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Perspectivas histórica, antropológica e jurídica dos movimentos abolicionistas no século XIX à luz do pensamento de Michel de Certeau

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21/03/2020 às 16:30

Resumo:


  • O Brasil adotou o modelo escravocrata desde a colonização lusitana até a abolição em 1888, passando por períodos de recrudescimento e decadência durante o Império.

  • A teoria de Michel de Certeau, exposta em sua obra "A Invenção do Cotidiano", foca nas estratégias de microrresistência das classes sociais dominadas, como a utilização de "artimanhas" para contestar o status quo sem se expor ao risco social.

  • No Brasil imperial, a resistência dos povos escravizados se manifestou não apenas por revoltas, mas também por estratégias sutis, como as "ações de liberdade", que argumentavam a inconstitucionalidade da escravidão à luz da Constituição de 1824.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Intenta-se pesquisar as reações judiciais à escravidão legalizada durante o governo imperial brasileiro, em especial às chamadas “ações de liberdade”, à luz da teoria da microrresistência de classes sociais dominadas elaborada por Michel de Certeau.

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

O modelo escravocrata estabelecido no Brasil durante a exploração colonial lusitana permaneceu e enfrentou períodos de recrudescimento e decadência durante o período imperial (1822-1889), caracterizado pelos governos de Dom Pedro I (1822-1831), regencial (1831-1840) e de Dom Pedro II (1840-1889) – este último conhecido pela gradual decadência da escravidão no Brasil, culminando com a publicação da Lei Imperial n. 3.353/1888, conhecida como Lei Áurea, cujo evento foi um dos que antecederam imediatamente a proclamação da República em 1889 EC1. Considerado uma das últimas civilizações a abolirem formalmente a escravidão de seres humanos, do ponto de vista econômico, o Brasil desdobrou-se de um país que adotava o modo de produção escravista para imediatamente adotar o modo de produção econômica capitalista, em uma verdadeira progressão per saltum que ignorou a experiência mundial em Economia Política, considerando uma compreensão marxista da disciplina, que contemple a teoria dos modos de produção econômica (desde o primitivismo até o conflito entre capitalismo e socialismo, inserido no contexto do materialismo histórico dialético que informa a epistemologia marxista).

O atual paradigma da História Cultural, que alberga um repertório de conhecimento científico que se traduz no movimento intelectual dos Estudos Culturais (Cultural Studies), de matriz anglo-saxônica, toma de empréstimo uma ampla gama de saberes que constituem o genérico domínio das Humanidades, considerando não apenas o que se pode categorizar como parte das Ciências Humanas, mas também as áreas de conhecimento das Ciências Sociais Aplicadas. Nesse desiderato, relevantes as contribuições dos assim chamados saberes “psi” (Psicologia, Psiquiatria, Psicanálise) na pesquisa de fenômenos socio-históricos que envolvam simultaneamente o estudo de fatos históricos e das pessoas que os protagonizaram, o que repercute nos desdobramentos do campo científico conhecido por História do Imaginário, desenvolvido de forma significativa a partir da década de 1960 do século XX. Importantes estudiosos desta época conseguiram promover um salutar diálogo entre a História e os saberes “psi”. O presente estudo enfocará o contributo de Michel de Certeau (1925-1986), nada obstante a ostensiva importância de outros pensadores das Humanidades no período2.

Este estudo tem por tema a teoria desenvolvida por Michel de Certeau em sua obra A Invenção do Cotidiano, especialmente no primeiro volume (As Artes de Fazer), que ao focar seu objeto de pesquisa nas classes sociais dominadas, busca uma compreensão das “artimanhas” e estrategemas utilizados por estes grupos sociais para demonstrarem sua insatisfação com o status quo sem praticarem desvios ostensivos que os coloquem em risco social, supostamente adequando-se ao ambiente estabelecido pelas classes dominantes, mas ao fim transformando o espaço com sua linguagem, práticas e artes de fazer. Embora o contexto desta pesquisa de Michel de Certeau seja uma comissão realizada pelo governo francês para se pesquisar as condutas dos integrantes da cadeia de consumo daquele país, a profundidade do estudo de Certeau o tornou célebre, especialmente pelo diálogo entre a História, Sociologia e elementos dos saberes “psi” - estes últimos, fruto da aproximação do historiador francês com a teoria psicanalítica de Jacques Lacan (1901-1981).

Os consumidores, que atualmente configuram-se como um grupo vulnerável segundo a Teoria dos Direitos Humanos, à época da pesquisa empreendida por Michel de Certeau e sua equipe eram submetidos a situações de mais intensa vulnerabilidade, ante ao reduzido grau de proteção jurídica por meio de diplomas legais como o atual Código de Proteção e Defesa do Consumidor do Brasil (Lei Federal n. 8.078/1990), por exemplo. Tal situação tornou o estudo de Michel de Certeau ainda mais profundo no espectro das Humanidades, sendo aplicado na pesquisa de outros grupos vulneráveis e minorias, considerando a natureza pós-positivista e pós-estruturalista da pesquisa do historiador jesuíta francês, que colmatava sua historiografia com influxos da teoria psicanalítica de matriz lacaniana. Intenta-se no presente estudo, pois, estabelecer uma relação entre as microrresistências e “táticas” objeto da pesquisa de Certeau e as várias tentativas empreendidas pelo movimento abolicionista brasileiro no século XIX, em especial as chamadas “ações de liberdade”.

O objetivo geral deste artigo científico é apresentar a teoria de Michel de Certeau, relacionando-a com a História do Direito no Brasil dotada de um perfil pós-positivista, pós-estruturalista e pós-colonial, tendo por recorte temporal o século XIX e por recorte espacial o ambiente da Corte na então capital do Império Brasileiro, o Rio de Janeiro. O objetivo específico deste estudo, por sua vez, é o de abordar as teses jurídicas sustentadas por membros da comunidade jurídica ligados direta ou indiretamente ao movimento abolicionista brasileiro no século XIX enquanto “táticas” para contestar o modelo escravocrata então vigente no país, auxiliando decisivamente na proteção do contingente populacional escravizado, bem como prestando-se como importante contributo na proteção internacional dos direitos humanos, então nascente em meados do século XIX.

A metodologia empregada na elaboração deste artigo científico, enfim, é de natureza dedutiva, na medida em que serão apresentados conceitos gerais afetos tanto à Historiografia (em especial, informada pelo campo da História Cultural) quanto à Ciência do Direito, sendo aplicados ao recorte temática, temporal e espacialmente considerado. Calca-se a pesquisa no levantamento bibliográfico como principal fonte utilizada, enquadrando-se o presente trabalho na tradição intelectual inaugurada pelos Estudos Culturais (Cultural Studies) de matriz pós-estruturalista, com foco na abordagem de classe social marginalizada e subalterna (povos escravizados no Brasil imperial do século XIX).


2. MICHEL DE CERTEAU E A INVENÇÃO DO COTIDIANO PELA PERSPECTIVA DAS CLASSES SOCIAIS MARGINALIZADAS E SUBALTERNAS

Michel de Certeau foi um importante historiador de meados do século XX cuja teoria historiográfica encontrava-se associada aos influxos da escola filosófica pós-positivista no contexto das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da época. Semelhante perspectiva, nesse sentido, passou a permear seu pensamento no período, tornando-se famoso por ter realizado, em tempo real, um estudo sobre os movimentos estudantis na França durante o emblemático ano de 1968 EC, considerado um marco no ativismo social e na historiografia pós-positivista francesa. Sua teoria deita raízes, por vezes, em sua aproximação com o saber psicanalítico, em especial de matriz lacaniana, o que torna seus estudos dotados de um vetor metodológico que dialoga salutarmente com os assim chamados saberes “psi” (categoria que engloba psiquitaria, psicologia e psicanálise e sua interdisciplinaridade com outros segmentos do conhecimento em Humanidades).

A bem da verdade, Michel de Certeau filia-se ao pós-positivismo, que possui como desdobramentos significativos o pós-estruturalismo (relevante sob a ótica da Antropologia e Etnologia, considerando que não mais subsiste a ideia de que uma civilização possa ser culturalmente superior a outra) e o pós-colonialismo (importante na Ciência da História, uma vez que se consideram as ostensivas consequências do processo de descolonização americano a partir do século XIX e afro-asiático especialmente a partir do século XX, por vezes implicando na abolição do modelo escravocrata vigorante na maioria das colônias europeias, salvo em infelizes exceções como o Brasil, que apenas aboliu formalmente a escravidão no ano de 1888 EC). A obra científica de Certeau, nesse desiderato, filia-se não apenas às óticas pós-positivistas, mas igualmente às pós-estruturalistas e pós-colonialistas (embora, quanto a esta última, considera-se que sua filiação se constitui de forma mais sutil, considerando que grande parte de suas pesquisas possui como recorte geográfico o território da França e de outras nações europeias).

A característica do pensamento de Michel de Certeau que mais interessa ao presente estudo diz respeito ao enfoque conferido no objeto de suas pesquisas: a contrario sensu do que hodiernamente se direcionavam os estudos historiográficos do período historicista, que se mantinham calcados em uma História de natureza catalogar, de eventos históricos que podiam ou não ter exercido influência sobre a população atingida à época, ou mesmo de relevância coletiva, a teoria certeauniana enfocava os povos e grupos dominados as classes sociais que não dispunham de força política, social e cultural para atingirem o status quo. Tendo como referencial teórico-metodológico a festejada obra A Invenção do Cotidiano, em especial seu primeiro volume, intitulado Artes de Fazer, verifica-se que o historiador jesuíta francês expõe ostensivamente sua predileção pela elaboração de um estudo historiográfico que contemple os esquecidos, como pode ser observado no destacado excerto que segue:

Este ensaio é dedicado ao homem ordinário. Herói comum. Personagem disseminada. Caminhante inumerável. Invocando, no limiar de meus relatos, o ausente que lhes dá princípio e necessidade, interrogo-me sobre o desejo cujo objeto impossível ele representa. A este oráculo que se confunde com o rumor da história, o que é que pedimos para nos fazer crer ou autorizar-nos a dizer quando lhe dedicamos a escrita que outrora se oferecia em homenagem aos deuses ou às musas inspiradoras? Este herói anônimo vem de muito longe. É o murmúrio das sociedades. De todo o tempo, anterior aos textos. Nem os espera. Zomba deles. Mas, nas representações escritas, vai progredindo. Pouco a pouco ocupa o centro de nossas cenas científicas (CERTEAU, 2014, p. 55).

Michel de Certeau, ao realizar pesquisa sobre o mercado de consumo francês de meados do século XX, enceta profunda reflexão sobre as táticas, estratagemas e “astúcias” empregadas pelos grupos dominados para burlar os mecanismos de controle social formal e informal das classes dominantes, em especial nas sociedades que adotam o modo de produção capitalista, e desdobrarem sua produção cultural própria, influenciando a matriz cultural predominante em determinada sociedade. O emprego dessa “astúcia” pelo “homem ordinário” revela verdadeira microrresistência ao modelo sociocultural predominante, o que torna a pesquisa realizada por Michel de Certeau e sua equipe inovadora e dotada de ineditismo frente aos estudos realizados na França do período, mesmo dentre aqueles formalmente ligados às perspectivas pós-positivistas, então predominantes desde a primeira metade do século XX.

A fim de ilustrar como se perfazem as estratégias de microrresistência dos povos e grupos dominados frente àqueles que pretendem se constituir como dominantes (e supõem exercer tal domínio sociocultural), Certeau apresenta a microrresistência empregada pelos povos nativos americanos quando da dominação europeia a partir do final do século XV, e como houve a manutenção de sua cultura e mesmo reprodução em conjunto com a cultura europeia dominante mesmo em um difícil cenário, nos termos observados em importante excerto da referenciada obra certeauniana, que segue:

Há bastante tempo que se tem estudado que equívoco rachava, por dentro, o “sucesso” dos colonizadores espanhóis entre as etnias indígenas: submetidos e mesmo consentindo na dominação, muitas vezes esses indígenas faziam das ações rituais, representações ou leis que lhes eram impostas outra coisa que não aquela que o conquistador julgava obter por elas. Os indígenas as subvertiam, não rejeitando-as diretamente ou modificando-as, mas pela sua maneira de usá-las para fins e em função de referências estranhas ao sistema do qual não podiam fugir. Elas eram outros, mesmo no seio da colonização que os “assimilava” exteriormente; seu modo de usar a ordem dominante exercia o seu poder, que não tinham meios para recusar; a esse poder escapavam sem deixá-lo. A força de sua diferença se mantinha nos procedimentos de “consumo”. Em grau menor, um equívoco semelhante se insinua em nossas sociedades com o uso que os meios “populares” fazem das culturas difundidas e impostas pelas “elites” produtoras de linguagem. A presença e a circulação de uma representação (ensinada como o código da promoção socioeconômica por pregadores, por educadores ou por vulgarizadores) não indicam de modo algum o que ela é para seus usuários. É ainda necessário analisar a sua manipulação pelos praticantes que não a fabricam. Só então é que se pode apreciar a diferença ou a semelhança entre a produção da imagem e a produção secundária que se esconde nos processos da sua utilização. (…) A relação dos procedimentos com os campos de força onde intervêm deve, portanto, introduzir uma análise polemológica da cultura. Como o direito (que é um modelo de cultura), a cultura articula conflitos e volta e meia legitima, desloca ou controla a razão do mais forte. Ela se desenvolve no elemento de tensões, e muitas vezes de violências, a quem oferece equilíbrios simbólicos, contratos de compatibilidade e compromissos mais ou menos temporários. As táticas do consumo, engenhosidades do fraco para tirar partido do forte, vão desembocar então em uma politização das práticas cotidianas (CERTEAU, 2014, pp. 39. e 44).

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Preliminarmente, é possível tecer críticas ao princípio de raciocínio desenvolvido no excerto supra, na medida em que utiliza como exemplo o fato histórico da exploração de mão de obra escrava dos povos autóctones americanos pelos europeus que ocuparam o território do continente a partir do fim do século XV, conduzindo o leitor neófito à ideia de que tais povos possam ter consentido com sua dominação, o que historicamente não se constitui verdadeiro, tampouco adequado segundo as modernas teorias antropológicas de matriz pós-estruturalista, alinhadas inclusive ao pensamento de Michel de Certeau. Supondo-se ser tal ilustração feita pelo insigne historiador jesuíta francês reflexo do zeitgeist predominante na segunda metade do século XX, não deixa contudo de se constituir em pujante demonstração da didática implementada por Certeau em sua obra, que se sustenta não ter sido apenas uma pesquisa sócio-histórica acerca da classe social vulnerável dos consumidores sob um recorte geográfico que contemplou a França, indo além, na medida em que a teoria da microrresistência das classes sociais dominadas pode ser aplicada a outros fenômenos socioculturais, independente do recorte temporal considerado.

Nada obstante a crítica supramencionada, a abordagem de Certeau sobre a sociedade de consumo francesa induz a uma análise sobre a cultura em seus mais diversos períodos, com ênfase para a pós-modernidade. Todavia, é possível empreender uma pesquisa que tenha por norte as estratégias de microrresistência dos povos escravizados para, sem perder sua cultura, inserirem-se na cultura dominante dos povos escravizadores e buscar sua liberdade por táticas que incluam a dependência econômica aliada às teses jurídicas hodiernamente empregadas nos processos judiciais. Nesse contexto é que se legitima o presente estudo, na medida em que seu objeto de pesquisa constitui-se na aplicação das teses que fundamentaram as “ações de liberdade” durante o século XIX, ao passo em que a sociedade brasileira torna-se cada vez mais refém do insidioso modo de produção econômica escravista, ao ponto em que com seu término encerra-se o próprio governo imperial, proclamando-se a República atualmente em vigor como forma de governo segundo a Ciência Política e Teoria Geral do Estado.


3. ESCRAVIDÃO NO BRASIL IMPERIAL, MICRORRESSITÊNCIA DOS POVOS ESCRAVIZADOS E AS “AÇÕES DE LIBERDADE” COMO DEFESA JURÍDICA DA INCONSTITUCIONALIDADE DA ESCRAVIDÃO À LUZ DA CARTA DE 1824

O Brasil adotou o modo de produção econômica escravista desde sua ocupação pelo povo lusitano, em 1500 EC, até o ano de 1888 EC, quando foi publicada a Lei Imperial n. 3.353, conhecida popularmente como Lei Áurea, que extinguiu o modelo escravocrata vigente na sociedade brasileira. A publicação do referido diploma resultou de profunda resistência dos povos escravizados, cuja liberdade foi ceifada seja em decorrência do tráfico de mão de obra escrava (cuja abolição já havia sido efetuada pela Lei Eusébio de Queirós – Lei Imperial n. 581/1850), seja mesmo em seu nascedouro, considerando que muitos seres humanos nasceram escravos em solo pátrio, o que embora fosse tolerado à época, atualmente reputa-se como grave violação dos direitos humanos, por força de documentos dotados de força jurídica e internacionalmente reconhecidos a partir do século XX, oferecendo-se especial destaque para a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica – 1969).

Sustenta-se no presente estudo que a resistência dos povos escravizados não apenas se manifestava de forma ostensiva, por meio da organização em quilombos ou revoltas que por vezes resultavam em morte de membros da classe social dominante – para maiores detalhes sobre a segunda hipótese, relevante o trabalho de Alves e Sienes (2006)3 – mas também podia ser observado em estratégias sutis, táticas, verdadeiras “astúcias” no esteio da teoria certeauniana, conforme supramencionado. Tais microrresistências manifestavam-se em graduais introjeções na matriz cultural brasileira de elementos da cultura das classes sociais dominadas no período considerado (cuja influência de origem africana, oriunda dos povos escravizados com especial intensidade nos séculos XVIII e XIX, é marcante na linguagem4, na música5 e na religiosidade6), e também encontravam acolhida na elaboração de teses jurídicas que justificassem a proscrição do modelo escravocrata, como ocorreu com as chamadas “ações de liberdade”, que arguiam a inconstitucionalidade da escravidão de seres humanos no Brasil à luz da então Constituição Imperial de 1824. Neste sentido, considerando o vetor metodológico deste artigo científico ligado às perspectivas da História Cultural (sob o gênero dos Cultural Studies, de filiação pós-positivista, pós-estruturalista e pós-colonial), relevante expor um conceito científico e crítico de cultura, como pode ser observado em excerto de referenciado estudo sobre a matéria, abaixo:

O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridos pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade. (…) Concluindo, cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender esta dinâmica é importante para atenuar o choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças entre povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo sistema. Este é o único procedimento que prepara o homem para enfrentar serenamente este constante e admirável mundo novo do porvir (LARAIA, 1986, pp. 45. e 101).

Nesse sentido, o uso e desdobramento de teses jurídicas para sustentar a ilegalidade ou inconstitucionalidade da exploração de mão de obra escrava no Brasil, considerando tratar-se do último país da América a não ter abolido formalmente o modo de produção escravista, constitui-se em importante exemplo de microrresistência à luz da teoria certeauniana exposta na obra A Invenção do Cotidiano. Conforme pode ser observado em pesquisa de Campello (2018), as “ações de liberdade” constituíram-se em importante mecanismo jurídico e judicial, principalmente durante o século XIX, para se questionar e criticar o modelo escravocrata vigorante no Império Brasileiro à luz da Carta de 1824, que paradoxalmente era considerada um diploma internacionalmente reconhecido à época por seu catálogo de direitos fundamentais de inspiração iluminista e pós-revolucionária frente aos movimentos de 1776 (Estados Unidos da América do Norte) e 1789 (França).

Os movimentos de microrresistência oriundos da comunidade jurídica brasileira, como as “ações de liberdade”, especialmente ligados às sociedades abolicionistas e ao esforço empreendido por advogados cuja origem ou ascendência os ligava aos povos escravizados, eram reflexos dos grandes movimentos de abolição da escravatura que vicejavam ao redor do mundo desde o século XVIII (considerando que o Brasil foi a última nação americana a abolir formalmente a escravidão, já no último quartel do século XIX). Neste sentido, referenciado estudo histórico sobre os movimentos abolicionistas apresenta panorama sistemático do Brasil enquanto último bastião do modo de produção econômica escravista no assim considerado “mundo civilizado”, conforme pode ser inferido do excerto abaixo exposto:

A luta contra o tráfico só foi aceita tardiamente no Brasil. A primeira medida tomada nesse campo, sob forte pressão inglesa, foi a lei votada em 1831, vetando a introdução de novos escravos, mas ela não foi aplicada. Ainda por injunção britânica, que vinha inspecionar os navios brasileiros até em suas águas territoriais em virtude de um tratado assinado entre os dois países em 1845, o Brasil promulgou uma lei, em 4 de setembro de 1850, que proibia o tráfico (…) A abolição da escravatura se revelava como uma hipótese distante. De fato, a caminhada foi longa, pontuada por uma série de medidas importantes, mas longe de uma perspectiva de supressão total da servidão. A mais importante dessas leis foi a do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871: toda criança que nascesse de uma mãe escrava (“ingênua”) era livre ao nascer; todavia, ela devia permanecer na casa do senhor de sua mãe até os 21 anos e trabalhar de acordo com a sua idade. O fim da escravidão seria, portanto, muito progressivo. Uma nova etapa foi ultrapassada em 1880: a Lei dos Sexagenários libertava os escravos de mais de 60 anos, com uma compensação financeira para o proprietário paga pelo Estado, mas, entre 60 e 65 anos, o escravo libertado devia ainda serviços a seu senhor, pois sua plena liberdade seria adquirida aos 65 anos. Considerando a expectativa de vida desses escravos, a lei não atingiu muitos deles e não ameaçava o funcionamento das plantations. A lei de abolição total ocorreu em 13 de maio de 1888. A Lei Áurea veio depois que muitas cidades e estados inteiros libertaram seus escravos. Entre eles, o Ceará e o Amazonas anteciparam a decisão nacional inevitável que tardava a ser tomada. Por essa Lei Áurea, o Brasil era o último país a abolir a escravidão, pelo menos aquela oriunda da colonização europeia inaugurada nesta parte do mundo bem no início do século XVI (DORIGNY, 2019, pp. 117-119).

O excerto supramencionado, enfim, ilustra de forma muito significativa a premente necessidade da elaboração de estratégias de microrresistência dos povos escravizados e, em especial, de parcela da comunidade jurídica simpática às causas abolicionistas na tentativa de alterar o status quo dotado de modelo social que não se alterava pelas vias ordinárias, dado o elevado grau de autoritarismo do governo imperial vigorante no Brasil, que nada obstante se afirmasse alinhado aos ditames da monarquia parlamentarista, impunha no bojo da própria Carta de 1824 (posto que outorgada) o Poder Moderador como manifestação positivista de uma suposta organização social centralizada na figura do monarca – postura criticável, tanto para quem fosse simpático à forma de governo monárquica, quanto principalmente para quem apregoasse a necessidade de proclamação de uma República, tese acolhida por muitos integrantes das sociedades abolicionistas da época.

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Sobre o autor
Divo Augusto Cavadas

Divo Augusto Pereira Alexandre Cavadas é Advogado e Professor de Direito. Procurador do Município de Goiânia (GO). Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP). Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO). Especialista em Direito Penal, Direito Tributário e Filosofia. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Realizou estudos junto à Universidad de Salamanca (Espanha), Universitá di Siena (Itália), dentre outras instituições. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Diplomado pela Câmara Municipal de Goiânia e Comendador pela Associação Brasileira de Liderança, por serviços prestados à sociedade.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVADAS, Divo Augusto. Perspectivas histórica, antropológica e jurídica dos movimentos abolicionistas no século XIX à luz do pensamento de Michel de Certeau. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6107, 21 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79132. Acesso em: 22 dez. 2024.

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