Para que o entendimento deste artigo seja completo, irei te explicar o que seria o non bis in idem.
No ordenamento jurídico brasileiro, prevalece que uma pessoa não poderá ser processada pelo mesmo fato duas vezes nem que a persecução da pena lhe seja atribuída múltiplas vezes. Por exemplo: Imagine que um agente X cometeu um crime de homicídio contra a pessoa Y.
Após o fato, o Estado denunciou o agente X para que ele receba a subsunção da pena. Todavia, o Estado decidiu condená-lo 2 (duas) vezes pelo mesmo fato. Ou seja, o agente X responderia por 2 (dois) processos relacionados ao mesmo fato (homicídio contra a pessoa Y).
Já posso te adiantar que isso não pode acontecer.
Mesmo que a nossa Constituição Federal seja omissa ao falar da aplicação do non bis in idem, há julgados do Supremo Tribunal Federal que garantiram ao réu a aplicação do princípio (HC 392.868, HC 86.606, HC 64.158/MG).
Tal princípio é aplicado no nosso ordenamento jurídico graças ao Pacto San José da Costa Rica, que em seu art. 8º alínea 4 diz que:
Art. 8º O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.
Na visão de Fábio Medina Osório (apud GUEDES, 2006, p.1):
“A idéia básica do ne bis in idem é que ninguém pode ser condenado duas ou mais vezes por um mesmo fato. Já foi definida essa norma como princípio geral de direito, que, com base nos princípios da proporcionalidade e coisa julgada, proíbe a aplicação de dois ou mais procedimentos, seja em uma ou mais ordens sancionadoras, nos quais se dê uma identidade de sujeitos, fatos e fundamentos […].”
Pronto! Estando ciente do que é, vamos para a prática.
Será que tal princípio realmente é respeitado? Veremos a partir de agora.
Segundo Hanz Welzel (2001, p. 69)
“diz que a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade são os três elementos que convertem uma ação em delito. ... “Crime, no conceito analítico é fato típico, antijurídico e culpável”
Estando o agente dentro dos requisitos elencados por Hanz, estaremos diante de um crime. Imagino que você já deve ter visto que a depender do crime, há diversos tipos de penas.
Existem crimes que a pena máxima em abstrato é de 4 anos, outros são de 20 anos e assim por diante.
Mas você já parou para pensar como um juiz chega nesses números?
Como a pena é calculada?
Para que possamos entender a contradição do legislador e a afronta do princípio precisaremos dar uma passadinha no assunto da “Dosimetria da pena”
Estes itens são elencados nos arts. 59 e 68 do Código Penal
Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Art. 68 - A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Parágrafo único - No concurso de causas de aumento ou de diminuição previstas na parte especial, pode o juiz limitar-se a um só aumento ou a uma só diminuição, prevalecendo, todavia, a causa que mais aumente ou diminua.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Uma vez que o agente comete um crime e é condenado por isso, ele receberá a subsunção da pena (ocorre quando a pena é aplicada pelo fato ilícito realizado).
Para isso, será seguido as regras que foram demonstradas para vocês nos arts. supracitados.
Existem 3 fases para a determinação da pena pelo juiz.
1º é analisado qual a pena base a ser aplicada
2ª a existência de atenuantes e agravantes
3ª Causas de diminuição de aumento da pena
Umas dessas regras é a aplicação de agravante em caso de “maus antecedentes”.
Aí está o nosso maior problema e contradição.
O princípio do non bis in idem diz que não podemos realizar a persecução de uma pena que já fora aplicada ao agente, múltiplas vezes.
Ou seja, não podemos “castigar” o agente duas vezes por um fato em que ele já recebeu o seu “castigo”
Mas perceba o que diz o art. 59 do CP
O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
Vejamos o que diz a súmula 636 do Superior Tribunal de Justiça:
Estabelece que “a folha de antecedentes criminais é documento suficiente a comprovar os maus antecedentes e a reincidência”.-
Ora, percebemos com clareza a contradição exposta pelo legislador em respeitar o princípio que inaplicabilidade múltipla da pena ao agente, vejamos no caso concreto:
Um agente X foi condenado pelo crime de furto e cumpriu toda sua pena como determina a lei. Em regra, esse agente não deve mais nada ao Estado e estaria livre para viver a sua vida.
Todavia, esse agente X cometeu um novo crime, dessa vez, o crime de roubo art. 157 cp
Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
Quando o juiz for se utilizar da dosimetria da pena que fora apresentada para vocês logo acima, ele irá utilizar os “maus antecedentes” do crime de furto que o agente já cumpriu para agravar a pena desse novo crime cometido.
Ora, estamos diante de uma afronta ao princípio do non bis in idem.
Uma vez que é utilizado o histórico de um crime que fora cometido para agravar a pena de um crime posterior, estamos diante da aplicação múltipla de sanção pelo Estado ao agente pelo mesmo fato (furto).
Ou seja, o Estado retroage no tempo para utilizar uma condenação que já fora devidamente cumprida pelo agente para agravar o novo crime cometido
Portanto, no final deste artigo você conseguiu entender que, mesmo existindo o princípio, que é utilizado para beneficiar o réu, o Estado não o respeita e todos os dias se demonstra contrário ao Pacto San José da Costa Rica ao realizar a aplicação múltipla das penas aos agentes cometedores dos atos ilícitos.
Bibliografia:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm
https://michellipimmich.jusbrasil.com.br/artigos/321836790/o-principio-do-no-bis-in-idem-no-direito-penal-brasileiro
https://www.conjur.com.br/2017-jun-12/stj-reconhece-bis-in-idem-anula-condenacao-transitada-julgado
https://jus.com.br/artigos/8884/principio-do-non-bis-in-idem
https://www.conjur.com.br/dl/pacto-san-jose-costa-rica.pdf
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-92/proibicao-da-multipla-persecucao-penal-no-sistema-juridico-constitucional-brasileiro/
https://www.conjur.com.br/2019-jan-27/thiagofilippo-maus-antecedentes-podem-ou-nao-eternos
https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=AGRAVANTES+DO+ART.+61+,+II+,+a,+c,+d,+DO+CP
https://ilamartins.jusbrasil.com.br/artigos/121938136/reincidencia-e-maus-antecedentes
https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10728775/inciso-xlvii-do-artigo-5-da-constituicao-federal-de-1988
https://jus.com.br/duvidas/68051/existe-alguma-forma-de-uma-pessoa-limpar-sua-ficha-de-antecedentes-criminais