Sumário:INTRODUÇÃO - 1 INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS - 1.1 Interesses difusos - 1.2 Interesses coletivos - 1.3 Interesses individuais homogêneos - 2 TUTELAS JURÍDICAS DE INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS - 2.1 As ações coletivas previstas no CDC - 2.1.1 A Ação Popular - 2.1.2 A Ação Civil Pública - 3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E A TUTELA JURISDICIONAL DOS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS – CONCLUSÃO – REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Os direitos transindividuais do consumidor em juízo e os princípios fundamentais são interligados por meio de um sistema de normas complexas que visa proteger o consumidor em sua condição de vulnerável e, por isso, trata desigualmente os desiguais nas ações judiciais que versem sobre relações de consumo. O Código de Defesa do Consumidor [01] trouxe diversas inovações no ordenamento jurídico brasileiro, seja nos casos de interesses privados, ou de interesses públicos, a fim de efetivar essa proteção especial.
O CDC trouxe conceitos de consumidor e fornecedor, práticas abusivas das relações de consumo, princípios das relações de consumo e toda uma nova orientação procedimental para a defesa dos chamados direitos transindividuais que afetou, inclusive, textos procedimentais consolidados como a Lei da Ação Civil Pública [02] e o Código de Processo Civil (CPC).
Com o escopo de ampliar a proteção dos interesses coletivos lato sensu, o CDC conceituou os interesses transindividuais como difusos, coletivos e individuais homogêneos, que, com a abrangência do dispositivo com que a lei descreve, também, o consumidor equiparado, alargou as possibilidades da tutela protetiva do Estado aos direitos lesados ou ameaçados de lesão em relações de consumo.
Dispositivos legais como a LACP e a Lei da Ação Popular [03] encontraram no CDC os conceitos e preceitos de que precisavam para, com seu caráter intersubsidiário, abraçar todas as possibilidades de proteção aos interesses transindividuais. Mesmo com o sopesamento de princípios e normas, a tutela do interesse do consumidor, e sua condição de cláusula pétrea e de princípio da ordem financeira constitucional, somados ao princípio da dignidade humana, que pretere o interesse do capital reinante na sociedade capitalista, se sobressaem perante os demais.
Versando sobre esses temas, tanto na esfera privada, como na pública, e visando um esclarecimento acerca das reais possibilidades de defesa dos direitos transindividuais dos consumidores em juízo, bem como dos deveres de proteção e de proibição de insuficiência do Estado nos julgados que tratarem da matéria, este artigo busca alguns esclarecimentos oriundos da jurisprudência e da doutrina em face de uma prática jurídica ainda em fase de efetiva consolidação no processo brasileiro: as ações coletivas.
1 INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
Segundo a acepção do termo, transindividual refere àquilo que transcende o indivíduo, que vai além do caráter individual da percepção do interesse existente. O ordenamento jurídico brasileiro tem recente em sua história o tratamento aos direitos transindividuais e a sua proteção e previsão quanto à efetiva tutela jurisdicional, pois seu reconhecimento como ramo do direito privado ocorreu de maneira gradual no procedimento legislativo nacional.
O Código Civil de 1916 tratava, basicamente, das questões individuais de direito civil, do inter-relacionamento entre particulares e suas respectivas obrigações, não dando azo à proteção dos direitos e interesses relativos a grupos de pessoas de maneira eficaz e efetiva. Nem mesmo o Código de Processo Civil (CPC) trata de maneira abrangente as possibilidades de se buscar a prestação jurisdicional do Estado de maneira coletiva.
"Nos últimos anos, tem-se reconhecido que existe uma categoria intermediária de interesses que, embora não sejam propriamente estatais, são mais que meramente individuais, porque são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas [...]" [04]. Esses direitos, apesar de transcenderem o caráter individualista de seus interessados, não podem ser considerados interesses de direito público, pois não contrapõem um interesse do Estado ao interesse do indivíduo.
MAZZILLI [05], em relação à evolução desses interesses transindividuais no ordenamento jurídico brasileiro, diz:
No Brasil, a defesa dos interesses de grupos começou a ser sistematizada com o advento da Lei n. 7.347/85 – Lei da Ação Civil Pública (LACP), e, em seguida, com a Lei n. 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor (CDC), que distinguiu os interesses transindividuais em difusos, coletivos em sentido estrito, e individuais homogêneos.
É basicamente sobre os direitos transindividuais descritos no CDC que tratará o presente artigo, pois ainda pouco eficaz a sua distinção para efeitos de proteção e de tutela a serem exercidos pelo Estado em relação aos grupos com interesses coletivos lato sensu e aos titulares desses direitos.
O CDC descreve que "a defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo" [06], e seu procedimento remete à LACP, que, em seu art. 1º, destaca o âmbito de sua aplicação, que visa a defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas, a qual, de igual forma, poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Os interesses transindividuais também podem ser chamados de interesses coletivos lato sensu, eis que compartilhados por grupos de pessoas que tenham em comum um direito gerado a partir do mesmo fato ou ato jurídico. O surgimento da necessidade da proteção do Estado a esses interesses transindividuais surgiu como meio de garantir não apenas a eficácia dos direitos fundamentais dos indivíduos como integrantes de um coletivo lesado ou ameaçado de lesão a um bem jurídico seu, mas também a efetividade da tutela jurisdicional a todo o coletivo detentor do interesse, bem como a economia e a celeridade processual a fim de garantir outro princípio: o da razoável duração do processo.
Coletividades de indivíduos com interesses comuns oriundos de um mesmo fato, por exemplo, ao terem sua pretensão julgada em um processo coletivo, têm mais chances de ver sua lide composta em tempo razoável do que se proporem ações individuais, além de ficarem restritas a disparidades em julgados diferentes sobre um mesmo objeto, minimizando, assim, a injustiça entre componentes de um mesmo grupo com interesses coletivos lato sensu.
Em relação aos deveres de proteção estatal do indivíduo perante terceiros, ANDRADE [07] diz:
Os preceitos relativos aos direitos fundamentais dirigir-se-iam em primeira linha às relações entre os particulares e os poderes públicos, mas estes, para além do dever de os respeitarem (designadamente de se absterem de os violar) e de criarem as condições necessárias para a sua realização, teriam ainda o dever de proteger contra quaisquer ameaças, incluindo as que resultam de atuação de outros particulares.
Compreendem, portanto, os atos das relações de consumo que tenham como participantes entes privados na condição de fornecedores ou prestadores de serviço; possibilidade que abrange, também, os entes estatais que figuram como fornecedores ou prestadores de serviços, consoante o conceituado no art. 3º do CDC.
Nos casos de interesses transindividuais, a ordem jurídica reconhece a necessidade de que o acesso individual dos lesados à Justiça seja substituído por um processo coletivo, que, segundo MAZZILLI [08], "não apenas deve ser apto a evitar decisões contraditórias como ainda deve conduzir a uma solução mais eficiente da lide, porque o processo coletivo é exercido de uma só vez, em proveito de todo o grupo lesado".
José Afonso da SILVA [09] diz que a ação popular "há de visar a defesa de direito ou interesse público. O qualificativo popular prende-se a isto: defesa da coisa pública, coisa do povo (publicum, de populicum, de populum)". Tal encontra guarida no art. 5º, LXXIII da CF, que reza: "qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência". Pela letra da Lei, está restrita ao interesse público a condição para que o cidadão proponha a ação popular, não incidindo sua legitimidade ao interesse privado de caráter coletivo [10].
Outra inovação que o CDC trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro foi dividir os direitos, ou interesses, transindividuais dos consumidores em um subgrupo, composto por interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, classificados consoante o grupo de indivíduos atingidos, a divisibilidade do interesse e a origem da lesão ou ameaça à lesão a direito do grupo. Tal divisão encontra-se elencada no art. 81 do dispositivo legal, que visa legitimar a defesa coletiva em juízo.
1.1 Interesses difusos
Dentre os interesses transindividuais descritos no parágrafo único do art. 81 do CDC, o primeiro arrolado refere-se aos direitos ou interesses difusos, como sendo "os transindividuais de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato".
Ressalte-se que, assim como descrito ao final do dispositivo introdutório do presente capítulo, as características dos interesses difusos levam em conta, respectivamente, a divisibilidade do interesse (interesses de natureza indivisível), o grupo de indivíduos atingidos (pessoas indeterminadas) e a origem da lesão ou da ameaça de lesão a direito (ligadas por circunstâncias de fato). MAZZILLI [11] diz que, "melhor do que pessoas indeterminadas, são antes pessoas indetermináveis, entre as quais inexiste vínculo jurídico ou fático preciso".
Um exemplo de interesses difusos, que vem a compartilhar com a polêmica a ser invocada em capítulo posterior no presente artigo, é a da propaganda enganosa ou abusiva, prevista nos arts. 6o, IV e 37 do CDC, que atinge um número indeterminado de pessoas, sendo que seus efeitos são igualmente indetermináveis em relação aos espectadores como um todo. Como destacar exatamente quais as pessoas lesadas por uma propaganda enganosa? A única maneira seria constatando quais, entre os espectadores, consumiram o produto cuja informação falsa fora veiculada na propaganda, mas, nesse caso, passaria de interesse difuso para interesse individual homogêneo [12].
A propaganda, segundo o CDC, pode ser enganosa ou abusiva. É "enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços" [13]; e "abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança" [14].
Tanto a pessoa que somente assistiu à propaganda, como aquela que comprou o produto o qual a propaganda erroneamente descrevera, como todas as pessoas atingidas pelo vício ou fato do produto comprado em função do anúncio veiculado são considerados consumidores lesados e detentores de uma pretensão jurídica fruto de um interesse difuso (independentemente dos casos de direitos individuais homogêneos). Porém, não se pode determinar exatamente até que ponto cada pessoa foi atingida pela propaganda abusiva ou enganosa, nem mesmo exatamente quem foi atingido e de que maneira específica isso ocorreu. Tal caso é, exatamente, exemplo de interesses difusos como descrito pelo CDC.
O parágrafo único do art. 2º do CDC, ampliando o conceito de consumidor, descreve como consumidor equiparado, e, portanto, detentor de direitos e interesses referentes às práticas abusivas ocorridas em relações de consumo, "a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo". Em face de tal distinção, MAZZILLI [15] refere-se aos detentores de interesses difusos como sendo
os destinatários de propaganda, especialmente aquela divulgada nos veículos globais de comunicação (rádio, televisão, jornais, painéis publicitários em locais públicos etc.), pois a mera propaganda já cria deveres e direitos numa provável relação de consumo, seja quando tem caráter enganoso ou abusivo, seja quando promete condições que vinculam o proponente.
Não descrito, no contexto acima, mas de suma importância para os dias atuais, estão as propagandas veiculadas através da internet, em forma de spam, hostsite, pop ups, links e outras diversas maneiras as quais, remetendo diretamente ao conceito legal de propaganda abusiva, tornam impossível ao usuário (sendo doravante assim denominado aquele que navega na internet e, principalmente, detém um protocolo de IP [16] através de e-mail ou site pessoal) se esquivar ou impedir o seu recebimento. Patrícia PECK define: "hostsites: termo que define formato de publicidade que consiste na formação de um site de tamanho reduzido com tempo de vida curto" [17]; "spam: ato praticado por pessoa ou empresa que envia e-mails não solicitados, tendo ou não objetivos maliciosos, todos porém invadindo a privacidade do destinatário, perturbando sua paciência" [18].
Atualmente, a maioria das pessoas de uma mesma família, que possuam um computador pessoal, compartilham o mesmo aparelho. Não obstante o fato de que cada um pode ter seu protocolo de IP, seu e-mail pessoal, todas as pessoas usuárias da internet, não importando se proprietário direto de um computador ou não, são atingidas pela propaganda digital. Fato que amplia a condição de indeterminados os grupos atingidos pela veiculação de propaganda através da internet, bem como da impossibilidade de se coibir tal forma de divulgação de informação abusiva a qual não fora solicitada pelo usuário.
1.2 Interesses coletivos
O CDC descreve como sendo "interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, [...] os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base" [19]. As características dos interesses coletivos, assim como os difusos, levam em conta, respectivamente, a divisibilidade do interesse (interesses de natureza indivisível), um grupo de indivíduos determinados atingidos (categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com parte contrária) e a origem da lesão ou da ameaça de lesão a direito (ligadas por uma relação jurídica base).
Nos casos de interesses coletivos stricto sensu, "a lesão ao grupo não decorrerá propriamente da relação fática subjacente, e sim, da própria relação jurídica viciada que une todo o grupo" [20], como, por exemplo, um contrato de adesão que contenha cláusulas abusivas. O grupo de contratantes estará ligado por uma relação jurídica básica comum, sendo determinado o grupo e a relação jurídica, mas não o tamanho, a extensão da lesão sofrida por cada contratante individualmente.
Para individualizar o dano ocorrido em face de um interesse coletivo stricto sensu pleiteado em juízo de forma coletiva, se faz necessária a respectiva liquidação de sentença, a ser pleiteada individualmente por cada um dos interessados que fizeram parte do pólo ativo do processo de conhecimento coletivo. Dessa maneira, somente, um interesse coletivo pode ter identificados os interesses individuais de cada uma das partes atuantes na demanda, caracterizando, assim, a presença de interesses individuais homogêneos.
1.3 Interesses individuais homogêneos
Os interesses individuais homogêneos são "assim entendidos os decorrentes de origem comum" [21]. MAZZILLI [22] diz que, "para o CDC, interesses individuais homogêneos são aqueles de grupo, categoria ou classe de pessoas determinadas ou determináveis, que compartilhem prejuízos divisíveis, de origem comum, normalmente oriundos das mesmas circunstâncias de fato".
Na acepção do termo, os interesses individuais homogêneos são aqueles individualizáveis consoante o direito concernente a cada componente de um grupo definido, cujas partes estão solidamente ligadas pela mesma natureza. Segundo GRINOVER [23]:
A origem comum pode ser de fato ou de direito e, como observou Kazuo Watanabe, a expressão não significa, necessariamente, uma unidade factual e temporal. As vítimas de uma publicidade enganosa veiculada por vários órgãos de imprensa e em repetidos dias de um produto nocivo à saúde adquiridos por vários consumidores num largo espaço de tempo e em várias regiões têm, como causa de seus danos, fatos de uma homogeneidade tal que os tornam a ‘origem comum’ de todos eles".
Humberto THEODORO JÚNIOR [24] diz que "os interesses individuais homogêneos tanto podem ser tutelados individualmente, em ações movidas pelo ofendido, como coletivamente, em ações de grupo, como aquelas promovidas por sindicatos e associações", o que expressa o duplo caráter do interesse: individual e coletivo lato sensu.
Um exemplo já citado de interesses individuais homogêneos é o do consumidor que comprou um produto cuja propaganda descrevia erroneamente uma qualidade, ou não informava sobre seu caráter nocivo à saúde. Todos os consumidores que compraram o produto em função da veiculação do comercial enganoso possuem um interesse individualizável, pois aquele que comprou apenas um produto terá o interesse diferente daquele que comprou dois e assim sucessivamente. Da mesma maneira, quem comprou um produto que ainda não ocasionou o fato danoso decorrente de seu defeito oculto terá pretensões diversas daquele cujo produto comprado ocasionou um fato danoso. "Cada indivíduo lesado tem direito próprio a exercitar individualmente contra o fornecedor" [25], nos casos de direitos individuais homogêneos.