanidades.

3 Reputa-se importante apresentar excerto da pesquisa em comento, conforme segue: “Para a década de 1870, em Campinas, foram encontrados cinco casos de assassinato de senhores por escravos. Segue-se a breve análise de um dos casos pesquisados, referente a Francisco de Salles, assassinado em fevereiro de 1876. Cinco de seus dezesseis escravos foram julgados e condenados a açoites e ferros (inclusive uma mulher), sendo que dez foram presos, como participantes no crime. De fato, os interrogatórios dos réus revelam que o crime vinha sendo planejado por todos os cativos, e que se decidiu levar o plano à ação depois do que se julgou uma injustiça do senhor (castigos muito severos e a obrigação de trabalhar num domingo). Dentre os condenados, estava Benedicto, viúvo, feitor e que crescera junto com Salles. O impacto do crime transparece no inventário, em que se afirma o desinteresse em leiloar os escravos, pois seus preços estavam baixos por “todos elles acharam-se mais ou menos implicados no assassinato do seu senhor, segundo é público e notório”. Assim, a maior parte dos escravos foi vendida para o pai do assassinado, José de Campos Salles, que tomou para si a obrigação de cuidar do parco patrimônio herdado pelos órfãos, assim como punir privadamente os assassinos de seu filho. Algumas características se tornam claras: um senhor inábil, uma escravaria com potencial rebelde, apesar de especializações e famílias, uma propriedade que exigia demasiado trabalho dos cativos e uma motivação imediata resultaram no assassinato de Francisco de Salles” (ALVES e SIENES, 2006).

4 Como singelo exemplo, cite-se a palavra moleque, comum na língua portuguesa em várias regiões do Brasil, cuja origem remonta ao quimbundo mu'leke, que literalmente significa “filho pequeno” ou “garoto”. Uma das numerosas línguas bantas, de família nígero-congolesa, é bastante pronunciada no território de Angola, no continente africano, representando um dos inúmeros contributos que a matriz cultural africana, oriunda dos povos escravizados, trouxe para a sociedade brasileira.

5 Estilos musicais como o samba, pagode e axé podem ser apresentados como exemplos da microrresistência cultural dos povos escravizados em diferentes regiões do Brasil, desdobrando-se em outros estilos musicais de grande apelo popular nas décadas subsequentes.

6 No que concerne ao fenômeno religioso, o exemplo mais significativo da microrresistência cultural empreendida pelos povos escravizados diz respeito às afro-religiões manifestadas em território brasileiro, com destaque para a Umbanda e o Candomblé, que por meio do sincretismo religioso ensejaram a manutenção de parte do modo de vida dos povos escravizados, em especial no campo da nostalgia, o que influenciou sobremaneira a matriz cultural própria da civilização brasileira nos anos subsequentes. Recomenda-se para maiores detalhes sobre essa temática a pesquisa realizada por Birman (1997), vinculada à tradição pós-colonial da segunda metade do século XX.

7 Oferece-se nas pesquisas realizadas para elaboração do presente estudo importância à figura de Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882). Advogado, negro e escravo liberto, postulou diversas causas em prol da liberdade de integrantes dos povos cativos no Brasil imperial, sendo autor de diversas “ações de liberdade” no contexto da decadência do modo de produção escravista. Em apreço a uma abordagem que contemple a interdisciplinaridade enquanto característica inerente aos Cultural Studies, relevante mencionar em Literatura o romance de Gilberto de Abreu Sodré Carvalho, intitulado O Advogado e o Imperador: a história de um herói brasileiro (CARVALHO, 2015).

Sobre o autor
Divo Augusto Cavadas

Divo Augusto Pereira Alexandre Cavadas é Advogado e Professor de Direito. Procurador do Município de Goiânia (GO). Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP). Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO). Especialista em Direito Penal, Direito Tributário e Filosofia. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Realizou estudos junto à Universidad de Salamanca (Espanha), Universitá di Siena (Itália), dentre outras instituições. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Diplomado pela Câmara Municipal de Goiânia e Comendador pela Associação Brasileira de Liderança, por serviços prestados à sociedade.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVADAS, Divo Augusto. Perspectivas histórica, antropológica e jurídica dos movimentos abolicionistas no século XIX à luz do pensamento de Michel de Certeau. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6107, 21 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79132. Acesso em: 2 nov. 2024.

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