3. ANÁLISE DAS EXCLUDENTES DE ILICITUDE PELO DELEGADO
Em observância aos direitos/princípios fundamentais/humanos, tais como a dignidade da pessoa humana, liberdade, legalidade, segurança jurídica, a autoridade policial, quando apresentado alguém preso em flagrante, deve fazer o controle da legalidade da prisão, é dizer, este controle não deve ser feito de forma perfunctória, deve o delegado analisar todas as circunstâncias do caso concreto para decidir ou não pela ratificação da prisão em flagrante.
Não se concebe a ideia de que o delegado de polícia deva fazer somente a análise da tipicidade da conduta, tendo em vista que o crime é um fato típico, ilícito e culpável. Logo, se o fato é típico, mas não é contrário ao direito, ou seja, não é ilícito, não há delito, é dizer, não há que se falar em prisão em flagrante delito. Recolher ao cárcere alguém que age amparado por uma causa de justificação é uma afronta grave à Constituição Federal de 1.988, pois encarcerar-se-á um inocente. Nas palavras de Luiz Flávio Gomes; Alice Bianchini e Flávio Daher (2015, p. 5-6), in litteris:
O direito penal do Estado Democrático de Direito (conjunto de normas que definem os crimes e as penas e fixam os limites do poder punitivo do Estado) não se confunde com o poder punitivo estatal (que é o exercício do ius puniendi de acordo com as regras e os princípios estabelecidos nas leis, constituição e tratados internacionais) nem muito menos com o estado policialesco (que é o exercício do poder punitivo fora ou além dos limites estabelecidos pelas normas do Estado Democrático de Direito). O poder punitivo estatal é um fato da realidade (e do direito). Quando exercido fora dos parâmetros fixados pelo Estado de Direito, ele se converte em atos policialescos, passíveis de anulação e, eventualmente, de sanção. É de se lamentar a distância que existe o que está programado pelas normas (limitadoras) do Estado de Direito e o que acontece na prática por força do estado policialesco (que significa a aplicação, ilegal inconstitucional ou desproporcional ou desarrazoada do direito vigente). Não existe Estado de Direito puro (Zaffaroni), é verdade. Todos são perturbados pelos estados policialescos (em maior ou menor grau). Isso comprova que o poder punitivo é inequívoca e tendencialmente bruto, atavicamente expansivo, animalesco, autoritário, arbitrário ou tirânico. O estado policialesco é fonte de deslegitimação dos órgãos encarregados da aplicação da lei penal.
Feitas estas considerações, passar-se-á ao estudo dos controvérsias que envolvem o artigo 310, parágrafo único do Código de Processo Penal.
3.1. O PROBLEMÁTICO ARTIGO 310, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
As divergências doutrinárias (se o delegado de polícia tem ou não atribuição para examinar as justificantes na prisão em flagrante) giram em torno do artigo 310, parágrafo único do Código de Processo Penal, verbo ad verbum:
Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:
Parágrafo único. Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23. do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação.
Veja-se que em momento algum a redação legal supramencionada proíbe o delegado de polícia de fazer a análise das excludentes de ilicitude na prisão em flagrante. O que se compreende é que caso a autoridade policial não se convença de que o suposto delinquente agiu amparado por uma causa de justificação e, assim, remeter o APFD (Auto de Prisão em Flagrante Delito) ao juiz competente, e este vislumbrar que a conduta estava acobertada por uma excludente, concederá ao indiciado liberdade provisória.
Contudo, é inegável que o legislador poderia, com a alteração feita ao artigo 310, parágrafo único do Código de Processo Penal pela Lei nº 12.403 de 2011, acabar com a celeuma que envolve esta norma, colocando de forma expressa o dever do delegado de polícia de examinar as causas de justificação na prisão em flagrante. Nas palavras de Eduardo Luiz Santos Cabette1:
Considera-se que o legislador certamente perdeu a oportunidade de colmatar essa lacuna odiosa, concedendo de maneira expressa à Autoridade Policial o poder de avaliar a presença de excludentes de criminalidade e dispensar a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante e, principalmente, a custódia do cidadão. Ciente de que os Juízes não estão à disposição 24 horas tal qual os Delegados de Polícia, também Bacharéis em Direito, com formação jurídica, deveria o legislador haver aproveitado para fazer essa mudança profícua em prol dos direitos e garantias individuais, bem como da dignidade da pessoa humana, impedindo que um inocente (ao menos com grande aparência nesse sentido) seja encarcerado, nem mesmo por um segundo sequer, o que não ocorre mediante uma interpretação gramatical e fria do artigo 310, Parágrafo Único, CPP e do antigo artigo 310, “caput”, CPP.
Parte da doutrina faz uma interpretação restritiva da norma em comento, alegando que cabe somente ao magistrado analisar as excludentes de ilicitude, depois de receber o Auto de Prisão em Flagrante, o que é um equívoco, uma vez que o artigo mencionado tutela direitos fundamentais, é dizer, o objetivo do artigo 310, parágrafo único do Código de Processo Penal é tutelar a liberdade de alguém que não cometeu nenhum delito, pois agiu amparado por uma justificante, logo, constitui-se tal entendimento numa flagrante inconstitucionalidade. Ao explicar a possibilidade da autoridade policial relaxar a prisão em flagrante, descreve Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 565):
Afastada a autoria, tendo constatado o erro, não recolhe o sujeito determinando sua soltura. É a excepcional hipótese de se admitir que a autoridade policial relaxe a prisão. Ao proceder desse modo, pode deixar de dar voz de prisão ao condutor, porque este também pode ter-se equivocado, sem a intenção de realizar prisão ilegal. Instaura-se, apenas, inquérito para apurar, com maiores minúcias, todas as circunstâncias da prisão. Note-se que isso se dá no tocante à avaliação da autoria, mas não quando a autoridade policial percebe ter havido alguma excludente de ilicitude ou de culpabilidade, pois cabe ao juiz proceder a essa análise.
Este é o entendimento que prevalece na doutrina tradicional. Nas palavras de Eduardo Luiz Santos Cabette2, in litteris:
Na temática das excludentes de antijuridicidade e sua análise na Prisão em Flagrante é necessário e urgente abordar a questão da impossibilidade de que a própria Autoridade Policial dispense a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante quando patente a presença destas por inteligência do artigo 310, Parágrafo Único, CPP. Em geral, desde a redação anterior, pela letra fria da lei, caberia ao juiz e somente a ele, analisar a questão da presença ou não de excludentes aparentes de criminalidade, concedendo liberdade provisória após a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante pela Autoridade Policial, a quem não caberia adentrar nesse mérito. Esta é inclusive a lição encontrável da doutrina tradicional. Espínola Filho, por exemplo, afirma que nessas condições cabe somente à Autoridade Policial prender em flagrante e apresentar o Auto de Prisão o mais rápido possível ao magistrado para este delibere sobre a concessão da liberdade provisória. Do mesmo entendimento comunga Tornaghi, alegando que a legislação brasileira foi prudente ao vedar a análise das excludentes pela Autoridade Policial executora do flagrante, devendo realmente tal mister caber somente ao Juiz. À Autoridade Policial só restaria comunicar a prisão ao magistrado, o qual procederia a devida avaliação.
Outra parte da doutrina entende que é perfeitamente possível que a autoridade policial analise as excludentes na prisão em flagrante, desde que estas sejam notórias, o que se verificará com as informações colhidas. Vale dizer, na dúvida, deve-se ratificar a prisão em flagrante, pois nesta fase vigora o princípio do in dubio pro societate. Preleciona Fernando Capez (2014, p. 251):
O auto somente não será lavrado se o fato for manifestamente atípico, insignificante ou se estiver presente, com clarividência, uma das hipóteses de causa de exclusão da antijuridicidade, devendo-se atentar que, nessa fase, vigora o princípio do in dubio pro societate, não podendo o delegado de polícia embrenhar-se em questões doutrinárias de alta indagação, sob pena de antecipar indevidamente a fase judicial de apreciação de provas; permanecendo a dúvida ou diante de fatos aparentemente criminosos, deverá ser formalizada a prisão em flagrante.
Na mesma esteira Silvio Maciel (pág. 139) apud Francisco Sannini Neto3:
A verdade é que o Delegado de Polícia – autoridade com poder discricionário de decisões processuais – analisa se houve crime ou não quando decide pela lavratura do Auto de Prisão. E ele não analisa apenas a tipicidade, mas também a ilicitude do fato. Se o fato não viola a lei, mas ao contrário é permitido por ela (art. 23. do CP) não há crime e, portanto, não há situação de flagrante. Não pode haver situação de flagrante de um crime que não existe (considerando-se os elementos de informação existentes no momento da decisão da autoridade policial). O delegado de Polícia analisa o fato por inteiro. A divisão analítica do crime em fato típico, ilicitude e culpabilidade existe apenas por questões didáticas. Ao delegado de polícia cabe decidir se houve ou não crime. E o art. 23, I a III, em letras garrafais, diz que não há crime em situações excludentes de ilicitude.
Entende-se que a função essencial do juiz é garantir a efetividadedos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1.988. Logo, o magistrado se apresenta no contexto da interpretação e aplicação das leis penais e processuais penais como garantidor, ou seja, não pode permitir violações ou ameaças aos direitos fundamentais, os quais são inerentes a todos os cidadãos.
Como bem sustenta Aury Lopes Jr. (2014, p. 197): “Essa é a posição que o juiz deve adotar quando chamado a atuar no inquérito policial: como garante dos direitos fundamentais do sujeito passivo”. Este, conforme explicação do aludido autor, no contexto do processo penal, é o réu, aquele contra quem recaem os diferentes constrangimentos e limitações impostas pelo poder estatal.
Neste diapasão, influi-se que o juiz não pode corroborar com entendimentos, interpretações que afrontam os direitos consagrados como indispensáveis ao ser humano como a vida, a liberdade, a intimidade, a honra, a imagem.
Isto posto, não é razoável que o juiz, como garantidor, permita ou exija que o delegado de polícia, ao deparar com uma situação de um possível flagrante delito, não avalie, quando for patente, a presença de uma descriminante da suposta conduta criminosa, sob pena da autoridade policial efetivar uma prisão ilegal.
3.2. ARTIGO 282 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E A ANÁLISE DAS EXCLUDENTES PELO DELEGADO
O título IX do livro I do Código de Processo Penal trata da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória, onde está localizado o instituto da prisão em flagrante, mais precisamente dos artigos 301 a 310 do Código de Processo Penal.
O título supramencionado inicia-se com o artigo 282 que traz expressamente os princípios da necessidade, da adequação e implicitamente o princípio da proporcionalidade em sentido estrito. Vale dizer, estes princípios na verdade constituem subprincípios do princípio da proporcionalidade em sentido lato.
O princípio da proporcionalidade, em sentido amplo, visa informar ao operador do Direito, sobretudo em matéria de Direito Penal e Processual Penal, que ele deve sopesar os valores em conflito para que aplique a lei de forma justa, é dizer, este princípio trabalha com o garantismo negativo (proibição de excesso do Estado em relação ao indiciado/acusado) e o garantismo positivo (proibição de proteção insuficiente por parte do Estado à coletividade). Nas palavras de Renato Brasileiro de Lima (2014, p. 782), in verbis:
Afinal, não se pode perder de vista que o princípio da proporcionalidade possui um duplo espectro, representado por um âmbito negativo – de proteção contra o excesso –e por um âmbito positivo – de proibição de ineficiência, também chamado de vedação da proteção deficiente.
O princípio da necessidade está previsto no artigo 282, inciso I do Código de Processo Penal, com a seguinte redação:
Art. 282. As medidas cautelares previstas neste título deverão ser aplicadas observando-se a:
I – necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais.
Ensina-se o subprincípio, acima mencionado, que o aplicador do direito deve escolher a medida menos onerosa ao direito fundamental (liberdade de locomoção) para alcançar o resultado pretendido. Nas palavras de Renato Brasileiro de Lima (2014, p. 783):
O segundo requisito (ou subprincípio) da proporcionalidade é o da necessidade. Por força dele, entende-se que, dentre várias medidas restritivas de direitos fundamentais idôneas a atingir o fim proposto, deve o Poder Público escolher a menos gravosa, ou seja, aquela que menos interfira no direito de liberdade e que ainda seja capaz de proteger o interesse público para o qual foi instituída. A título de exemplo, caso seja necessário o reconhecimento pessoal do investigado, tanto será idônea uma mera intimação para comparecimento à Delegacia, quanto a decretação de sua prisão temporária. Sem embargo de ambas as medidas, é evidente que, ante a diferença do grau de constrição à liberdade de locomoção, deve o juiz optar pela menos gravosa.
O subprincípio da adequação tem previsão no artigo 282, inciso II do Código de Processo Penal, in verbis:
Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:
II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstância do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.
Depreende-se que, por força do subprincípio supracitado, só será adequada uma medida restritiva à liberdade de locomoção, quando ela for indispensável para se alcançar o resultado pretendido. Preleciona Renato Brasileiro de Lima (2014, p. 783), in litteris:
O primeiro requisito intrínseco ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo é o da adequação, também denominado de princípio da idoneidade ou da conformidade. Por força da adequação, a medida restritiva será considerada adequada quando for apta a atingir o fim proposto. Não se deve permitir, portanto, o ataque a um direito fundamental se o meio adotado não se mostrar apropriado à consecução do resultado pretendido.
Pode-se extrair, implicitamente, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito da redação do artigo 282, inciso II do Código de Processo Penal: “II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado”.
Este subprincípio, após feito o juízo de adequação e necessidade, revela que os profissionais do Direito, que representam o Estado, devem aferir se a medida imposta é proporcional aos danos causados aos direitos fundamentais, ou seja, se o ônus imposto ao indiciado/acusado é proporcional ao resultado que se pretende alcançar, logo, deve prevalecer, dentre os valores em conflito (garantia da persecução penal x liberdade), o valor que preponderar. Ensina Renato Brasileiro de Lima (2014, p. 783-784):
O terceiro subprincípio – proporcionalidade em sentido estrito – impõe um juízo de ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, a fim de se constatar se se justifica a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos. É a verificação da relação de custo-benefício da medida, ou seja, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Assim, por força do princípio da proporcionalidade em sentido estrito, entre os valores em conflito - o que impele a medida restritiva e o que protege o direito individual a ser violado – deve preponderar o de maior relevância. Há de se indagar, pois, se o gravame imposto ao titular do direito fundamental guarda relação de proporcionalidade com a importância do bem jurídico que se pretende tutelar. Essa verificação supõe que se apresenta ao juiz uma situação concreta em que, já assentadas a adequação e a necessidade, seja necessário ainda analisar se o sacrifício a ser imposto ao direito fundamental guarda uma relação razoável e proporcional com a relevância do interesse estatal que se pretende assegurar. Para tanto, devem ser utilizadas as técnicas de contrapeso de bens e valores, de forma a escolher a medida mais justa nas circunstâncias do caso, o que, no terreno processual penal, implica resolver a tensão entre os interesses estatais relacionados à persecução e as garantias do acusado. Em sede de medidas cautelares de natureza pessoal, tem-se que a medida somente será legítima quando o sacrifício da liberdade de locomoção do acusado for proporcional à gravidade do crime e às respectivas sanções que previsivelmente venham a ser impostas ao final do processo. Isso porque seria inconcebível admitir-se que a situação do indivíduo ainda inocente fosse pior do que a da pessoa já condenada.
Diante de tudo até aqui exposto, e considerando que estes princípios se aplicam a prisão em flagrante, compreende-se que a autoridade policial, que ratifica a prisão em flagrante de alguém que, com clarividência, agiu amparado por uma excludente de ilicitude, fere os princípios estudados acima, pois a medida não é adequada, uma vez que o fim pretendido é o posterior arquivamento do inquérito policial, outrossim não é necessária, tendo em vista que a única medida cabível nesta hipótese é a não ratificação da prisão em flagrante e, por fim, não é proporcional, pois a ofensa aos direitos fundamentais do cidadão não se justifica, uma vez que encarcerar-se-á um inocente.
3.3. POSIÇÃO DOS TRIBUNAIS SOBRE O TEMA
No que tange à justiça comum, os Tribunais ainda não se posicionaram sobre o tema. Todavia, há julgado do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais no sentido de que é legal, pela autoridade de polícia judiciária militar,o examedas causas de justificação na prisão em flagrante, o que vale ser citado, tendo em vista que o raciocínio é o mesmo, ou seja, a estrutura do crime comum e do crime militar é a mesma. Pode-se citar o habeas corpus de processo nº 0001675-89.2014.913.00004. Vale mencionar a parte do julgado em que o Meritíssimo Juiz Fernando Galvão da Rocha, em seu voto, concedeu ordem para trancar a ação penal, in litteris:
A discussão que ora nos ocupa se resume a saber se o agente, na condição de Comandante da unidade militar e presidente do APF, poderia ter deixado de impor a prisão em flagrante dos militares conduzidos por considerar a existência de excludentes de ilicitude. O § 2º do art. 247. do CPPM não deixa dúvida acerca do dever da autoridade, militar ou judiciária, de não efetuar a prisão em flagrante por fato que não se apresente como crime militar.