2 TUTELAS JURÍDICAS DE INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
Em se tratando de tutela jurisdicional de interesses transindividuais, ou coletivos lato sensu, a primeira questão que surge é em relação à legitimidade para figurar no pólo ativo da ação, ou a legitimatio ad causam. Normalmente, em interesses individuais, o próprio indivíduo lesado possui a legitimidade para postular em juízo um direito seu, pessoal. THEODORO JÚNIOR [26] diz que "a legitimação ativa caberá ao titular do interesse afirmado na pretensão, e a passiva ao titular do interesse que se opõe ou resiste à pretensão".
A legitimidade de parte é condição da ação, e, como tal, sua ausência acarreta a extinção do processo sem o julgamento do mérito [27]. Mas há de se fazer uma distinção entre legitimação ordinária e extraordinária, que surge auxiliando na compreensão do presente estudo sobre direitos transindividuais. A já explicada legitimação do titular do interesse para pleitear pessoalmente em juízo é conhecida, pela doutrina, como legitimação ordinária [28].
Em razão dos diversos casos que caracterizam cada lide processual em particular, CARNELUTTI [29] diz:
Se uma lide fosse simplesmente um conflito intersubjetivo de interesses, seus sujeitos seriam sempre e simplesmente os dois homens ou dois grupos aos quais pertencem os dois interesses em conflito; mas a coisa se complica refletindo-se que para constituir a lide se tem que acrescentar a cada interesse a pretensão ou a resistência, que são, como veremos, atos jurídicos. [...] A dificuldade oposta por tais fenômenos à construção do conceito de sujeito da lide se supera do mesmo modo como se constrói o conceito da relação jurídica, compondo, com a pessoa a quem pertence o interesse e com a outra pessoa a quem remonta a vontade, um grupo ao qual a teoria geral dá o nome de pessoa complexa. Também o sujeito da lide pode ser, portanto, uma pessoa simples ou uma pessoa complexa igual ao sujeito da relação jurídica.
A legitimação extraordinária trata dos casos em que alguém, em nome próprio, defende interesse alheio, em consonância com expressa autorização legal. Configura uma substituição processual, diferentemente de representação processual, e pode ocorrer, por exemplo, com o Ministério Público (MP) nas ações a título coletivo de que tem legitimidade por força de lei. [30]
Destarte, a legitimação extraordinária "não pode prejudicar ou empecer o poder da vontade dos titulares dos direitos subjetivos, mesmo porque, não se pode esquecer, [...] não importa a ‘expropriação do poder de disposição e faculdade de valoração do substituído’" [31]. A substituição deve ser de caráter voluntário por parte do substituído, que constitui seu órgão de classe, ou mesmo o MP, como seu substituto por livre e espontânea vontade.
Existe, em parte da doutrina, o entendimento de que, quando ocorrer o fato de alguém defender interesses alheios e próprios simultaneamente em ações coletivas, existiria uma legitimação anômala de tipo misto, como, por exemplo, os casos das associações de classe, em que o substituto é parte integrante do grupo de interessados [32]. Assim, MAZZILI diz que "legitimação extraordinária há, somente, nas ações civis públicas que versem a defesa de interesses individuais homogêneos, pois, nesses casos, os legitimados ativos para as ações de caráter coletivo não são os mesmos titulares dos interesses divisíveis dos indivíduos integrantes do grupo lesado" [33].
2.1 As ações coletivas previstas no CDC
"Estas ações prestam-se basicamente à defesa de interesses transindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos). Por meio delas, alguns legitimados substituem processualmente a coletividade de lesados (legitimação extraordinária)" [34]. A ação coletiva visa a celeridade e a economia processual, bem como a facilitação da instrução e da fase probatória do processo, que ficariam excessivamente penosos, tanto para as partes como para o órgão instrutor, se o exercício da tutela jurisdicional se desse individualmente a todos os interessados.
Também, a já citada disparidade nos julgados individuais de interesses coletivos lato sensu traria um sentimento de injustiça, o qual, com as ações a título coletivo, se reduzem, ou até mesmo se extinguem. O direitos coletivos lato sensu, ao terem a tutela jurisdicional exercida em ações coletivas, diminuem a possibilidade da desistência de indivíduos frente às dificuldades e burocracias do procedimento processual, o que, em caráter individual, pode se tornar comum, caracterizando uma restrição do princípio do acesso à justiça.
O CDC trata das ações coletivas para a defesa dos interesses individuais homogêneos nos arts. 91 a 100, segundo os quais "os legitimados de que trata o art. 82 poderão propor, em nome próprio e no interesse das vítimas ou seus sucessores, ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos" [35]. Cria, portanto, um novo instituto processual, que é a ação civil coletiva.
O procedimento da ação civil coletiva do CDC refere-se aos casos de defesa de interesses individuais homogêneos que, como tais, precisam ter individualizadas as indenizações pelos danos sofridos segundo a gravidade em que cada integrante do grupo foi atingido, através de liquidação de sentença, bem como a sua conseqüente execução. As demais possibilidades dos casos que tratam de interesses difusos e coletivos [36], além da previsão do CDC, serão regidas pelas leis que tratam da ação civil pública e da ação popular.
Para o CDC, a legitimidade ativa para a propositura de ações coletivas é concorrente entre o MP, a União, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal, certas entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta e as associações civis que tenham por fim a defesa dos interesses de consumidores [37].
Os interesses individuais homogêneos, ao contrário dos difusos e dos coletivos, não necessitam ser exercidos em juízo de maneira coletiva, e, caso se requeira individualmente a tutela jurisdicional, a pré-existência de uma ação coletiva não induz a litispendência [38]. Em relação aos interesses coletivos e aos difusos, esses também podem ser exercidos em juízo a título coletivo sem que induzam litispendência ao exercício individual da tutela jurisdicional, pelo fato de, em ambos os casos, serem indivisíveis.
Nas ações coletivas, "entre o órgão substituto e os indivíduos substituídos tem de haver um vínculo necessário, seja de ordem pública ou privada" [39], sendo este último autorizado pela CF, que preceituou que "as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente" [40]. Como a mesma constituição proibiu a associação compulsória, presume-se que às associações é vedada a defesa judicial de interesses referentes a não associados [41].
THEODORO JÚNIOR [42], nesse sentido:
Há possibilidade, também, de a instituição ter sido concebida para defesa, no âmbito do interesse de seus associados, tanto de direitos individuais como de direitos difusos e coletivos. Nessa conjuntura, a associação atuará, por ação civil pública, na defesa de interesses que, naturalmente, ultrapassarão o de seus associados.
A letra do CDC, no art. 95, diz que "em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados", sendo, assim, individualmente indeterminada. ARAÚJO FILHO [43], nesse sentido:
Por isso, para que seja realmente coletiva a ação respeitante a interesses individuais, é indispensável que seja(m) formulado(s) pedido(s) individualmente indeterminado(s), que desprezem e necessariamente desconsiderem as peculiaridades agregadas à situação pessoal e diferenciada de cada interessado, como diz a doutrina, para permitir a prolação da sentença genérica prevista em lei.
Exemplificando, a sentença declara o requerido responsável pelo dano causado a um grupo de autores e, conseqüentemente, condena-o a indenizá-los por isso de maneira genérica. O quantum indenizatório a cada um dos autores dependerá de liquidação em processo autônomo e de caráter individual, bem como sua execução, eis que impossível uma execução coletiva para este caso previsto no CDC.
Prova da intenção do CDC em promover a economia e a celeridade processual também está no seu art. 94, que amplia as possibilidades de atuação no pólo ativo da relação jurídica em processo coletivo, dizendo que, "proposta a ação, será publicado edital no órgão oficial, a fim de que os interessados possam intervir no processo como litisconsortes, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social por parte dos órgãos de defesa do consumidor". Abre-se, dessa maneira, espaço para o ingresso de interessados individuais na mesma condenação genérica, mas sem que estes possam formular pedidos individualizados e diversos da inicial proposta pelo coletivo.
Em relação à coisa julgada em ações coletivas regidas pelo CDC, esta terá eficácia erga omnes nos casos de interesses difusos, exceto "se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova" [44]. Terá, porém, em casos de interesses coletivos stricto sensu, eficácia "ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas", nos termos do inciso I do art. 103 [45]. Em ambos os casos, os efeitos da coisa julgada "não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe" [46].
Por fim, em se tratando de interesses individuais homogêneos, a coisa julgada em processos coletivos terá eficácia "erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores" [47]. "Em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual" [48], em face do já referido caráter individual do interesse juridicamente pleiteado. Dessa forma, o réu que lesou direitos individuais homogêneos poderá figurar no pólo passivo de qualquer ação proposta individualmente por pessoa que, mesmo não tendo figurado na ação coletiva que o condenou, é titular de um interesse individual idêntico ao do grupo, evitando, assim, a necessidade de novo processo de conhecimento e de nova instrução processual sobre fato já apreciado e comprovado judicialmente.
2.1.1 A Ação Popular
Dentre as formas de ações coletivas previstas no ordenamento jurídico brasileiro, a Ação Popular surgiu com o advento da Lei nº 4.717 de 1965, a chamada Lei da Ação Popular (LAP).
Qualquer cidadão é legitimado para propor a Ação Popular, a fim de pleitear a anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista ou mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, instituições ou fundações [49]. A pessoa jurídica, por sua vez, não tem legitimidade para propor ação popular [50].
Originalmente criada para defender o interesse público, refere-se à possibilidade de ter pessoas privadas dentre os sujeitos passivos da lide processual [51]. "O autor popular não defende interesse próprio mas sim o da comunidade. Esta é que é o verdadeiro credor. [...] o autor age como verdadeiro substituto do Poder Público" [52].
Juarez FREITAS [53], em relação à capacidade ativa nesses casos, diz:
[...] se é certo que a Constituição não conferiu legitimidade extraordinária expressa a associações em defesa do patrimônio público ou da moralidade administrativa, não é menos verdade que, ao permitir a qualquer cidadão o ingresso da ação popular, outorgou legitimidade abarcante para a proteção de interesses difusos.
[...]
De sua vez, o Ministério Público necessariamente deve atuar como custus legis na ação popular. Não possui para esta a legitimação ad causam. [...] autoriza-se que qualquer cidadão, bem como o representante do Ministério Público, promova o prosseguimento da ação (art. 9o), se houver desistência.
O pedido, na ação popular, deve limitar-se à anulação de ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente ou ao patrimônio cultural, casos em que o interesse predominante é difuso ou coletivo, mas jamais será o individual homogêneo.
Apesar de o CDC fazer menção expressa somente à Ação Civil Pública, a Lei de Improbidade Administrativa, juntamente com a Lei da Ação Civil Pública, da Ação Popular, do Mandado de Segurança Coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Idoso, compõem um microssistema de tutela dos interesses transindividuais e, sob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se e subsidiam-se. [54]
Por não atender interesses de caráter privado, mas somente coletivos, a ação popular dispensa seu autor do pagamento de custas processuais e ônus sucumbenciais, mesmo quando improcedente o pedido, salvo nos casos de comprovada má-fé [55]. "Se tal suceder, faz-se necessária a extinção do processo sem julgamento do mérito, derivada da falta de interesse de agir [56], suportando o litigante de má-fé, aí, sim, as custas e os ônus sucumbenciais" [57].
Existe a possibilidade de interesse público do consumidor, o qual pode ser incluído na tutela protetiva da ação popular. Consoante MACEDO JÚNIOR [58]:
Conforme afirmado, tanto a ação popular como a ação civil pública são instrumentos de tutela dos direitos e interesses difusos e coletivos, razão pela qual o dispositivo citado [art. 117 do CDC] lhes é aplicável. Evidentemente, a reversão das indenizações por danos aos interesses difusos é uma das hipóteses em que é aplicável o Título III do CDC à Lei de Ação Popular.
Pela própria amplitude do conceito de interesses difusos, o cabimento de ações populares para os casos regulados pelo CDC faz necessária a existência de um interesse público a ser preservado. A exemplo disso, os consumidores de serviços públicos, como os casos de concessões e permissões de serviços públicos instituídos pela Lei n. 8.987/1995, em que "a luta pela eficácia social do princípio da proteção do consumidor de serviços públicos, implica o reconhecimento técnico e fático da vulnerabilidade dos usuários" [59].
Atualmente, a Ação Civil Pública tem maior abrangência quanto à tutela dos interesses em conflito, mas a possibilidade de um cidadão, individualmente, pleitear em juízo a defesa de um direito difuso, faz com que a amplitude da defesa dos direitos e dos interesses da coletividade seja garantida por um maior acesso ao Poder Judiciário.
2.1.2 A Ação Civil Pública
A Lei nº 7.347 de 1985, conhecida como Lei da Ação Civil Pública (LACP), surgiu com a finalidade de disciplinar a ação civil pública de responsabilidade por danos patrimoniais e morais causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, sem prejuízo da ação popular.
A LACP e o CDC se complementam, a ponto de ambas disporem do mesmo dispositivo procedimental [60], sendo que o último, por ser lei ulterior, alterou de forma substancial o texto original da primeira. Tanto que os arts. 110 a 117 do CDC servem com o único propósito de alterar o texto da LACP.
Diferentemente da ação popular, a ação civil pública poderá ter por objeto tanto a condenação em dinheiro como o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer [61], bem como não é permitido ao cidadão comum ser autor da ação, mas somente os entes descritos no CDC [62].
Com relação aos efeitos da coisa julgada em ações civis públicas, de que cuida o art. 16 (erga omnes nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se improcedente o pedido por insuficiência de provas), combinado com o art. 13 da LACP, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista no CDC, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99 da lei de proteção ao consumidor.
ARAÚJO FILHO [63], nesse sentido:
Como o CDC é posterior à LACP, e estabeleceu, entre nós, um inédito sistema processual para as ações coletivas para tutela de interesses individuais homogêneos, suprindo uma carência da Lei da Ação Civil Pública, que estava originariamente voltada às ações relativas aos direitos difusos e coletivos, parece-nos que não pode haver dúvida de que hoje é o art. 103, inciso III, do CDC que rege os efeitos da coisa julgada naquele tipo de ação coletiva, até por uma relação de especialidade desta última norma (lex specialis derogat generali).
Em anterior referência ao art. 103, III do CDC, ressalte-se que o mesmo descreve a eficácia da coisa julgada para os casos de ações que versarem sobre direitos individuais homogêneos como sendo erga omnes apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, e não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva [64].
Por se complementarem sibsidiariamente, o CDC e a LACP abrangem na totalidade a tutela jurisdicional que visa proteger os interesses coletivos lato sensu. Se, no CDC, o procedimento tem descrito no seu título a defesa dos interesses individuais homogêneos, na LACP a previsão abrange os interesses difusos e coletivos. "Vai parecer hiperdimensionada também esta última proposição, na medida em que a aplicação processual da LACP e do CDC, pelo sistema atual, é manifestamente integrativa, reciprocamente complementar, inexistindo uma relevante e efetiva dessemelhança a ser superada" [65].
MAZZILLI diz que, "nas ações civis públicas e coletivas, se os danos forem indivisíveis porque difusos, o produto da indenização irá para o fundo previsto no art. 13 da LACP, mas, nas lesões a interesses individuais homogêneos, será oportunamente levantado pelos prejudicados, quando possível." [66] Ambas as leis compartilham diversos textos de artigos, o que não impede a tutela jurídica ou a apreciação por parte do Poder Judiciário de nenhuma lesão ou ameaça a lesão de direito coletivo, consolidados como princípios constitucionais.