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Criminologia midiática no Tribunal do Júri

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Agenda 27/01/2020 às 10:15

4. A INFLUÊNCIA DA MÍDIA SOBRE A DECISÃO DOS JURADOS

Apropriada da questão criminal, a mídia deixou de ser um terceiro imparcial ao tomar parte do debate e a não mais se limitar à narrativa dos fatos, deixando de expor pontos de vista e posições parciais, e proferindo condenações por meio das notícias.

A corrente midiática que está aqui sendo enfocada teve grande prosperidade nas ultimas três décadas porque deixou de se limitar à narrativa dos fatos noticiados ou investigados e checados. Já não é uma mera caixa de ressonância da realidade [...]. Já não cumpre o papel de mero narrador e divulgador (imparcial) dos fatos. Hoje é um verdadeiro advogado, um advogado daqueles que não contam com porta-vozes potentes. O jornalismo possui capacidade de voo próprio e às vezes atua paralelamente à Justiça Oficial. Investiga, acusa, julga e aplica sanções morais ou atua como empresário moral do punitivismo.44

De um ponto de vista geral, os crimes dolosos contra a vida têm recebido maior atenção pela mídia. Isso decorre, de acordo com os dados apresentados pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde - Ministério da Saúde, do número de homicídios crescentes no Brasil, ocupando o 20º lugar de país mais violento do mundo, já no ano de 2014, atingindo recorde.45

Não obstante, não é esse o motivo central que mantém o crime no foco dos meios de comunicação. Apesar de alarmar estas condutas e potencializar o medo e o temor da sociedade, a mídia não possui interesse em destacar a realidade. Prefere, com o seu nítido poder, fazer com que os seus receptores se confortem naquilo que é dito e estereotipado de forma simples e taxativa, apresentando as mais complexas causas como algo simples e fácil de resolver.

A sociedade, no geral, teme por todos aqueles crimes que atentam contra os bens jurídicos individuais, sendo eles a vida, o patrimônio e a dignidade sexual. Sendo este o temor clássico, não há vantagem, sob o olhar capitalista da mídia, em apresentar outras possíveis características do agente, desmitificando os moldes previstos pela própria. Torna-se ainda mais interessante e comercial vender a imagem inicial do vilão criado pelo enredo midiático sobre o crime.46

Em grande análise, concluiu-se que os órgãos de comunicação de massa não se interessam apenas em acompanhar crimes dolosos contra a vida, os que serão julgados pelo Tribunal do Júri, mas também em transmiti-los, diariamente, como se tratasse de uma novela e fizesse parte de uma obra de ficção, enfatizando e elencando os personagens aos posicionamentos já estabelecidos, tornando um processo paralelo àquele que tramita no judiciário, sem a mínima precaução perante os rótulos e graves consequências de tamanha influência.

Realmente, os mass media são os meios primários com que o público conta para a apreensão do que ocorre na realidade à sua volta. Sem sombra de dúvida, são o primeiro e, no mais das vezes, o único meio pelo qual os cidadãos tomam contato com diversos assuntos da atualidade e do mundo que os cerca.47

O questionamento oportuno tange em torno da legalidade, da constitucionalidade e da legitimidade da publicização massiva do processo criminal. Previsto no artigo 5º, IV da Constituição Federal, a liberdade de opinião e de expressão é tida como uma manifestação do pensamento. 48

A Constituição também assegura que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censo ou licença, garantindo ainda a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional sem restrições.49

Destarte, a Carta Magna protege, de um modo geral, a exteriorização do pensamento que, por sua vez, é um direito fundamental instituído pela liberdade de expressão e opinião. A “liberdade de imprensa”, termo absorvido pela ampla e modera “liberdade de comunicação”, constitui uma espécie do gênero “liberdade de expressão”, que também tem sua previsão na lei maior.50

Resguardada sob a proteção constitucional, a mídia, além de essencial para o exercício democrático, se consagra como um direito fundamental de informar, agregando-se ao direito de ser informado munido pelo receptor da mensagem.

A informação que não satisfaça essa exigência não se caracteriza como tal, estando mais próxima do conceito de opinião, cuja manifestação não faz parte do direito fundamental à informação embora também se encontre constitucionalmente protegida. [...] Para que uma determinada mensagem seja considerada informação, ela precisa ser objetiva e, portanto, cercada de algumas medidas, tais como a separação entre fato e opinião, a seleção do que deve ser divulgado com base no interesse público, a redação imparcial, a ausência de qualificativos exagerados, a atribuição dos dados às respectivas fontes, a comprovação das afirmações realizadas, o respeito ao contraditório mediante a apresentação dos diversos ângulos, teses e partes em conflito etc.51

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Deve-se verificar que a mídia observa parte do crime e integra a esta branda análise uma carga muito grande de subjetivismo, enfatizando os dramas, distorcendo as informações e criando inverdades sob a finalidade da criação de uma solução mágica aos culpados pela desgraça alheia seletivamente abordada. Preocupa-se em reconstruir o crime ocorrido de acordo com o interesse da empresa jornalística.

O que muito se indaga é acerca da cobertura da mídia no Tribunal do Júri. O questionamento se estabelece ao analisar que, ao cumprir o papel informativo, a mídia não estaria apenas executando o seu dever perante os direitos e garantias fundamentais, nem mesmo visando apenas manter a integralidade do princípio da publicidade processual.

Não existe dúvida de que os meios de comunicação cumprem o seu papel informativo, mas não se pode esquecer do exato objetivo do legislador constituinte ao estabelecer a publicidade e o não sigilo dos atos processuais como regra.

Cumprindo o princípio do devido processo legal, os atos processuais são inicialmente públicos, pretendendo, assim, garantir a proteção das partes contra juízos arbitrários, parciais e discretos e exercer o controle público sobre o judiciário.

O princípio da publicidade dos atos processuais atende não só ao interesse das partes, as, paradoxal e complementarmente, também ao interesse público. É a necessidade do controle do processo pelas partes e pela opinião pública que determina a existência do princípio da publicidade processual. Assim, protege as partes de abusos, arbítrios e prepotências dos agentes do Estado; protege o juiz ao permitir que a sociedade tenha uma exata noção de sua atuação; e, por fim, protege a coletividade, ao permitir o controle dos atos processuais e sua consonância com os objetivos constitucionais. 52

A publicidade mediata do processo, ainda sob o efeito da mídia em seu strictu senso, deve ser repassada com reservas e cercada de todos os cuidados. Reitera-se que, ainda munidos de conhecimento sobre caso, os cidadãos não têm acesso aos autos, não podendo checar a veracidade das informações prestadas.

Formada uma convicção errônea embasada em premissas falsas exacerbadas pela mídia, deixa-se de contribuir para a garantia de direitos fundamentais e passa-se a ser mais uma violação a outros direitos individuais, sem a necessária neutralidade e objetividade exigidas pela Constituição Federal, evidenciadas claramente em matérias do Tribunal do Júri e do processo penal.53

Vive-se hoje um contrassenso: a publicidade, garantia que integra a do devido processo legal, tem por função assegurar que o processo se desenvolva com justiça, transparência e, sobretudo, imparcialidade. Todavia, a publicidade mediata de determinados processos, quando exercida de modo irregular, ou seja, sem respeito à objetividade, para ter por consequência justamente o efeito contrário, ensejando a produção de processos injustos e parciais. 54

A dúvida gerada em torno da imparcialidade dos jurados é causa, inclusive, de superação das regras de competência. O desaforamento, no Júri, altera o julgamento para outra comarca, agindo em prol de afastá-lo de locais onde ele havia sofrido exploração sensacionalista da mídia, em uma tentativa de manter invictos os princípios norteadores do plenário como, incialmente, a presunção de inocência e a imparcialidade dos jurados. 55

Como é sabido, a tecnologia avança diariamente. Com o enorme poderio dos órgãos de comunicação pós-modernos, os crimes midiáticos ensejam no país inteiro, mobilizando-o em prol da mesma causa e fazendo com que a figura do desaforamento passe a perder o seu efeito originário. 56

A população, enfurecida e impulsionada pelos apelos midiáticos sobre o crime, vai às ruas e às redes sociais em manifestações de repúdio. A vítima é exaltada perante a criminologia do “nós”, mostrando esta tratar-se de uma pessoa do bem, que teve a sua vida acabada por um criminoso frio, sanguinolento e cruel, visando à criminologia do outro.

Por trás destas políticas e práticas contraditórias, existem enquadramentos criminológicos diametralmente opostos entre si, em aspectos cruciais. Existe uma criminologia do Eu, que caracteriza o criminoso como consumidores normais, racionais, assim como nós; e existe uma criminologia do Outro, do excluído, do ameaçador, do estranho, do marginalizado, do revoltado. Uma é invocada para banalizar o crime, para mitigar os medos desproporcionais e para promover ação preventiva. A outra funciona para demonizar o criminoso, para expressar simbolicamente os medos e ressentimentos populares e para promover apoio ao poder punitivo estatal.57

Em vista ao crime de grande repercussão ocorrido no dia 29/03/2008, uma criança, de nome Isabella Nardoni, caiu do sexto andar de um prédio em São Paulo. Alegando não saberem detalhes do crime, o pai e a madrasta da menina cogitaram a possibilidade de uma terceira pessoa ter adentrado e cometido o delito.

Sendo os únicos presentes no local e momento do crime, receberam o status de principais suspeitos de matarem a menina, embora negassem veemente a autoria delitiva. Isto se impôs fundamentado na rápida e branda investigação realizada pela mídia, tomando a frente da função policial e pré-determinando o ocorrido.

Não satisfeita na conclusão taxativa e superficial, esta vinculou e tornou público todo o enredo criado fictamente sobre o crime, convencendo e incentivando a população a manifestar a sua indignação. Sem demora, aglomerados tomaram conta das portas das delegacias, das praças e avenidas principais e da residência do casal, exigindo a punição.

A opinião pública seria, pois, o consenso genérico cristalizado em torno dos temas discutidos na esfera pública. Em outras palavras, a opinião pública não é, segundo Habermas, a simples soma de opiniões individuais, mas sim a opinião geral constituída por meio do consenso alcançado a partir das possibilidades reais de discussão de temas de interesse comum na esfera pública.58

O juiz que proferiu a sentença final condenatória dos acusados mencionou a sua perplexidade com tamanha revolta da população com o crime e com os acusados no país inteiro.

[...] tal situação teria gerado revolta à população não apenas desta Capital, mas de todo o país, que envolveu diversas manifestações coletivas, como fartamente divulgado pela mídia, alpe de ter exigido também um enorme esquema de segurança e contenção por parte da Polícia Militar de São Paulo na frente das dependências deste Fórum Regional de Santana durante estes cinco dias de realização do presente julgamento, tamanho o número de populares e de profissionais da imprensa que para cá acorreram.59

Ao exemplo do caso aludido, não se perdendo de vista outros acontecimentos que se tornaram alvo da mídia, a forte influência midiática sobre população faz com que esta trabalhe com uma única verdade incontestável. Antes mesmo de encerrada a colheita de provas na primeira fase processual, o casal foi condenado moralmente e odiado por um país inteiro. A antecipação da punição por meio do espetáculo público se consagra no plenário.

De grande repercussão social, o crime gerou inegável comoção e insegurança na sociedade brasileira, até mesmo muito além das fronteiras do país, impondo ao Poder Judiciário o dever de resgatar a tranquilidade de uma coletividade consternada e garantir a credibilidade da Justiça, por meio da segregação cautelar dos denunciados.60

Composto, teoricamente, por pessoas do povo, leigas, “pares” do acusado, o julgamento se inicia. Caminhando de acordo com princípio constitucional, ao adentrar o plenário o jurado deve extinguir todas as prévias rotulações, opiniões públicas e pessoais sobre o condenado, embasando os seus votos apenas na conclusão obtida através das provas constantes nos autos ou do sustentado pelas partes.

Não possuindo nenhuma preparação técnica para exprimir algum juízo de valor mais profundo e coerente, o jurado, assegurado pelo sigilo da votação e pela não fundamentação de seu veredicto, claramente viola diversos princípios garantidores. De acordo com o renomado professor de processo penal e advogado atuante no Tribunal do Júri, Rodrigo Bello61, a presunção de inocência não acontece no plenário. Prosseguiu, apontando que não só por influência da mídia, mas sim pelo povo brasileiro não possuir maturidade para aceitar esta conjectura, uma vez que absorve a informação mesmo que infundamentada e se institui como o “eu”, os “nós” julgando os “eles”.

Canalizada pela mídia, a vingança contra determinados grupos humanos torna-se viável e inquestionável sob a visão do jurado que se vê na posição de fazer justiça em prol da sociedade. Na maioria das vezes, cego pelo clamor público acerca da condenação, adentra o julgamento já com a firmeza de seu voto, sem o menor aspecto imparcial e pouco se importando com o que será ali produzido e apresentado.

Ignora-se completamente a função originária do Júri, visto que os jurados não enxergam o acusado como seu par. Talvez este realmente não seja, visto que, nos dias atuais, nos deparamos com o receio dos cidadãos comuns para ocuparem voluntariamente o conselho de sentença. A importância dessa ocupação é tão pouco abordada que acaba gerando interesse apenas daqueles que já têm conhecimento dos proveitos que poderão ser usufruídos a partir de sua participação.

Além disso, vale destacar que, aos poucos, os verdadeiramente interessados em fazer jus à garantia do Tribunal do Júri, sofrem também, em sua grande maioria, uma influência indireta nos seus votos. Certo grupo tido como maioria, conforme abordado nos tópicos anteriores, e formadores de opiniões, engole aqueles que dela discordam. 62

Visto tamanha atrocidade cometida pelo acusado, diante da análise já conformada da opinião pública majoritária, quem seria capaz de analisar o crime de acordo com diferentes pontos de vista? Quem ignoraria toda uma repercussão midiática e social, pela dúvida de deixar sem punição um possível autor, apenas por não visualizar perfeitamente provas em plenário, para a condenação? Ousa-se assegurar que praticamente ninguém teria a audácia. Não por não possuir ideia contrária à maioria, mas por ser discriminado pelo meio em que vive.

A influência da mídia tem um poder devastador. Conclui-se que, além do poder direto, pode-se perceber como, indiretamente, a opinião pública e, consequentemente, a decisão dos jurados é movida de acordo com a abordagem capitalista e parcial que os meios de informação e comunicação exibem o crime minuciosamente selecionado para virar enredo. 63

Ainda que admitida a interferência legislativa para proibir o anonimato para impor o direito de resposta e a indenização por danos morais, patrimoniais e à imagem, para preservar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas e, igualmente, assegurar a todos o direito de acesso à informação, conclui-se que não tange suficiência para a esfera criminal, principalmente no Tribunal do Júri.64

Por fim, sem perder de vista a importância de manter a sociedade conectada ao Judiciário e ao julgamento de seus pares, critica-se o controle inexistente sobre o limite midiático na abordagem dos conteúdos perante a sociedade. Muito embora o Tribunal do Júri seja uma instituição destinada à prestação e garantia dos direitos fundamentos e imprescindível para a democracia, este tem se apresentado como um verdadeiro dispositivo de violação, de exclusão e de opressão.

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