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Habilitação jurídica de fundos de investimento em licitações

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Agenda 27/02/2020 às 14:01

O artigo discute as exigências constantes de editais de licitação para habilitação jurídica de fundos de investimento em licitações públicas, apontando equívocos e sugerindo aprimoramentos.

 

Introdução

Noticiou-se[1] com destaque, no início deste ano de 2020, a realização do leilão do maior lote de concessão rodoviário já licitado no país, projeto que envolve valores absolutamente superlativos: 1.273 quilômetros de rodovias no trecho Piracicaba-Panorama, 14 bilhões de reais de investimento previsto ao longo de 30 anos de concessão e 1,1 bilhão de reais de outorga a ser paga pelo consórcio vencedor.

Um dado significativo e quiçá pouco repercutido nas análises e comentários pós-leilão é de que a liderança do consórcio vencedor pertence a um fundo de investimento em participações[2] e não a um dos grandes grupos empresariais que tradicionalmente disputam o mercado de concessões no Brasil.

Em que pese não se tratar propriamente de uma novidade[3], há que se questionar, pela relevância e representatividade do contrato em tela, se este investimento não se insere numa nova tendência de maior participação destes veículos em projetos de concessão e PPP (ou mesmo em outras modalidades de contratação pública) no país.

Dos muitos pontos de interesse que este potencial movimento evoca para a estruturação de novos projetos, pretendemos debater, no breve texto que se segue, a prática corrente em relação à estipulação de exigências para habilitação jurídica dos fundos de investimento nos editais de licitação, uma vez que julgamos ainda encontrar, amiúde, equívocos relevantes na definição do rol de documentos a serem apresentados por licitantes revestidos desta natureza jurídica.

Objetivo da habilitação jurídica em licitações

Conforme a autorizada lição de Marçal Justen Filho,

“a prova da habilitação jurídica corresponde à comprovação da existência, da capacidade de fato e da regular disponibilidade para exercício das faculdades jurídicas pelos licitantes. Somente pode formular proposta aquele que possa validamente contratar. As regras sobre o assunto não são de Direito Administrativo, mas de Direito Civil e Comercial”[4].

Observa-se, assim, que a habilitação jurídica deve se restringir à verificação do preenchimento pelo licitante dos “requisitos necessários à contratação e execução do objeto”[5], não se prestando, em qualquer hipótese, a outras finalidades.

Tal premissa se mostra relevante para a apreciação das ponderações realizadas a seguir, na medida em que, conforme veremos, o desacerto observado em muitos editais consiste precisamente na inserção, no capítulo da habilitação jurídica de fundos de investimento, de quesitos absolutamente estranhos aos usualmente demandados para a prática de atos jurídicos por estes entes.

Anotações elementares sobre a natureza jurídica dos fundos de investimento

Privada por muito tempo de regulação específica em nível legal, a figura jurídica dos fundos de investimento obteve recentemente, por meio da edição da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019 (alcunhada Lei da Liberdade Econômica), o delineamento normativo de seus traços fundamentais.

De forma bastante resumida, pode-se dizer que o novo texto legal respeitou substancialmente a regulamentação infralegal até então vigente, introduzindo, incidentalmente, determinadas limitações de responsabilidade com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento deste mercado.

Conforme a dicção legal, o “fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza”[6].

A qualificação especial da natureza condominial dos fundos de investimento, conquanto não aprofundada pelo Código Civil, se traduz essencialmente na não aplicação, a estes entes, das normas que regem os demais condomínios legais, embora com estes compartilhem a característica fundamental de ausência de personalidade jurídica.

De resto, e ao que serve a esta concisa introdução, destaca-se que sobressai em relação aos fundos de investimento a competência regulamentar da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), agora expressamente prevista no Código Civil, razão pela qual iremos recorrer frequentemente às normas publicadas por esta instituição para fundamentar as proposições apresentadas nos tópicos seguintes.

Imprecisões em relação ao ato constitutivo do Fundo

Inicialmente, pode-se perceber, nas cláusulas típicas de habilitação jurídica de muitos editais, a insegurança dos gestores públicos em relação à adaptação adequada, aos fundos de investimento, do requisito elementar de habilitação jurídica para as sociedades empresárias previsto no inciso III, do artigo 28, da Lei 8.666/93.

Dispõe o preceptivo referido que a documentação relativa à habilitação jurídica consistirá no “ato constitutivo, estatuto ou contrato social em vigor, devidamente registrado, em se tratando de sociedades comerciais, e, no caso de sociedades por ações, acompanhado de documentos de eleição de seus administradores”.

Interpretando tal regra, a ANTT solicitou no recente edital de licitação da concessão da rodovia BR – 364, a apresentação pelos licitantes fundos de investimento do “regulamento do fundo de investimentos (e suas posteriores alterações, se houver)” com o respectivo registro perante a CVM, e, adicionalmente, do “ato constitutivo com última alteração arquivada perante o órgão competente”[7].

Ora, o ato constitutivo de um fundo de investimento é precisamente seu regulamento[8], sujeito exclusivamente, como será detalhado na sequência, ao registro junto à Comissão de Valores Mobiliários, não havendo, para este fim, outro documento adicional ou alternativo a ser apresentado pelo licitante, nem outro órgão competente para arquivar este documento que não seja a autarquia do mercado de capitais.

Evidencia-se, portanto, uma dubiedade indesejável na exigência simultânea de “ato constitutivo” e “regulamento”, que deve ser evitada em futuros editais.

Exigência de registro do regulamento em cartório de títulos e documentos

 

Outro exemplo corriqueiro de inadequação nos critérios de habilitação jurídica para fundos de investimento diz respeito não propriamente a uma incompreensão acerca do instituto, mas a uma desatualização em relação a seu novo regramento legal.

 

Neste sentido, o edital de licitação de PPP de iluminação pública do município de Aracaju disponibilizado a consulta pública em 24 de janeiro de 2020, à semelhança de outros editais publicados recentemente, ainda demanda, para a habilitação jurídica de fundo de investimento, a apresentação de “comprovante de registro do regulamento do fundo de investimento perante o Registro de Títulos e Documentos competente[9].

 

Ocorre que tal exigência, outrora fundamentada na regulamentação da CVM, deixou de fazer sentido a partir da edição da Lei de Liberdade Econômica, que dentro de seu espírito desburocratizante, determinou que “o registro dos regulamentos dos fundos de investimentos na Comissão de Valores Mobiliários é condição suficiente para garantir a sua publicidade e a oponibilidade de efeitos em relação a terceiros” (§3º do artigo 1368-Cdo Código Civil).

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Ressalte-se que em decorrência do novo marco legal, a própria autarquia editou, em 02 de outubro de 2019, a Instrução CVM nº 615[10], que revogou a exigência, até então constante em diferentes instruções normativas, de registro de regulamento em cartório de títulos e documentos, tornando inconteste que o único registro atualmente necessário ao regular funcionamento de fundo é aquele realizado perante a própria Comissão de Valores Mobiliários.

A contradição entre o marco legal vigente e os editais que mantêm a requisição acima citada pode gerar dúvida sobre as consequências do não cumprimento da regra editalícia no contexto normativo atual: o licitante que porventura não apresentar a comprovação de registro do regulamento perante o cartório de títulos e documentos poderia ser inabilitado do certame?

Apesar do adágio comumente repetido de que o edital é lei na licitação, revela-se evidente que suas disposições não se sobrepõem à norma legal, não sendo lícito ao gestor público impor requisitos para a validade de documentos que excedam aqueles determinados por lei, especialmente tendo em vista que os critérios de habilitação em processos licitatórios não podem justificar restrições desarrazoadas à competição.

Por esta razão, independente dos requisitos estabelecidos em edital, deve-se considerar que, a partir da vigência da Lei da Liberdade Econômica, a ausência de registro do regulamento do fundo em cartório de títulos e documentos não é motivo para inabilitação de fundo de investimento em certame competitivo, ainda que esta exigência conste do edital de licitação, recomendando-se aos gestores públicos, todavia, a diligência de ajustar a linguagem dos instrumentos jurídicos da licitação às normas vigentes.

Afinal, regulamento para quê?

Estabelecido que o documento correspondente ao contrato social/estatuto social das sociedades empresárias é, para os fundos de investimento, o regulamento, cabe refletir sobre o objeto da análise da comissão de licitação em relação a este instrumento.

Uma imprevidência frequente de determinados gestores públicos, que não raro gera imbróglios no processo licitatório, é a de solicitar, nos editais de licitação, a apresentação de determinados documentos sem que haja uma clareza acerca de sua finalidade.

No que toca a um regulamento de fundo de investimento em participações, por exemplo, sabe-se que há uma série de exigências a serem cumpridas para o pleno atendimento às normas da CVM, em especial para a adequação deste instrumento à Instrução nº 578, de 30 de agosto de 2016[11], não havendo, porém, uma imediata contaminação da regularidade dos contratos celebrados pelo fundo em decorrência de incompatibilidades entre o regulamento e algum ponto da norma.

Ocorre que ao se exigir a apresentação do regulamento do fundo sem precisar, no edital de licitação, o que efetivamente importa deste documento para a verificação da habilitação jurídica do licitante, arrisca-se a fomentar comportamentos oportunistas de outros competidores, que podem buscar, na multiplicidade de matérias tipicamente abordadas em regulamento, alguma fragilidade formal a fim de obter, administrativa ou judicialmente, a inabilitação de um competidor.

Parece-nos, pois, salutar, com o propósito de refrear discussões acerca do impacto (ou ausência de impacto) do descumprimento circunstancial de determinados preceitos normativos pelo regulamento na habilitação jurídica do fundo, que o edital de licitação especifique os tópicos deste instrumento que serão analisados pela comissão de licitação e que devem demonstrar a regularidade da participação do licitante no certame, entre os quais se incluirão, inescapavelmente, aqueles referentes à representação do fundo de investimento e a aderência da política de investimento do fundo ao objeto licitado[12].

Caso se opte não incorporar o detalhamento sugerido acima no corpo do edital de licitação, cumpre aos responsáveis pela licitação ao menos se certificar, previamente ao certame, que a comissão de licitação tem uma compreensão correta sobre o escopo da eventual análise a ser empreendida em relação a este documento.                        

Autorização para participação na licitação

O requisito de demonstração de autorização para participação na licitação por parte do fundo de investimento, posto que redigido em diferentes termos, consta virtualmente de todos os editais de licitação. E com boa razão.

De fato, do ponto de vista do ente público contratante, mais relevante até do que apurar a regularidade da representação do fundo na licitação, que discutiremos no item subsequente, é saber se este tem autorização de seus quotistas para firmar o contrato a que se propõe no certame, uma vez que a ausência desta autorização tenderia a ter consequências deletérias para o Poder Público.

Para corroborar tal assertiva, basta indicar que o fundo tipicamente não dispõe em seu patrimônio, no momento da realização da proposta, dos recursos necessários para o cumprimento do contrato, que, em circunstâncias normais, espera-se que sejam aportados oportunamente pelos quotistas em resposta a chamadas de capital realizadas pelo gestor, conforme as necessidades financeiras que surjam na execução contratual.

Ora, dado que o atendimento a tais chamadas pode ser recusado caso os valores solicitados se destinem a prática de ato não autorizado (ou expressamente desautorizado) pelos quotistas, restará ao gestor público, na infeliz hipótese de ter contratado o fundo nestes termos, apenas a pouco efetiva opção de buscar uma responsabilização do gestor pelos atos ultra vires.

Tal realidade justifica a legitimidade da prática corrente de exigir expressamente a comprovação desta autorização já no momento da habilitação no processo licitatório, cabendo, contudo, algumas críticas à linguagem em que muitos editais expressam esta requisição.

Em verdade, deve-se atentar para o fato de que a forma pela qual os gestores são autorizados pelos quotistas para a prática dos atos inerentes à realização de investimentos não é uniforme nos diferentes regulamentos dos fundos.

Na hipótese possivelmente mais comum, a autorização estará contida no próprio regulamento, cabendo a contraparte apenas verificar se o ato se insere dentro da política de investimento do fundo num aspecto material e temporal[13]. Em outros casos, porém, há a necessidade de prévia aprovação de algum órgão de deliberação dos quotistas (comitê de investimentos ou similar) para a participação na licitação, hipótese na qual a mera aderência teórica da proposta à política de investimento do fundo não deve ser suficiente para a comissão de licitação, cabendo ao licitante apresentar o resultado da deliberação do órgão regulamentar competente.

No contexto apresentado, o equívoco que se percebe em muitos editais é o de tentar “adivinhar” ou impor uma determinada forma de autorização, ao invés de adotar um texto genérico que permita a análise adequada da comissão de licitação nos diferentes cenários fáticos possíveis.

Assim, a ARTESP, na já referida licitação do trecho Piracicaba-Pindorama, exigiu em edital a “comprovação de que o fundo de investimento se encontra devidamente autorizado pelos seus cotistas a participar do certame, por meio de autorização decorrente da política de investimento do fundo descrita em seu regulamento (...)”[14], o que, como dissemos, embora possa refletir a forma de autorização mais usual, não é a única possível.

Em sentido oposto, o município de Campinas fez constar no edital disponibilizado a consulta pública de PPP de iluminação pública a solicitação de “comprovação de que o fundo de investimento se encontra devidamente autorizado pela assembleia de cotistas a participar da LICITAÇÃO”[15], o que, além de caminhar no sentido menos frequente da necessidade de aprovação específica de um órgão de deliberação dos quotistas para a participação na licitação, ainda identifica equivocadamente este órgão, já que a matéria não se insere na competência de assembleia geral de cotistas, conforme regulamentação vigente da CVM.

Por esta razão, sugere-se que o edital adote uma linguagem aberta às diferentes possibilidades teóricas, como bem fez a ANAC no edital do leilão nº 01/2018, ao demandar, simples e objetivamente, a “comprovação de que o fundo de investimento se encontra devidamente autorizado a participar do certame”[16].

Representação do fundo de investimento

Em se tratando de representação do fundo de investimento no processo licitatório, os editais soem ser unânimes em presumir a representação por parte do administrador, exigindo que seja demonstrada que este possa representar o fundo “em todos os atos e para todos os efeitos da LICITAÇÃO, assumindo, em nome do fundo de investimento, todas as obrigações e direitos que dela decorrerem”[17].

Não obstante, é duvidoso que os poderes para formulação de propostas e contratação em nome do fundo pertençam, invariavelmente ou mesmo em regra, ao administrador. Senão, vejamos.

A Instrução CVM nº 555, que dispõe sobre a constituição, a administração, o funcionamento e a divulgação das informações dos fundos de investimento, conceitua como administrador do fundo a pessoa jurídica “autorizada pela CVM para o exercício profissional de administração de carteiras de valores mobiliários e responsável pela administração do fundo”[18], ao passo que o gestor do fundo, que deve possuir a mesma autorização perante a autarquia, é definido como a pessoa “contratada pelo administrador em nome do fundo para realizar a gestão profissional de sua carteira”[19].

Ao mesmo tempo em que a referida Instrução Normativa detalha as atribuições do administrador, estabelece que a gestão do fundo é a gestão profissional que tem poderes para

“negociar e contratar, em nome do fundo de investimento, os ativos financeiros e os intermediários para realizar operações em nome do fundo, bem como firmar, quando for o caso, todo e qualquer contrato ou documento relativo à negociação e contratação dos ativos financeiros e dos referidos intermediários, qualquer que seja a sua natureza, representando o fundo de investimento, para todos os fins de direito, para essa finalidade[20]. (grifos nossos)

A representação do fundo pelo gestor é reforçada no parágrafo seguinte da Instrução Normativa que prevê a obrigação do gestor “encaminhar ao administrador do fundo, nos 5 (cinco) dias úteis subsequentes à sua assinatura, uma cópia de cada documento que firmar em nome do fundo”, o que demonstra, a um só tempo, que o gestor detém poderes para a prática dos atos referidos e que o controle exercido pelo administrador do fundo se dá tipicamente a posteriori.

Assim, a despeito da práxis estabelecida na redação de editais de licitação, a opção mais técnica seria permitir expressamente que a comprovação de poderes para representação do Fundo fosse realizada pelo “gestor ou administrador”[21], justificando-se a manutenção da referência a este último para a hipótese, não de todo infrequente, em que as atividades de gestão e administração são exercidas pela mesma pessoa jurídica[22].

Registro do administrador e do gestor perante a CVM

Exigência usual e menos controversa diz respeito “ao comprovante de registro do administrador e, se houver, do gestor do fundo de investimento, perante a Comissão de Valores Mobiliários”. Em relação a esta solicitação, que reputamos justificável tendo em vista sua conexão direta com a regularidade da representação do fundo, temos apenas duas breves ponderações.

Em primeiro lugar, mais que o comprovante da autorização para administração de carteira de valores mobiliários, interessa a Comissão de Licitação conhecer a regularidade atual da situação do administrador/gestor perante a autarquia, razão pela qual se revela pertinente que, além da publicação do deferimento do registro no Diário Oficial, o gestor e o administrador demonstrem não ter havido suspensão ou cancelamento posterior deste ato.

Adicionalmente, dado que as informações acerca do registro e da situação atual do administrador e do gestor podem ser obtidas no endereço eletrônico da Comissão de Valores Mobiliários, sem a necessidade de dados ou autorizações específicas, deve-se ter em conta, desde já, que se trata de um típico item em que qualquer insuficiência formal na documentação inicialmente apresentada poderá ser sanada no curso do processo por diligência da Comissão de Licitação. 

Certidões negativas do gestor e administrador: falência, liquidação ou nenhuma das duas?

Um requisito da qualificação econômico-financeira previsto na Lei nº 8.666/93 muitas vezes enxertado na habilitação jurídica de editais refere-se a “certidão negativa de falência ou concordata expedida pelo distribuidor da sede da pessoa jurídica, ou de execução patrimonial, expedida no domicílio da pessoa física”[23].

Independente da discussão a respeito de qual capítulo do edital deva abrigar este tipo de exigência, em vista de sua presença recorrente no rol de documentos da habilitação jurídica de fundos de investimento, consideramos pertinente abordar o tema neste breve ensaio.

Poderíamos dividir a customização típica desta exigência aos fundos de investimentos nos editais em dois grupos principais: há aqueles que, a exemplo do edital de concessão ANTT nº 02/2019 (BR-101/SC)[24], exigem “certidão negativa de falência da administradora e gestora do fundo, expedida pelo(s) cartório(s) de distribuição da sede da(s) mesma(s)” e outros, a exemplo do edital de concessão administrativa publicado pela Prefeitura do Rio de Janeiro no âmbito do projeto "Rio+Creche"[25], que pedem a comprovação “de que a administradora e o fundo não estão em processo de liquidação judicial, mediante certidão expedida pelo(s) cartório(s) de distribuição da sua sede, ou de liquidação extrajudicial, mediante comprovante obtido em consulta ao sítio eletrônico do Banco Central do Brasil”.

Em ambos os casos, enxergamos equívocos a serem reparados.

Para embasar a tese aqui esposada, cumpre transcrever o artigo 1.368-E do Código Civil, incluído neste diploma legal pela Lei de Liberdade Econômica, mas que, em boa medida, apenas reafirma a interpretação anteriormente assentada sobre a responsabilidade dos prestadores de serviço dos fundos de investimento:

Art. 1.368-E. Os fundos de investimento respondem diretamente pelas obrigações legais e contratuais por eles assumidas, e os prestadores de serviço não respondem por essas obrigações, mas respondem pelos prejuízos que causarem quando procederem com dolo ou má-fé. 

§ 1º Se o fundo de investimento com limitação de responsabilidade não possuir patrimônio suficiente para responder por suas dívidas, aplicam-se as regras de insolvência previstas nos arts. 955 a 965 deste Código.

Tal dispositivo e a própria natureza condominial do fundo de investimento afastam qualquer comunicabilidade entre o patrimônio do fundo e de seus prestadores de serviço, quer administrador ou gestor, razão pela qual a exigência de certidão negativa de falência de ambos, como realizada pelos editais do primeiro grupo, não encontra fundamento legal.

De fato, a situação financeira destas pessoas jurídicas – distintas do licitante – não tem o condão de impactar a validade da assunção de obrigações pelo fundo de investimento na execução de contrato ou mesmo a viabilidade do cumprimento de tais obrigações[26].

O mesmo equívoco é cometido pelos editais do segundo grupo que, embora dispensando a apresentação de qualquer certidão em nome do gestor, encerram a exigência de comprovação de que o administrador não esteja em processo de liquidação judicial ou extrajudicial[27].

Neste grupo, a solicitação similar realizada em relação ao próprio fundo tem o mérito de identificar corretamente o ente que assume obrigações na licitação, pecando, contudo, pela implícita e incorreta equiparação dos fundos às instituições financeiras e, principalmente por não constituir, a nosso sentir, a exigência equivalente para os fundos de investimento à “certidão negativa de falência e concordata” que se requer da sociedade empresária.

Assim entendemos porque a discussão acerca da liquidação do fundo se insere mais propriamente no tema da autorização para participação na licitação, que abordamos em item precedente, dado que um fundo em liquidação não estaria autorizado a participar de licitação e firmar novos contratos. Por esta razão, cremos que a segregação da comprovação de ausência de processo de liquidação em um item específico não agrega nenhum valor à segurança jurídica do ente licitante e pode gerar questionamentos em relação à documentação a ser apresentada.

Na verdade, dada a previsão do parágrafo §1º do art. 1.368-E do Código Civil, temos que o documento que estabeleceria verdadeira correspondência em relação a esta exigência para os fundos de investimento seria a certidão negativa de decretação de insolvência civil, ou, nos termos do inciso II do artigo 31 da Lei nº 8.666/93, de “execução patrimonial”, uma vez que neste ponto os fundos de investimento estão sujeitos “as regras de insolvência previstas nos arts. 955 a 965” do Código Civil[28].

Conclusão

A habilitação jurídica de fundos de investimento em licitações deve objetivar, exclusivamente, a constatação “da existência, da capacidade de fato e da regular disponibilidade para exercício das faculdades jurídicas” do licitante, não sendo lícito ao Poder Público impor condições ou requisitos extraordinários que desbordem aqueles usualmente exigidos para a prática de atos ordinários pelos participantes do certame.

Possivelmente em razão da baixa participação histórica destes entes em licitações, ainda persistem, conforme expusemos ao longo do texto, diversas inadequações na redação atualmente adotada pela maior parte dos editais de licitação em relação às exigências para habilitação jurídica de fundos de investimento.

Diante das perspectivas auspiciosas de intensificação da atuação destes veículos de investimento em contratações públicas, em especial no segmento de PPPs e concessões comuns, urge que os gestores públicos busquem corrigir estas deficiências antes que elas possam causar prejuízos ao regular desenvolvimento de processos licitatórios.

 

Sobre o autor
Antônio Fernando da Fonseca Martins

Advogado do BNDES, MBA em Finanças pela Faculdade de Economia e Finanças IBMEC.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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