Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Do direito à educação sexual à descriminalização do aborto

Exibindo página 1 de 2

Deve o Estado investir na educação sexual das crianças e adolescentes, viabilizar a consciência e planejamento reprodutivo e admitir o direito das mulheres de decidir e de ter direitos, pela descriminalização do aborto, em um movimento de resgate da sua humanização.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo uma discussão mais ampla em relação ao aborto, iniciando-se na promoção de orientação sexual para crianças e adolescentes, que é dever do Estado e da sociedade, e encerrando-se nos quesitos da possibilidade de realização do aborto. A circunstância fática de o aborto ser crime no Brasil movimenta um mercado clandestino, marcado pela ocorrência de lesões físicas, muitas vezes irreversíveis, e de morte de mulheres que desejam interromper a gestação, além dos danos psicológicos gerados pela falta de assistência, tornando este um caso de saúde pública. Ademais, o aborto clandestino gera gastos de diversas naturezas à sociedade, e o compartilhamento de informações com os jovens pode ser um meio eficaz para minimizar esses problemas.


1. INTRODUÇÃO

O Ministério da Saúde informou que uma mulher morre a cada dois dias por consequência de aborto clandestino realizado, enquanto a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) revela que uma a cada cinco mulheres até os quarenta anos já realizou aborto no Brasil. Concomitantemente, através da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) de número 442, se discute, diante do Supremo Tribunal Federal (STF), a possibilidade de interromper a gravidez até a 12ª semana de gestação.

O Código Penal (CP) data do ano de 1940, mas foi recepcionado pela Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988, na medida do que for compatível com as normas constitucionais geradas no paradigma pós-constituição cidadã. Entretanto, o poder legiferante do Estado, até então, não se manifestou para uma discussão qualificada sobre a tipificação do aborto.

Para mais, é importante salientar que a inexistência de educação sexual é um dos maiores fatores para o elevado número dos casos de gravidez precoce e de gravidez não-planejada, por desconhecimento das informações básicas diante das primeiras relações sexuais, no caso de adolescentes, e da falta de acesso aos esclarecimentos e aos meios contraconceptivos para que uma gestação não ocorra. Ainda que tais recursos não sejam totalmente seguros e que haja a possibilidade, mesmo que remota, de uma gravidez, a exceção e o risco não podem ser levados como justificativa ou aquiescência com a consequência. E o ponto inicial de enfrentamento deve ser a efetivação do direito à educação sexual na juventude, a fim de instruir para que não ocorra a concepção indesejada de um feto.

Além disso, o direito ao aborto não pode ser associado a métodos contraconceptivos, uma vez que o aborto é um procedimento invasivo para o corpo da mulher, demandando, portanto, cautela na execução desta intervenção, para que se desenvolva sem que deixe sequelas pelo uso do mecanismo. O aborto, além de não ser método contraceptivo, exige a necessária a observância de requisitos básicos para a realização, os quais não cabe ao STF determinar, tendo em vista que não possui a função típica de legislar.

Assim, este trabalho tem por intuito desenvolver a discussão sobre aborto pela perspectiva da educação sexual na adolescência, elemento este que permitiria a diminuição casos de abuso, assédio, estupro e da própria gestação não-planejada. Além de sugerir requisitos básicos para se permitir a interrupção da gravidez, sem prejuízos à saúde da mulher, impedindo que a descriminalização ocasione novo problema de saúde pública.


2. DIREITO À EDUCAÇÃO SEXUAL

No Capítulo II da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988, intitulado “Dos Direitos Sociais”, há determinação no sentido de que o governo brasileiro deverá garantir acesso à educação, mais especificamente no artigo 6º, abaixo transcrito:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Outrossim, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), em seu Capítulo 3 (Direitos econômicos, sociais e culturais), mais especificamente no artigo 26, vincula os Estados membros à realização de ações para a implementação do direito à educação, senão vejamos:

Artigo 26. Desenvolvimento progressivo

Os Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados. (Grifos Originais).

Percebe-se que a legislação nacional e também internacional reconhecem a importância da educação, como forma de instrução a ser utilizada para o desenvolvimento individual e social, e que é dever do governo buscar a efetivação desse direito social, em prol dos seus cidadãos e da sociedade, como meio para a erradicação da pobreza e da desigualdade, como exemplifica Moraes (2019, p. 227):

Observe-se que, para garantir maior efetividade aos direitos sociais, a Emenda Constitucional nº 31, de 14 de dezembro de 2000, atenta a um dos objetivos fundamentais da República – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais –, criou o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, instituído no âmbito do Poder Executivo Federal, para vigorar até 2010, e tendo por objetivo viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência, devendo a aplicação de seus recursos direcionar-se às ações suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço de renda familiar e outros programas de relevante interesse social voltados para melhoria da qualidade de vida. (Grifos Originais).

Se a educação básica é importante para o desenvolvimento social, a educação sexual deve ser encarada como uma maneira de compreensão do próprio corpo, de retomada das suas possibilidades e de determinação das ações para com ele, que contem com a autorização do indivíduo. Dessa maneira, adolescentes que têm contato com estes aprendizados por meio da escola e da família, estão potencialmente mais protegidos do risco de contrair infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) ou de ocorrer uma gravidez indesejada. Inobstante, contribuiria para a identificação de abuso sexual e assédio contra crianças, a ser percebido e denunciado pelas próprias vítimas, caso estejam munidas com o conhecimento necessário para tal.

Sobre tal questão, importa trazer Mary Wollstonecraft (2015, p. 44), no momento em que discorre sobre a opinião geral do caráter sexual nos indivíduos, a educação dada às mulheres e a perpetuação de maneiras femininas subservientes, e diz:

Por educação individual, quero dizer, já que o sentido da palavra não está definido de forma precisa, uma atenção à criança que lentamente afie os sentidos, forme o temperamento, regule as paixões logo que começam a crescer, e acione o processo de entendimento antes que o corpo chegue à maturidade; para que então o homem apenas tenha que prosseguir, e não começar, o importante dever de aprender a pensar e raciocinar.

[...]

Consequentemente, a educação mais perfeita de todas, em minha opinião, é tanto um exercício do entendimento como é voltada para fortalecer o corpo e formar o coração. Ou, em outras palavras, para possibilitar ao indivíduo que adquira tais hábitos de virtude, pois irão torná-lo independente.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Tendo em vista que o Estado deve garantir a efetivação do direito à educação, como um instrumento para o desenvolvimento dos potenciais do indivíduo, os seus gestores são diretamente responsáveis pela ausência de oferecimento e também pela qualidade da educação prestada, conforme art. 208, § 2º da CRFB/1988 e art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei nº 8.069/1990, a seguir expostos:

CRFB/1988

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

(...)

§ 2º O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.

Lei nº 8.069/1990

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Ao passo em que os cidadãos recorrem ao Poder Judiciário para que haja a materialização deste direito, em mesma medida há uma análise, em decorrência da judicialização desse direito social, do impacto no orçamento público provocado por decisões judiciais em relação a esse tema, conforme narra Toffoli (2018, p. 604):

Nessa seara, em abril de 2007, o Supremo Tribunal Federal proferiu decisão de grande alcance e extremamente corajosa, estabelecendo que, “conforme preceitua o art. 208, inc. IV, da Carta Federal, consubstancia dever do Estado a educação, garantindo o atendimento em creche e pré-escola às crianças”. E mais: “Deficiência orçamentária não tem o efeito de projetar no tempo e, conforme a política em curso, indefinidamente, o cumprimento de preceitos fundamentais de importância ímpar, no que voltados à educação” (AgRg no RE 384.201-3/SP).

O direito à educação sexual possui elo com a dignidade da pessoa humana, uma vez que uma pessoa instruída do conhecimento de suas potencialidades e possibilidades, capaz de pensar sobre o que pode ou não ser feito com seu corpo, além do seu regular funcionamento, salvaguardada de gravidez indesejada ou infecções sexualmente transmissíveis, está hábil a desenvolver uma vida digna e humanizada, a exemplo da complexidade do próprio princípio, previsto no artigo 1º, III, da Constituição, como conceituado por Greco (2019, p. 22):

Conceituar dignidade da pessoa humana, já no século XXI, ainda continua a ser um enorme desafio. Isso porque tal conceito encontra-se no rol daqueles considerados como vagos e imprecisos. É um conceito, na verdade, que, desde a sua origem, encontra-se em um processo de construção. Não podemos, de modo algum, edificar um muro com a finalidade de dar contornos precisos a ele, justamente por ser um conceito aberto. (Grifos Originais).

Portanto, conclui-se que direito à educação é um direito humano e que toda criança e adolescente possui a garantia de acesso à informação sexual, devendo os serviços especializados fornecerem a devida orientação, por permissão e prestação estatais. Além do mais, é imprescindível o incentivo e apoio dos pais, proporcionando aos filhos tais diretrizes, para que os jovens venham a lidar com a sua sexualidade de forma consciente e com autocuidado, capazes de reconhecer as situações de abusos e se prevenindo em relação a infecções sexualmente transmissíveis e a gravidezes indesejadas.


3. DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

No século XX, a compreensão do direito de disposição sobre o próprio corpo foi um acontecimento para as mulheres. A partir dos movimentos feministas dos anos 70, a autonomia das mulheres foi retirada do ambiente da esfera privada e tornou-se questão política central nas lutas feministas em dimensão pública (DEL RE, 2009, p. 21). Como desdobramento, a discussão política sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres se expande internacionalmente, ao passo que, nacionalmente, a materialização do direito à autonomia da mulher segue defasada e destoante entre nações e continentes.

A luta feminista cresceu nos últimos anos, mas o esforço pela descriminalização do aborto, como uma das facetas do direito sexual e reprodutivo, não se tornou pretérito. Tampouco no Brasil, no qual os mecanismos de informação e educação sexual permanecem aquém das necessidades do país (DEL RE, 2009, p. 22), incluindo, portanto, os casos de gravidez indesejada, por circunstâncias alheias à vontade da mulher. A prática nem sempre foi tipificada, sendo inclusive executada por diversas classes da sociedade, como expõe Capez (2019, p. 188-189):

A prática do aborto nem sempre foi objeto de incriminação, sendo muito comum a sua realização entre os povos hebreus e gregos. Em Roma, a Lei das XII Tábuas e as leis da República não cuidavam do aborto, pois consideravam o produto da concepção como parte do corpo da gestante e não como ser autônomo, de modo que a mulher que abortava nada mais fazia que dispor do próprio corpo.

No Brasil, o aborto é tipificado, em observância ao princípio da legalidade, pois “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal” (CÓDIGO PENAL, art. 1). Deste modo, o legislador, no Capítulo I (Dos Crimes Contra a Vida), da parte especial do CP, mais especificamente do artigo 124 ao 128, tomou a decisão político-jurídica de discorrer sobre o aborto. Entretanto, para fins de especialidade, haverá a citação apenas dos artigos 124 e 126 do CP, a seguir expostos:

Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena - detenção, de um a três anos.

(...)

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de um a quatro anos.

Alicerçada na defesa da autonomia da mulher, atualmente corre junto ao STF uma ADPF de nº 442 que busca declaração de inconstitucionalidade por não recepção pela Constituição dos artigos supramencionados, uma vez que afrontaria os princípios da dignidade da pessoa humana, da cidadania, a não discriminação, a inviolabilidade da vida, a liberdade, a igualdade, a proibição de tortura ou o tratamento desumano e degradante, e o planejamento familiar das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos (decorrentes dos direitos à liberdade e igualdade), além do entendimento do caso como de saúde pública.

Esta contenda dispõe de respaldo jurídico para parâmetro de controle constitucional nos art. 1º, incisos I e II; art. 3º, inciso IV; art. 5º, caput e incisos I, III; art. 6º, caput; art. 196; art. 226, § 7º, todos da Constituição da República. Ressalta-se que o STF já firmou o entendimento de que não configura aborto a interrupção voluntária de gravidez (IVG) no caso de feto anencefálico ou anencéfalo, conforme julgamento da ADPF nº 54, destacando-se, ainda, a resolução do Conselho Federal de Medicina de nº 1.1989, que dispõe sobre o diagnóstico nesse cenário e dá outras providências.

Cabe ressaltar que, em uma análise rápida sobre a ADPF nº 442, mesmo que declarada a inconstitucionalidade dos artigos pelo STF, seria mais relevante política e juridicamente que o Congresso Nacional (CN) promovesse a discussão sobre o tema e viesse a legislar sobre, uma vez que posterior lei deixará ineficaz a decisão, sendo esta favorável à descriminalização ou não.

Pormenorizando, para que algo deixe de ser considerado crime, a conduta do agente, dolosa ou culposa, precisa ser suprimida do ordenamento jurídico como forma tipificada (fato típico), rompendo, para tanto, com a conditio sine qua non, isto é, quebrando a relação entre o ato realizado por um indivíduo, o resultado produzido e o caráter danoso deste resultado, relação esta que deve estar anteriormente prevista no Código Penal brasileiro. Nesse contexto, explana Greco (2019, p. 15):

Para determinado resultado ser atribuído ao agente é preciso que a sua conduta tenha sido dolosa ou culposa. Se não houve dolo ou culpa, é sinal de que não houve conduta; e não existindo o fato típico, como consequência lógica, não haverá crime. Os resultados que não foram causados a título de dolo ou culpa pelo agente não podem ser a ele atribuídos, pois a responsabilidade penal, de acordo com o princípio da culpabilidade, deverá ser sempre subjetiva.

Já na tipificação do crime de aborto, por se tratar de ação livre, seja do agente ou de terceiro que induz ao ato ilícito, classifica Capez (2019, p. 191):

Trata-se de crime de ação livre, podendo a provocação do aborto ser realizada de diversas formas, seja por ação, seja por omissão. A ação provocadora poderá dar-se através dos seguintes meios executivos:

(i) meios químicos: são substâncias não propriamente abortivas, mas que atuam por via de intoxicação, como o arsênio, fósforo, mercúrio, quinina, estricnina, ópio etc.;

(ii) meios psíquicos: são a provocação de susto, terror, sugestão etc.;

(iii) meios físicos: são os mecânicos (p. ex., curetagem); térmicos (p. ex., aplicação de bolsas de água quente e fria no ventre); e elétricos (p. ex., emprego de corrente galvânica ou farádica).

– omissão: o delito também pode ser praticado por conduta omissiva nas hipóteses em que o sujeito ativo tem a posição de garantidor; por exemplo, o médico, a parteira, a enfermeira que, apercebendo-se do iminente aborto espontâneo ou acidental, não tomam as medidas disponíveis para evitá-lo, respondem pela prática omissiva do delito.

“O aborto é uma zona de conflito no qual são perceptíveis a ação do Estado e os limites das liberdades individuais”, é desta forma que Kathlen de Oliveira (2016, p. 85) sintetiza a dimensão política e localizada da discussão acerca do aborto. Ainda com a autora (2016, p. 88), a questão do aborto perpassa pela noção e desconstrução da sacralidade da vida e, consequentemente, da biopolítica. Isto quer dizer que além do nascimento biológico, que é aquele pelo qual damos partida na vida, há o nascimento biográfico, este último constituindo a percepção que se tem do que é a vida humana inserida no mundo e da sua sacralidade. E é a interação do biológico com o biográfico que constrói a biopolítica.

Neste ponto é que a vida biográfica da mulher encontra a normatização social, que logo desemboca na normatização jurídica e no controle da mulher pelo Estado, e sobre isto, Oliveira (2016, p. 87) diz:

Na normatização das relações, das intimidades, o que está em jogo são as liberdades individuais tão aclamadas, mas tão ilusórias para alguns quanto o direito de decidir. Mesmo que a livre consciência, a liberdade de pensamento e o direito de escolha sejam “valores” democráticos e ditos consolidados, ao se adentrar nessas questões rotuladas como morais, não se ultrapassa a barreira da decência. “Decência” que invade as possibilidades biográficas, justamente por regular a biologia.

A biopolítica, este espaço de regulação social e de disputa de poder, se manifesta a cada restrição de direitos sexuais e reprodutivos levada a cabo no Brasil. Não apenas pela manutenção da criminalização do aborto, mas também pelas constantes supressões de políticas e de direitos relacionados à autonomia das mulheres, inclusive a nível de normatização internacional a qual o Brasil constrói e recepciona.

Dito isto, e adentrando na construção concreta do direito ao aborto no Brasil, entende-se que, ainda que a maior parte da população brasileira não deseje a alteração da norma jurídica que proíbe o aborto, a manutenção da criminalização resulta em diversos prejuízos também à sociedade, uma vez que a proibição, decorrente de uma decisão biopolítica, criou e alimenta um sistema de abortos clandestinos que funciona diariamente no Brasil, alimentado pela ocorrência de gravidez indesejada ou não-planejada.

Além da óptica jurídica, deve-se considerar que, quando alguém aborta, o Sistema Único de Saúde (SUS) é responsável por cuidar do paciente para a devida recuperação e por minimizar os danos psicológicos de quem concretizou o aborto, gerando para o Estado ônus não projetados e estruturados. Outrossim, convém levar em consideração a quantidade de mulheres que alcançam o resultado mais gravoso: mulheres que chegam a óbito devido à realização de procedimentos precários (muitas vezes caseiros) que visam a interrupção da gravidez. Para Nucci (2019, p. 105) são argumentos pró e contra o aborto:

Deve o Direito Penal intervir nesse cenário e manter o crime de aborto? São fundamentos pró-aborto: a) direito à intimidade, buscando demonstrar que a questão vincula-se à intimidade da mulher e o seu direito de dispor do próprio corpo como desejar; b) evitar abortos clandestinos, tendo em vista o número elevado de mulheres, que se submetem a clínicas mal aparelhadas e parteiras sem formação, sofrendo lesões graves ou até mesmo falecer. Há, inclusive, uma discriminação social, pois mulheres de alto poder aquisitivo também realizam abortos, mas em locais bem preparados, com médicos bem formados; c) evitar crianças defeituosas, voltando-se ao direito dos pais de ter um filho saudável, que não os penalize o resto da vida, sob cuidados intensivos e caros; d) feto sem consciência, expondo o debate acerca da natureza do embrião, ou seja, se possui vida autônoma ou se é parte do corpo da mulher, sendo esta a posição de quem apoia o aborto; e) gravidez decorrente de estupro, apontando o caráter humanitário de impedir o sofrimento da mulher, vítima de violência traumatizante, durante toda a gestação e, depois, para eventual criação do filho não desejado; f) salvar a vida da gestante, evidenciando clara situação de estado de necessidade, excludente de ilicitude, nos termos do art. 24 do Código Penal.

São argumentos contrários ao aborto: a) limite à intimidade, pois esta é uma comodidade ao indivíduo, constitucionalmente garantida, mas não para formar um escudo protetor para o cometimento de delitos; como exemplos de que a intimidade não é absoluta estão os casos de violência doméstica e abuso infantojuvenil, quando o Estado intervém na vida privada para socorrer as vítimas; b) abortos clandestinos sempre existirão, pois as mulheres mais pobres podem procurar parteiras justamente para manter em sigilo a gravidez indesejada; outro ponto seria evitar as filas dos hospitais públicos; c) repulsa à eugenia, contornando-se o abusivo gesto de escolher filhos perfeitos, tal como se pregou, no passado, em regimes totalitários, como o nazismo; d) feto como ente autônomo, buscando afirmar que a vida humana inicia-se com a concepção ou, pelo menos, com a nidação (fixação do óvulo fecundado na parede do útero materno); o aborto seria equivalente a um homicídio; e) gravidez resultante de estupro constitui caso raro e, se assim não fosse, pode-se encaminhar a criança nascida para adoção; f) salvar a vida da gestante já é uma realidade para a medicina moderna, sem necessidade de praticar o aborto; noutros termos, na maioria dos casos, ambos se salvam.

Como exposto acima, existe a necessidade de políticas sociais que visem a proteção e promoção da saúde da mulher após o procedimento do aborto, o que demanda subsídios econômicos à administração pública, por ser este o direito social à saúde previsto na Constituição, como cita Barcellos (2019, p. 221):

O direito à saúde é disciplinado do art. 196 ao art. 200. Há grande controvérsia acerca do que exatamente o direito à saúde confere em termos de prestações para os indivíduos e a coletividade. O art. 196 estabelece que o direito à saúde é garantido mediante “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos”, bem como mediante o “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Além dos procedimentos abortivos domésticos, há clínicas clandestinas que realizam o aborto com todo o aparato médico, mas de forma bem mais onerosa, e ainda, para a minoria das mulheres, que detêm melhor poder aquisitivo, a possibilidade de viajar para outros países com o intuito de proceder com o aborto. Evidente é a relação do pertencimento de classe social com as consequências físicas, psicológicas e jurídicas que um procedimento de aborto pode ocasionar, na medida em que, estatisticamente trazido pela Pesquisa Nacional de Aborto, a maioria dos casos de morte ou consequências graves recaem sobre as mulheres em vulnerabilidade social, a saber mulheres pobres e negras.

Assim, a descriminalização do aborto se faz necessária no país, uma vez que a proibição, além evidenciar a menorização jurídico-política das mulheres por meio da supressão dos direitos sexuais e reprodutivos, prejudica mais profundamente a parcela mais pobre da população feminina, contraditando também o princípio da isonomia. Tal descriminalização deve ser concretizada pelo Legislativo, na observância do princípio da separação de Poderes, como narra Barroso (2019, p. 181):

O conteúdo nuclear e histórico do princípio da separação de Poderes pode ser descrito nos seguintes termos: as funções estatais devem ser divididas e atribuídas a órgãos diversos e devem existir mecanismos de controle recíproco entre eles, de modo a proteger os indivíduos contra o abuso potencial de um poder absoluto. A separação de Poderes é um dos conceitos seminais do constitucionalismo moderno, estando na origem da liberdade individual e dos demais direitos fundamentais. Em interessante decisão, na qual examinava a possibilidade de controle judicial dos atos das Comissões Parlamentares de Inquérito, o Supremo Tribunal Federal identificou esse sentido básico da separação de Poderes com a vedação da existência, no âmbito do Estado, de instâncias hegemônicas, que não estejam sujeitas a controle.

Apreende-se que, a partir do momento em que não cabe ao Poder Judiciário determinar a descriminalização do aborto por ADPF, e há uma demanda concreta para que o SUS possa realizar o procedimento em hospitais públicos, o Poder Legislativo precisa promover o debate público e democrático com o intuito de definir o tema, a despeito de que a postura seja considerada impopular, afinal, o bem coletivo, inclusive das minorias, devem ser tutelados para promover o reconhecimento político da pluralidade de vozes.

Sobre os autores
Pedro Henrique Silva de Sousa

Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR Especialista em Direito e Processo Constitucional e em Direito Processual Civil pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará - UFC

Nelma Layelle da Costa Anchiêta

Advogada. Pós-Graduada em Direito e Processo Constitucionais pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Piauí - UFPI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Pedro Henrique Silva; ANCHIÊTA, Nelma Layelle Costa. Do direito à educação sexual à descriminalização do aborto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6494, 12 abr. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80242. Acesso em: 22 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!