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A atividade empresária e a adaptação às disposições do Código Civil de 2002

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Agenda 27/02/2006 às 00:00

4. O contrato social antes e depois do novo diploma

            As normas que se referem ao contrato social estão consubstanciadas nos artigos 997 a 1000 do Código Civil de 2002, na parte que se refere à sociedade simples, aplicável por extensão às demais sociedades, quando definido em lei. O contrato de sociedade é a concretização da affectio societatis, o pressuposto para a existência de personalidade jurídica, adquirida, conforme já vimos, através do registro.

            Sob a égide da lei comercial anterior, parte da doutrina considerava o contrato de sociedade como de natureza bilateral e seu objeto social como o fim colimado pelos sócios [11]. As sociedades dividiam-se em civis e mercantis, de acordo com a atividade desempenhada. Havia, ainda, a possibilidade de existência de sociedades civis sem fins lucrativos, as associações.

            O Código Civil de 2002 é a consolidação de certos princípios atinentes ao contrato social, defendidos pela doutrina adepta à Teoria da Empresa. Requião, por exemplo, de há muito considerava o contrato de sociedade como de natureza plurilateral, havendo a conjugação de vontades destinadas a um mesmo fim. Também o objeto da sociedade não é um fim em si mesmo, porque a hermenêutica do novel diploma civil deixa claro que não há sociedade cuja finalidade não seja econômica; outrossim, a teoria do ato ultra vires societatis acaba por tornar clara esta distinção: a atuação da sociedade deve se limitar ao objeto social constante do contrato, mas a finalidade (o fim) social não é a realização do objeto, e sim a lucratividade [12].

            As sociedades têm fins lucrativos. A atuação sem finalidade lucrativa é reservada às associações e fundações, pessoas jurídicas na forma do artigo 44 do Código Civil. Assim, a distinção hoje feita muda as atenções para o desenvolvimento ou não de atividade empresária, qual seja, organização profissional para a produção ou circulação de bens ou serviços. As sociedades serão simples (incluídas as cooperativas, qualquer que seja o seu objeto) ou empresárias (incluídas as sociedades anônimas, qualquer que seja o seu objeto), devendo as primeiras submeter-se à inscrição no Registro Civil das Pessoas Jurídicas e as segundas, no Registro Público de Empresas Mercantis. As normas gerais relativas ao contrato social, relembra-se, aplicam-se a todas elas.

            É necessário lembrar que a sociedade simples poderá se constituir como pura ou adotar um dos demais tipos societários, bem como as características que não lhes modifique a natureza.

            4.1. Elementos essenciais e elementos dispositivos

            Enuncia o artigo 997 do Código Civil que a sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará: 1) descrição completa dos sócios, sejam pessoas naturais, sejam jurídicas; 2) denominação, sede, objeto e prazo da sociedade; 3) capital social; 4) quotas sociais e sua realização; 5) as prestações a que se obriga o sócio cuja participação consista em serviços [13]; 6) as pessoas naturais que administrarão a sociedade, e seus poderes; 7) a participação de cada sócio nos lucros e nas perdas [14]; e 8) se os sócios responderão subsidiariamente pelas obrigações sociais [15]. Estes elementos, unidos aos elementos essenciais gerais do negócio jurídico, quais sejam, capacidade do agente [16], objeto lícito e forma não-defesa em lei, são obrigatórios do contrato social.

            Ao mencionar "cláusulas estipuladas pelas partes", o legislador se refere aos elementos dispositivos do contrato social. Assim, nada obsta que os sócios determinem que a sociedade deva se dissolver automaticamente após o falecimento de um dos sócios [17], ou que não possam abrir filiais no território nacional durante certo lapso de tempo.

            O contrato social deverá ser levado a registro nos trinta dias subseqüentes, no órgão competente, sob pena de sua personalidade jurídica produzir meramente efeitos ex nunc, isto é, do registro para a frente; obedecido o prazo, os efeitos são ex tunc, alcançando a data de assinatura do documento. O órgão responsável pela administração do registro de empresários individuais e sociedades empresárias é o Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC); responsáveis pelos procedimentos concretos, de execução, são as Juntas Comerciais, de competência estadual.

            4.2 Critérios técnicos da Junta Comercial do Estado de São Paulo

            A Junta Comercial do Estado de São Paulo (JUCESP) tem competência sobre todos os registros de empresários individuais e sociedades empresárias paulistas. Segue instruções e pareceres emanados diretamente do Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC), bem como o Código Civil vigente. O registro de empresas está sob responsabilidade de seus Vogais, que delegam a verificação para seus técnicos autorizados [18].

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            É reservado ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins (que são as próprias Juntas Comerciais) o não-arquivamento de contrato social que não obedeça aos requisitos legais de composição – elementos essenciais, ou cujo nome empresarial colida com outro já ou cujo nome empresarial colida com outro jjurreal como o objetivo ao qual deve se propor um emado e levado a registro. Da mesma forma, é autorizada a exigência de documentos necessários à avaliação da veracidade das informações constantes do documento constitutivo da sociedade, bem como de suas posteriores alterações. Nenhuma alteração ou modificação que diga respeito à sociedade poderá ser oposta a terceiros sem que esteja arquivada no respectivo órgão de registro.

            Infelizmente, os efeitos práticos da atividade técnica da JUCESP são percebidos de forma negativa consoante aos envolvidos de fato; os usufrutuários de seus serviços, não raro sem os conhecimentos jurídicos necessários, acabam sendo levados a adotar posturas não-exigidas e, quantas vezes, até a dissimular seus contratos. O contrato de sociedade é formal porque é escrito, e não porque exige formalidade em sua elaboração ou porque deva-se seguir palavras sacramentais específicas [19]. Da mesma forma, consideramos a busca da verdade real como o objetivo ao qual deve se propor um órgão de Registro Público, e não a aceitação e mecanização da verdade formal. No entanto, a atividade registrária está sujeita à forma eleita pelo DNRC em seus "Manual do Empresário" e "Manual da Sociedade Limitada", fonte da solução e base do problema, seja por si só, seja por sua interpretação.

            Há um outro e principal fato que merecerá destaque nestas linhas: a imposição da JUCESP à obediência do artigo 2.031 do Código Civil, que trata do prazo para adaptação dos contratos sociais à lei nova, o que merecerá análise nos dois próximos tópicos.


5. A adaptação dos contratos sociais ao Código Civil de 2002

            Já mencionamos, embora brevemente, a importância e as implicações causadas pela adoção da Teoria da Empresa pelo ordenamento jurídico brasileiro, inserida no Código Civil como uma tentativa de unificação do Direito das Obrigações (no dizer do próprio Miguel Reale, um dos autores do projeto, apresentado em 1975). O Direito é uma realidade dinâmica, um fato social em constante movimentação e modificação, porque está presente onde está a sociedade, e acompanha a sociedade muito mais do que é acompanhado. Nada mais lógico do que promover, então, as adaptações que se fizerem necessárias aos textos legais, como resultado da evolução social em determinado momento histórico.

            Buscando concretizar este objetivo, o legislador determinou taxativamente no artigo 2.031 do Código Civil "prazo fatal" (embora posteriormente alongado) para que as associações, sociedades, fundações e empresários promovessem a adaptação de seus contratos, estatutos e requerimentos às novas disposições empresariais. Enuncia a Lei nº 11.127, de 28 de junho de 2005, que altera a redação do artigo 2031: "as associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, bem como os empresários, deverão se adaptar às disposições deste Código até 11 de janeiro de 2007." É uma busca pela uniformidade e avanço da atividade empresária, porém inaplicável face a nosso ordenamento jurídico, devido à logicidade que é cobrada do hermeneuta.

            5.1. O ato jurídico perfeito

            Em teoria, o ordenamento jurídico é uma estrutura lógica, baseada em normas dispostas harmonicamente seguindo critérios de hierarquia e importância, sendo aplicáveis diversos princípios capazes de evitar a insegurança jurídica, isto é, o não-saber qual norma deverá ser aplicada ao caso concreto. Assim, a Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei 4.567/42) já prenunciou em seu artigo 6º que a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Houve a recepção pela Constituição de 1988; aliás, mais que recepção: esta proteção foi elevada a nível constitucional, tornando-se norma de ordem pública e garanta fundamental, sobre a qual não será possível sequer versar sobre a possibilidade de emenda. Está no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

            O ato jurídico lato sensu é o acontecimento que depende da vontade humana e que produz efeitos jurídicos queridos pelo agente. E o ato jurídico perfeito é, segundo a doutrina, aquele consumado de acordo com a lei vigente ao tempo que se efetuou [20]. Este conceito irá abranger todos os negócios jurídicos válidos praticados de acordo com a lei vigente ao tempo de sua celebração, incluindo os contratos de sociedade e os estatutos, bem como os requerimentos de empresário (antigas declarações de firma individual), por extensão do artigo 2.031 do Código Civil.

            Este é um princípio fundamental para que se realize a segurança do direito, visto que inibe qualquer insegurança que venha a pairar sobre ato jurídico praticado em consonância com as normas vigentes no tempo da manifestação válida de vontade e de sua expressão jurídica. É um princípio, consideramos, superior até mesmo à própria necessidade de o Direito acompanhar a evolução social. Se fosse de outra forma, a norma penal que previsse punição mais severa para determinado crime retornaria para agravar a pena do condenado, e seria esquecido o princípio da irretroatividade da lei penal.

            5.2. O artigo nº 2.031 do Código Civil: há uma antinomia jurídica?

            A questão que se nos apresenta é totalmente inevitável: apresenta-se antinomia jurídica entre o artigo 2.031 do Código Civil e o artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal? A resposta é sim, há uma antinomia aparente. Antinomia é o conflito entre duas normas ou princípios, em sua aplicação a um caso concreto, e os critérios para sua solução, quando aparente (isto é, solucionável dentro das regras existentes), são o hierárquico (lex superior derrogat inferiori), o cronológico (lex posterior derrogat priori) e o da especialidade (lex specialis derrogat generali). Sem sombra de dúvida e devido à presunção de coerência do ordenamento jurídico, a norma civil não é válida face à norma constitucional, e tem a sua existência impugnada: há a supremacia do critério lex superior derrogat inferiori.

            Não é a posição adotada pela JUCESP, ao julgar necessária, embora informalmente [21], a adaptação dos contratos de sociedade e requerimentos de empresário, baseada no artigo 2.031 do diploma civil, a ponto de tomar aspecto "impositivo" por meio de seus técnicos e pela propaganda da mídia. Assim também diversas organizações contábeis, que recomendam a adaptação. Até 10 de janeiro de 2005, prazo limite para adaptação até a superveniência da Medida Provisória nº 234 (que é do mesmo dia, e alterou o prazo para adaptação, para ser posteriormente convertida na Lei 11.127/05), as filas às portas das Juntas Comercias (principalmente no Estado de São Paulo) eram enormes; auxiliares de escritório, "motoboys" e pequenos empresários com pilhas de processos às mãos para o obedecimento do prazo fatal, sob o fantasma da responsabilidade social ilimitada das sociedades em comum, que seria a punição para aquela sociedade limitada que descumprisse o famigerado artigo. Todos correndo contra o tempo para levar a efeito uma norma juridicamente inválida, sob pena de, também, não conseguir obter financiamentos bancários em virtude da não-adaptação. Qual seria a defesa de uma instituição bancária questionada em juízo em virtude de não ter aceitado um contrato social desatualizado, para cadastro de cliente? É manifesta ilegalidade e descumprimento do princípio da isonomia, visto que não se poderá alegar "desatualização de contrato social" para recusar-se ao oferecimento do serviço.

            O próprio DNRC abre uma hipótese de não-adaptação de cláusula contratual ao novo Código, desde seu Parecer Jurídico DNRC/COJUR nº 125/03, ao dizer que as sociedades constituídas por cônjuges casados sob o regime da comunhão universal de bens não deverão adaptar-se ao artigo 977 do diploma civil (que dispõe sobre a vedação de que pessoas casadas sobre este regime contratem sociedade). É mencionado, taxativamente, que esta permissibilidade se dá em respeito ao ato jurídico perfeito; então, a nosso ver, há uma evidente contrariedade entre a opinião defendida neste parecer e a adaptação que é cobrada dos empresários [22]. Outrossim, se esta proteção é dada aos cônjuges casados sob o regime da comunhão universal que já contraíram sociedade, é de bom tom considerá-la extensível a todos os demais empresários, por força do princípio lógico "quem pode o mais, pode o menos".

            Inegavelmente, é uma absoluta infelicidade para o Direito o fato de o artigo 2.031 do Código Civil, na prática, ter superado (e estar superando) um princípio geral de direito, uma garantia fundamental constitucionalmente assegurada, como o ato jurídico perfeito. Os que sorriem, sem dúvida, são os beneficiados economicamente pela avalanche de processos que já vieram, vêm e virão a registro e alteração até 11 de janeiro de 2007. Aos microempresários, principais atingidos por serem maioria, ainda haverá o medo do "fantasma" da pseudo-ilegalidade que se aproxima, por muito tempo. Em palavras mais específicas, é defendida a necessidade de adaptar, mas as custas e os preparos não serão deixados de lado em nome da regularidade do empresário.

Sobre o autor
Thiago da Silva Saes

bacharelando em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), em Franca (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAES, Thiago Silva. A atividade empresária e a adaptação às disposições do Código Civil de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 970, 27 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8034. Acesso em: 30 abr. 2024.

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