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Colisão de direitos fundamentais:

direito à vida X direito à liberdade religiosa

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Agenda 16/02/2006 às 00:00

3. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE:

Antes de tratar da aplicação do princípio da proporcionalidade é preciso reafirmar a idéia resumida nas palavras de Steinmetz:

Uma colisão de princípios não se resolve com uma cláusula de exceção nem com um juízo de (in)validez. Requer um juízo de peso. Trata-se da ponderação de bens, com a qual, tendo presente as circunstâncias relevantes do caso e o jogo de argumentos a favor e contra, decidir-se-á pela precedência de um princípio em relação ao outro. [46]

Mais adiante ele completa: essa ponderação se realiza mediante a máxima da proporcionalidade e suas três submáximas ou máximas parciais. [47]Sem dúvida, o princípio da proporcionalidade, também chamado de princípio da razoabilidade, é a técnica mais freqüente na solução de colisão de princípios constitucionais.

O objetivo deste princípio, na concepção de Gentz, é instituir a relação entre fim e meio, confrontado o fim e o fundamento de uma intervenção com os efeitos desta para que se torne possível um controle do excesso. [48]À essa relação meio-fim, Baibrant acrescenta um terceiro elemento, qual seja, a situação de fato, estabelecendo assim a relação triangular fim, meio e situação. [49]

Em uma breve retrospectiva histórica, pode-se visualizar que o princípio da proporcionalidade surge como técnica exclusivamente ligada à Administração Pública, como forma de controlar e limitar o poder de polícia. E, até a metade do século XX, o princípio da proporcionalidade ainda estava intrinsecamente vinculado ao Direito Administrativo, carecendo de fundamentação clara e precisa. Segundo Steinmetz, apenas no pós-guerra que o princípio passa a se desenvolver amplamente, em razão de que a jurisprudência e a doutrina alemãs justificarão o princípio da proporcionalidade com base na Lei Fundamental. [50]

A partir daí, o princípio só se desenvolve e passa a ser incorporado em outros sistemas constitucionais, fenômeno que a doutrina passa a chamar de constitucionalização do princípio da proporcionalidade. Esse princípio chega a ser incorporado inclusive pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. E é considerado hoje um princípio universal no âmbito de vigência das constituições dos Estados Democráticos de Direito. [51]

O que é importante ressaltar é que a vinculação do Princípio da Proporcionalidade ao Direito Constitucional ocorre por via dos direitos fundamentais, [52]ou seja, o princípio da proporcionalidade passa a ser o responsável pelo problema da limitação do poder legítimo por fornecer os critérios das limitações à liberdade individual. [53]

Em outras palavras, é o princípio da proporcionalidade que serve como mecanismo operacionalizador da proteção aos direitos fundamentais dentro de um Estado Democrático de Direito, porque irá definir qual o direito deverá receber prevalência diante de um caso concreto e quais sofrerão restrições, de modo a concretizar efetivamente a atuação do escolhido. Sendo assim, esse princípio vem para conciliar o direito formal com o direito material em ordem a prover exigências de transformações sociais extremamente velozes, e doutra parte juridicamente incontroláveis caso faltasse a presteza do novo axioma constitucional. [54]

A controvérsia causada na doutrina se refere ao fato de que o princípio da proporcionalidade dá ao juiz uma ascendência muito maior que o legislador, mas poucos chegam a afirmar que ele é capaz de abalar o princípio da separação dos poderes. A doutrina e a jurisprudência alemãs foram as responsáveis pela tripartição metodológica do princípio da proporcionalidade em três subprincípos: o princípio da adequação, o princípio da necessidade ou da exigibilidade e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou da ponderação de bens.

3.1. Os subprincípios ou elementos parciais do princípio da proporcionalidade

O primeiro subprincípio, o da adequação, também denominado de princípio da idoneidade ou princípio da conformidade, pretende fazer uma relação de adequação entre o meio empregado e o fim almejado com a realização de certo ato. Trata-se de investigar se a medida é apta, útil, idônea, apropriada para atingir o fim perseguido. [55]

Do ponto de vista negativo, o TCF alemão entendeu que uma medida é não-idônea se o for completamente, ou seja, se for totalmente inadequado para atingir o fim perseguido. Do ponto de vista positivo, o TCF diz que será adequado quando o meio escolhido possibilitar alcançar o fim perseguido. [56]

Dessa conceituação do TCF alemão se infere que pode haver, e geralmente há, mais de um meio para alcançar-se determinado fim, mas o princípio da adequação não irá escolher qual é o meio mais eficaz, mais idôneo, porque não possui esta capacidade metodológica. Propõe-se apenas a determinar se um meio é ou não idôneo para a consecução de certo fim, mas não qual meio dentre os vários disponíveis é o mais adequado.

O segundo subprincípio é o da necessidade, também conhecido como princípio da exigibilidade, da indispensabilidade ou da intervenção mínima. Importa em escolher o meio que é menos gravoso ao exercício do direito fundamental, ou seja, inquiri-se se o meio escolhido é realmente necessário à consecução do fim almejado ou se há outro meio que possa ser utilizado sem tanta restrição ao direito constitucional perseguido.

Em outras palavras, pergunta-se se a medida restritiva é realmente necessária e indispensável ou se pode ser aplicada outra menos gravosa, igualmente capaz de alcançar o fim pretendido, que cause uma intervenção menor na esfera de direito fundamental do indivíduo. Por essa razão é que também é chamado pela doutrina como princípio da escolha do meio mais suave. [57]

Dentro deste princípio da necessidade, Steinmetz aponta quatro notas essenciais. A primeira é a da intervenção mínima no exercício do direito fundamental pelo seu titular. A segunda é a presença do elemento da dúvida, qual seja, a possibilidade de haver ao menos uma outra medida menos gravosa. A terceira já parte para a comparação entre todas as medidas de restrição utilizando o critério da menor prejudicialidade. É claro que isso só poderá ocorrer em face de um caso concreto, e este aspecto, a realização de um juízo empírico, é o quarto elemento apontado por este autor. [58]

Ocorre que por vezes há um empate no juízo de prejudicialidade, nesse caso, verifica-se qual é a medida mais eficaz. Agora, se há um meio menos prejudicial que outro, porém, menos eficaz, qual deve prevalecer? Segundo a doutrina alemã a eficácia do meio menos prejudicial deverá ser, no mínimo, igual a do meio mais prejudicial, caso contrário, não será exigível a substituição deste por aquele, em outras palavras, a doutrina alemã dá maior relevância à prejucialidade do meio do que sua eficácia, mas, ainda assim, isso deverá ser analisado diante do caso concreto.

Por fim, depara-se-nos o terceiro subprincípio chamado de proporcionalidade em sentido estrito, que pretende fazer um juízo de proporcionalidade, razoabilidade entre a medida a ser aplicada e o fim perseguido. O princípio exige que na relação meio-fim haja uma reciprocidade razoável, racional. [59]

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No tocante à colisão de direitos fundamentais Alexy extrai do princípio da proporcionalidade em sentido estrito a sua lei da ponderação, formulando a seguinte máxima: cuanto mayor es el grado de la no satisfacción o de afectación de un principio, tanto mayor tiene que ser la importância de la satisfacción del outro. [60]

Para este critério, deve-se levar em conta o conjunto dos interesses em jogo. Ocorrerá a inconstitucionalidade quando a medida for "excessiva", "injustificável", ou seja, não couber na moldura da proporcionalidade. [61]

3.2. Os fundamentos do princípio da proporcionalidade

Muitos são os fundamentos da normatividade do princípio da proporcionalidade. Segundo Robert Alexy, o princípio da proporcionalidade possui estatuto de princípio geral de direito, e é um princípio deduzível ou infere-se, logicamente, da própria natureza dos princípios. Ou seja, o caráter de princípio implica o de proporcionalidade e vice-versa, porque os princípios são mandados de otimização que realizar-se-ão mediante um juízo de possibilidade jurídica e fática, operacionalizado por meio da aplicação da proporcionalidade.

A tendência de considerar-se o princípio da proporcionalidade como um princípio geral de direito está com força cada vez maior na doutrina, essa é a posição de Ulrich Zimmerli, Hans-Uwe Erichsen e A. Grisel, além do próprio Alexy, [62][62] Para esses autores, o princípio da proporcionalidade seria um princípio geral assim como o é o princípio do Estado de Direito. O TCF alemão, no entanto, considera o princípio da proporcionalidade derivado do princípio do Estado de Direito:

en la Republica Federal de Alemania, el principio de proporcionalidad tiene rango constitucional. Se deriva del principio del Estado de Derecho, en razón de la esencia misma de los derechos fundamentales que, como expresión de la pretensión de libertad general de los ciudadanos frente al Estado, no pueden ser limitados por el Poder Público más allá de lo que sea imprescindible para la protección de los intereses públicos. [63]

Mas a doutrina constitucional brasileira de um modo geral tende a fundamentar o princípio da proporcionalidade na cláusula do due process of law, disposta no art. 5º, LIV da CF/88, dentre os defensores destacam-se Mendes e Barroso. O Supremo Tribunal Federal também adere a esse posicionamento, fundamentando o princípio da proporcionalidade no princípio do devido processo legal em sentido material ou substantivo.

Esses últimos entendem que não há diferenças entre o princípio da proporcionalidade e o da racionalidade, de origem norte-americana. E como os americanos desenvolveram sua teoria de forma a fundamentar a racionalidade no due process of law, esses autores também fazem o mesmo com a proporcionalidade. A crítica recorrente é a de que não há equivalência entre os dois princípios, o que, portanto, pode acarretar diferenças na suas fundamentações.

Outros ainda fundamentam normativamente o princípio da proporcionalidade no princípio da dignidade da pessoa humana, num sentido de proteger o núcleo central dos direitos fundamentais, principalmente quando há uma colisão de direitos fundamentais em que as normas em conflito apresentam uma alta carga do princípio da dignidade. O problema reside no fato de que é muito difícil definir o que seja dignidade da pessoa humana, os conceitos apresentados ainda são vagos e imprecisos.

Enfim, não há um consenso doutrinário acerca da fundamentação normativa do princípio da proporcionalidade, muitos autores, inclusive, admitem uma pluralidade de fundamentos, dando prevalência a um deles, sem excluir a pertinência dos demais.

3.3.  A operacionalização do princípio da proporcionalidade e sua aplicação direta ao caso concreto desse estudo

A operacionalização do princípio da proporcionalidade, ou seja, a forma como ele deve ser empregado na solução de um conflito de direitos fundamentais consiste, em primeiro lugar, em verificar se há efetivamente uma colisão de normas-princípio, estatuídas na Constituição Federal de forma direta ou indireta (não-escritas). Apenas inicia-se o controle de proporcionalidade se o fim que se almeja tem legitimidade constitucional. [64]

Em segundo lugar, é fundamental descrever todas as situações e circunstâncias relevantes do caso em conflito. Mas, tanto o primeiro quanto o segundo passo são temas que devem ser abordados antes da aplicação do princípio da proporcionalidade. Depois de realizados estes tests prévios procede-se, sucessivamente, aos exames de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, observando-se a inter-relação entre os princípios. [65]

A verificação desses tests prévios foi o que se procurou fazer ao longo dos capítulos um e dois dessa monografia, onde se procurou identificar o conflito e delimitar as circunstâncias e os aspectos relevantes para a sua solução. Resta, ainda, verificar a aplicação do princípio da proporcionalidade ao caso concreto.

No que tange ao princípio da proporcionalidade, primeiro deve-se proceder ao exame da adequação da decisão para, só depois de verificada esta adequação, inquirir-se da necessidade ou não da decisão e, por fim, se constatada tal exigibilidade ou necessidade, efetuar o exame da proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, da sua racionalidade. Há entre os três princípios uma progressão de tipo lógico. [66]Ou seja, as etapas seguem uma ordem lógica e uma seqüência subordinada à satisfação dos requisitos do subprincípio anterior. E, na hipótese de colisão de direito fundamental, será preciso fundamentar racionalmente o resultado da ponderação de bens. [67]

Partindo da análise do caso concreto de colisão do direito à liberdade religiosa em face do direito à vida, percebe-se que há apenas dois meio de resolver o dilema: obrigar o paciente a efetuar a indesejada transfusão ou respeitar sua vontade. O primeiro meio privilegiará o direito à vida e o segundo, o direito à liberdade religiosa.

Esse é um caso, portanto, em que não existe um meio alternativo que consiga salvaguardar os elementos essenciais dos dois direitos envolvidos, o meio apto, idôneo para a consecução do fim pressupõe a escolha de qual fim o Estado quer privilegiar. O que se pode afirmar é que os dois meios mencionados acima são aptos à concretização dos dois direitos em conflito, basta que se proceda à escolha de qual direito receberá prevalência.

Assim, não há maiores indagações acerca da aplicação dos subprincípios da adequação e da necessidade nesse caso específico, já que só existem os dois meios citados para a resolução do conflito e ambos são igualmente gravosos ao direito que for preterido. Útil, nesse caso, se verifica apenas o terceiro subprincípio, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, que irá determinar qual bem tem mais peso e valor para o sistema jurídico brasileiro nesse caso específico.

Utilizando a lei da ponderação de Alexy, já especificada, segundo a qual quanto maior for o sacrifício de um direito, maior deve ser a importância do outro que for protegido, pode-se formular a seguinte pergunta: a liberdade religiosa é tão importante a ponto de permitir o sacrifício da própria vida humana? Se a resposta for positiva, porquê a liberdade religiosa recebe maior relevância do que a vida?

Depois de realizada toda essa análise prévia de crítica e interpretação constitucional, a resposta que se chega é positiva, ou seja, o ponto de vista adotado é de que a liberdade religiosa deve receber prevalência em face do direito à vida. O motivo dessa ponderação está no fato de que por detrás do princípio de liberdade existe um outro princípio constitucional tão importante que foi capaz de desequilibrar a balança em favor do primeiro, qual seja, o princípio da dignidade da pessoa humana.

O princípio da dignidade, como já comentado, é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e possui o objetivo precípuo de defender a integridade de uma pessoa, de modo a permitir o desenvolvimento livre da autonomia do indivíduo e da formação de sua personalidade. Em outras palavras, esse princípio permite que a pessoa possa conduzir sua vida de acordo com uma percepção individual de seu próprio caráter, de suas próprias convicções e princípios, enfim, uma percepção do que é importante para ela e que possa inclusive, morrer por essa percepção com dignidade, já que a vida desprovida de valores e objetivos perderia por completo o seu sentido:

as pessoas as quais se nega a dignidade podem perder o amor-próprio que ela protege, e tal recusa, por sua vez, faz com que mergulhem em uma forma ainda mais terrível de sofrimento: o desprezo e a aversão a que passam a sentir por si próprias. [68]

A conclusão alcançada é de que não há sentido forçar, exigir a proteção de uma vida à custa da dignidade dessa pessoa, porque o sacrifício desse ato de imposição acaba sendo muito maior: a morte moral do indivíduo. É preciso permitir que toda uma vida de convicções e de princípios não seja destruída na hora da morte do indivíduo; é preciso que o Direito proteja a capacidade da pessoa decidir em que medida e de que maneira procurará concretizar suas convicções, seus objetivos de vida, ou seja, é preciso que o Direito garanta a proteção da autonomia da pessoa ainda nesses casos delicados, porque essa proteção representa a proteção da dignidade humana.

Nessa mesma linha de pensamento, segundo a qual a questão da autonomia está relacionada à idéia de integridade, à permissão da valorização dos valores, das convicções e interesses de cada um, de modo a que o direito individual de autonomia torne possível a autocriação, está o jurisfilósofo americano Ronald Dworkin, para quem o Direito:

Permite que cada um conduza a sua própria vida, em vez de se deixar conduzir ao longo desta, de modo que cada qual possa ser, na medida em que um esquema de direitos possa tornar isso possível, aquilo que fez de si próprio. Permitimos que um indivíduo prefira a morte a uma amputação radical ou a uma transfusão de sangue, desde que tenha havido uma informação prévia de tal desejo, porque reconhecemos o direito que ele tem de estruturar sua vida de conformidade com seus próprios valores. [69]

Não se pode negar que há um impulso no ser humano em geral na tentativa de evitar a morte a qualquer preço pelo medo que o desconhecido lhe causa, pela angústia de não saber do depois, pelo medo do vazio, do nada. Mas o homem acaba esquecendo que, para alguns, angústia maior é uma vida sem dignidade, sem seus princípios norteadores, sem suas convicções íntimas e sua moral.

Mas o Direito é um dos instrumentos sociais mais capazes de frear os impulsos humanos, de impedir as decisões baseadas na vontade de apenas um ou de poucos indivíduos, porque a lei está posta para indicar o caminho e os fundamentos das escolhas mais relevantes. Portanto, voltando à apreciação do caso concreto, se o Estado decidir que um indivíduo tenha sua dignidade destruída ou ao menos profundamente abalada, porque entende que a vida humana tem mais valor, há que se rever todo o fundamento do Estado de Direito na sociedade brasileira, a começar pela disposição do art.1º, III da CF. Um Estado que pratica o referido juízo de peso também deveria ser compelido, por exemplo, a alimentar diariamente as milhares de crianças que acabam morrendo de desnutrição por falta de alimento, de doenças decorrentes da falta de saneamento básico, pessoas que morrem pela falta de medicamentos e de vagas nos hospitais, enfim, todas as milhares de causas indiretas das incontáveis mortes diárias no Brasil de uma maioria excluída e miserável.

A vida humana deveria ser uma razão para promover a dignidade, não para destruí-la. Se a testemunha de Jeová for obrigada a realizar o procedimento que viola profundamente suas convicções, poderá até sobreviver à doença ou à operação, mas terá uma sobrevida sem dignidade pessoal, provavelmente apartada de seu meio social, e profundamente abalada em sua integridade, seu amor-próprio, suas perspectivas.

Por todos esses motivos, conjugados com os que já foram referidos nos capítulos anteriores, a doutrina mais avançada vêm reconhecendo o direito à autonomia do paciente em circunstâncias desse tipo, Ronald Dworkin, em seu livro intitulado Domínio da Vida, Aborto, eutanásia e liberdades individuais, ao abordar o tema da autonomia da vontade, expressa a seguinte opinião:

Nos contextos médicos, essa autonomia está freqüentemente em jogo. Por exemplo, uma testemunha de Jeová pode recusar-se a receber uma transfusão de sangue necessária para salvar-lhe a vida, pois as transfusões ofendem suas convicções religiosas. Uma paciente cuja vida só pode ser salva se suas pernas forem amputadas, mas que prefere morrer logo a viver sem as pernas, pode recusar-se a fazer a operação. Em geral, o direito norte-americano reconhece o direito de um paciente à autonomia em circunstâncias desse tipo. [70](grifo da autora).

O argentino Ricardo Luis Lorenzetti também sugere que o Direito adota progressivamente uma atitude cautelosa, dando primazia à liberdade do indivíduo, favorecendo sua autodeterminação. [71]Mais adiante ele completa:

Adota-se, assim, a regra do consentimento prévio para o ato do médico, de sorte que a sua contraface, a negativa, é válida. Por esta via chega-se a admitir o direito a recusar tratamentos médicos, mesmo contrariando o sugerido pelo médico e diante de uma situação de risco. [72]

A colombiana Maria Patricia Castaño de Restrepo, ao concluir um trabalho voltado especificamente ao estudo dos conflitos na eficácia jurídica da vontade do paciente, diz que:

...el obligar a un paciente a someterse a un tratamiento que no quiere, cuando su voluntad se torna seria y dotada de otras condiciones que la hacen relevante, constituye una clara violación a su dignidad y a su integridad psíquica, moral y hasta física. [73]

Esta mesma autora apresenta a posição da Corte Constitucional Colombiana sobre o tema:

El sometimiento obligatorio de una persona a un tratamiento resulta inconstitucional porque "cada quien es libre de decidir si es o no el caso e recuperar su salud". "Si yo soy dueño de mi vida, a fortiori soy libre de cuidar o no de mi salud cuyo deterioro lleva a la muerte que, lícitamente, yo puedo infringirme.." [74]

Enfim, muitos outros autores poderiam ser citados, mas o intuito não é realizar uma coletânea de posicionamentos semelhantes, e sim solidificar a idéia de que esse é um entendimento de inúmeros juristas e órgãos constitucionais dos mais variados países, não é uma posição isolada, mas está crescendo e tomando força em vários Estados Democráticos de Direito, inclusive na América latina.

O anexo 2 (dois) traz um caso clínico muito semelhante ao do presente estudo, ocorrido no Hospital Universitário de Brasília, no qual a Coordenadora de Direitos Humanos da OAB, Simone T. A Nogueira faz um comentário em defesa do direito à liberdade de escolha do paciente. Segundo ela, uma alternativa para evitar a morte da pessoa seria a utilização de um substitutivo sintético de sangue que já está sendo empregado em experimentos em Salt Lake City, Nevada, USA.

3.4. A responsabilidade civil e penal do médico

Da conclusão que se chegou no capítulo anterior, de que a liberdade religiosa deve receber prevalência em face do direito à vida, extrai-se o dever do médico em respeitar esta vontade e não efetuar a transfusão sanguínea.

Se o médico atuar seguindo essa orientação e obedecer ao dever de informação a que o paciente tem direito, ou seja, se informar todos os riscos e danos que a decisão pode causar à saúde, inclusive o risco de vida, estará agindo em conformidade com o ordenamento jurídico e, mesmo que o paciente venha a falecer não lhe será imputado qualquer responsabilidade civil. Nesse caso, o médico atuou de forma legal e honesta, sem culpa, razão pela qual não há por que se falar em responsabilidade civil.

Caso o médico resolva praticar a transfusão de sangue sem o consentimento do paciente, também não poderá ser responsabilizado nem civilmente, nem penalmente. Não lhe poderá ser imputado culpa para caracterizar a responsabilidade civil se o próprio Conselho Federal de Medicina estipula como recomendação ética a seguinte diretiva:

em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética, deverá observar a seguinte conduta: 1º Se não houver perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis. 2º Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente do consentimento do paciente ou de seus responsáveis. [75]

Se um médico atua segundo estas recomendações de seu Comitê de Ética, também não pode sofrer qualquer punição, não é justo que o médico seja responsabilizado por um ato que lhe é sugerido como correto pelo seu órgão superior, ou seja, um ato indicado como um dever de conduta médica pautada na ética, já que a matéria que é deveras controvertida.

Essa é a opinião de Miguel Kfouri Neto:

Entendemos que em nenhuma hipótese poder-se-ia buscar reparação de eventual dano – de natureza moral – junto ao médico: se este realizasse, p. ex., a transfusão de sangue contra a vontade do paciente ou de seu responsável – provado o grave e iminente risco de vida; se não a realizasse, diante do dissenso consciente do paciente capaz, seria impossível atribuir-lhe culpa. De qualquer modo, sendo o paciente menor de dezoito anos, incumbirá ao facultativo, como medida de cautela – e se as circunstâncias permitirem – requerer ao Juízo da Infância e a Juventude permissão para realizar o ato indesejado pelos responsáveis. [76]

Também não se pode imputar uma responsabilidade penal ao médico que realiza a transfusão contra a vontade da paciente ou que respeita essa vontade. No primeiro caso a lei penal estabelece no art. 146, § 3º, I do CP que não configura crime de constrangimento ilegal a intervenção médica e cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida. Da mesma forma que não se pode responsabilizar penalmente o médico no segundo caso por omissão de socorro se ele agiu em conformidade com o ordenamento jurídico vigente.

Se essa posição for adotada se evitará decisões como a do anexo 3 desse trabalho do Superior Tribunal de Justiça, na qual se negou hábeas corpus ao médico que estava preso, acusado de crime de homicídio, porque decidiu respeitar a vontade do paciente testemunha de Jeová que não permitia a realização de transfusão de sangue.

De qualquer forma, não é fácil para o médico lidar com essa situação porque, para respeitar a vontade do paciente, deverá agir contra as suas convicções médicas e sua autonomia, portanto, na opinião de vários juristas, o médico pode se negar a prosseguir no tratamento do paciente testemunha de Jeová:

A restrição à realização de transfusões de sangue pode gerar no médico uma dificuldade em manter o vínculo adequado com o seu paciente. Ambos tem diferentes perspectivas sobre qual a melhor decisão a ser tomada, caracterizando um conflito entre a autonomia do médico e a do paciente. Uma possível alternativa de resolução deste conflito moral é a de transferir o cuidado do paciente para um médico que respeite esta restrição de procedimento. [77]

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPEZ, Ana Carolina Dode. Colisão de direitos fundamentais:: direito à vida X direito à liberdade religiosa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 958, 16 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7977. Acesso em: 25 nov. 2024.

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