3. O modelo garantista de legitimidade
Nos tópicos precedentes procuramos expositar a Teoria do Garantismo Jurídico de forma resumida em grandes linhas, após breves considerações acerca do sistema garantista enquanto modelo de uma Teoria geral, acrescida de suas implicações filosóficas e políticas na construção de um paradigma diferenciado para melhor compreensão dos modernos ordenamentos jurídicos, a fim de buscar reunir elementos que fundamentem o modelo garantista de legitimidade, projetado por Ferrajoli.
Como dito, os princípios de legitimação interna (ou jurídica) e externa (ou moral), próprios da tradição jurídica, puderam ser compreendidas por uma alternativa mais geral, centrada na filosofia política, a partir das doutrinas políticas que Ferrajoli denominou de autopoiéticas (que fundamentam o Estado e o direito sobre si mesmos), e as denominadas doutrinas heteropoiéticas (doutrinas políticas que fundamentam o Estado e o direito sobre finalidades sociais).
Assim, o garantismo, no seu sentido filosófico-político, consubstancia o seu primado na fundação heteropoiética do direito, separado da moral.
Tal assertiva, segundo Cademartori, leva ao entendimento de que "O Estado de direito é caracterizado politicamente pelo garantismo como um modelo de ordenamento justificado ou fundamentado por fins completamente externos, geralmente declarados em suas Constituições, mas sempre de forma incompleta, e a política é vista como do agir social, servindo de critério de legitimação para a critica e a mudança do funcionamento de fato e dos modelos de direito vigentes." [27]
Pode-se aferir então, que a legitimidade dos poderes sob a ótica garantista é sempre a posteriori, relaciona-se a cada um de seus atos singularmente. Dessa forma, a legitimidade é medida em graus, variável segundo a aplicabilidade das funções próprias de cada poder. O grau de garantismo seria maior, por exemplo, se observássemos somente as normas estatais vigentes sobre os direitos sociais, em um país como o nosso, mas seria ao revés, em termos de aplicabilidade dessas mesmas normas, muito menor.
O garantismo contrapõe-se as tradicionais teorias de legitimação, na medida em que denuncia o comportamento ideológico em que se submeteram tais teorias.
É categórico ao afirmar que essas teorias se transformaram em ideologias de legitimação, pois se estabeleceram não como ponto de partida, mas como fontes de legitimação absoluta dos sistemas políticos.
O modelo garantista de legitimidade, compreende o direito e o Estado como instrumento de consecução, para se chegar a um fim, vinculado a interesses externos a ele mesmo. Há uma evidente ligação entre os poderes e os direitos fundamentais, a missão do Estado de Direito não se limita ao plano normativo, mas se estende a luta social (fática e política), para assegurar o cumprimento das garantias vislumbradas pela Constituição.
O "ponto de vista externo", incorporado no moderno Estado de direito em normas Constitucionais dos direitos fundamentais dos cidadãos, equivale neste sentido, à assunção, para fins de legitimação e da perda de legitimação ético-política do direito e do Estado, do ponto de vista exclusivamente externo. Tanto é assim, que a perda de um ponto de vista ético-político externo, independente do interno, implicaria na negação da legitimidade e conseqüentemente no surgimento de uma doutrina de ausência de limites aos poderes do Estado.
Portanto, é de clareza solar que o modelo garantista de legitimidade, ao avaliar o poder a partir de valores superiores e externos ao Estado, assegura a manutenção do poder como meio à satisfação dos interesses da sociedade e, portanto, é uma teoria coerente com a análise de instâncias políticas.
4. Considerações finais
Como visto, a Teoria Geral do Garantismo Jurídico, formulada por Ferrajoli, nasce como resposta a uma das questões centrais da Filosofia do Direito na atualidade, no que se refere ao debate acerca da imensa disparidade entre teoria e prática em sede de direitos fundamentais do homem.
O que se constata hoje em nosso meio como uma crise institucional, que também se revela nas questões ético-filosóficas como da legitimidade e da distinção das noções de vigência e validade, está relacionada principalmente a dinâmica contraditória entre a declaração solene dos direitos fundamentais num ordenamento jurídico e o emprego dos meios necessários para a sua concretização. [28]
Dessa feita, surge a necessidade de adoção de um modelo, que além de fornecer os instrumentos necessários para tal prática, seja, nas palavras de Cademartori, "...uma ferramenta idônea para, por um lado, descrever o Estado Constitucional de Direito enquanto fenômeno normativo, e de outro, postular o resgate de sua legitimidade, subtraindo-o a empregos desviados de seus fins que maiorias eventuais possam utilizar." [29]
Ao propor um modelo ideal de ação, caracterizado pela primazia do direito substancial, Ferrajoli aponta para a incorporação de limitações e imposições normativas de atuação dos governos em seus ordenamentos jurídicos, para que os mesmos se aproximem do real Estado de Direito, com o propósito de se tornar um sistema efetivo de garantias para os cidadãos.
Cabe ao intérprete, fazer com que a finalística garantista algumas vezes implícita na norma, venha à tona, em toda sua concretude, enunciando práticas tedencialmente antigarantistas dos governos, que motivados por fatores econômicos, muitas vezes em desconformidade com a lógica jurídica, passam por cima das garantias consolidadas pelas Constituições, voltada à satisfação dos interesses da sociedade.
Neste sentido, o resgate da legitimidade do Estado de Direito, é um trabalho contínuo que deve ser feito coletivamente, por toda a sociedade. Não se limita ao plano normativo, é uma luta social cotidiana, para assegurar o cumprimento das garantias Constitucionais. Sob pena de cairmos na falácia normativista, em que o direito vigente é incontestavelmente tido como válido, e continuarmos submetidos a sistemas desiguais e manipuladores, que sustenta o Estado como única forma legitima de produção e aplicação do direito.
Bibliografia:
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do advogado, 1999.
KELSEN. Hans: Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
BOBBIO, Norberto: A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
CADEMARTORI, Sérgio U.; XAVIER, Marcelo Coral. Apontamentos iniciais acerca do garantismo. Artigo disponível na página do Programa Especial de Treinamento do curso de Direito da UFSC na Internet (http://www.ccj.ufsc.br/~pet).
Notas
01 Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. (p.7)
02 Direito e razão, p 684
03 Direito e Razão, p. 683
04 Cadermatori, Sérgio. Estado de Direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do advogado, 1999. (p.155)
05 "neste sentido o garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto de vista externo e ponto de vista interno na valoração do ordenamento, ou mesmo entre o ‘ser’ e ‘dever ser’ do direito. E equivale à assunção, para os fins de legitimação e da perda da legitimação ético-política do direito e do Estado, do ponto de vista exclusivamente externo" (direito e razão, p. 685)
06 Direito e Razão, p. 683
7 Segundo Ferrajoli o poder sub lege, pode ser entendido de duas formas: "num sentido débil, ou lato, ou formal, no qual qualquer poder deve ser conferido pela lei e exercitado na forma e com os procedimentos por ela estabelecidos; e num sentido forte, ou estrito, ou substancial, no qual qualquer poder deve ser limitado pela lei que lhe condiciona não somente as formas, mas também os conteúdos." Direito e Razão. p.687
08 Resumindo as características de um governo per leges, Cademartori conclui : "estes três elementos (generalidade, abstração e vontade geral), conformam a função ou potencial garantista da lei enquanto forma jurídica: enquanto norma geral e abstrata responde às exigências de igualdade e enquanto fruto da vontade geral atende à exigência de liberdade como autonomia ou como determinação autônoma não autoritária." p.23
09 Cademartori.S. Estado de direito e legitimidade, p. 156
10 Para Cademartori, estes dois modelos de legalidade correspondem a fontes de legitimação: "...legalidade em sentido amplo (mera legalidade), segundo a qual a lei é condicionante, e legalidade em sentido estrito (legalidade estrita), por força da qual a lei se encontra condicionada" p. 157
11 Ferrajoli, Direito e razão, p. 688
12 Ferrajoli esclarece: "Mesmo a democracia política mais perfeita, representativa ou direta, é precisamente um regime absoluto e totalitário se o poder do povo for nela ilimitado (...) nem se quer por unanimidade pode um povo decidir (ou consentir que se decida) que um homem morra ou seja privado sem culpa de sua liberdade, que não se reúna ou se associe à outros.." Direito e razão. P. 690
13 Cademartori,S. Op. Cit., p.76
14 Kelsen. Hans: Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1985, p. 205 s e 240 s
15 Direito e razão, p. 684
16 Segundo Cademartori : a) uma norma é "justa" quando responde positivamente a determinado critério de valoração ético-político (logo, extrajurídico); b) uma norma é "vigente" quando é despida de vícios formais, ou foi emanada ou promulgada pelo sujeito ou órgão competente, de acordo com o procedimento prescrito; c) uma norma é "válida" quando está imunizada contra vícios materiais, ou seja, não está em contradição com nenhuma norma hierarquicamente superior; d) uma norma é "eficaz" quando é de fato observada pelos seus destinatários (e/ou aplicada pelos órgãos de aplicação)."P. 80
17 A esse respeito Cademartori esclarece: "De fato, denuncia ele (Ferrajoli) como "ideológicas" tanto as orientações normativistas, que confundem vigência com validade, quanto as teorias realistas, que reduzem a validade à eficácia. As primeiras são tidas como ideológicas por contemplarem apenas o Direito válido, esquecendo-se de sua possível ineficácia; as segundas porque apreciam apenas na normas eficazes, deixando de lado a sua possível invalidade." p. 80
18 Direito e Razão, p. 685
19 Ferrajoli,L Direito e razão, p 685
20 Ibid, p. 705
21 Ibid. p.707
22 Ibid. p. 726
23 Cademartori S. Estado de Direito e legitimidade, p. 166
24 Ferrajoli. Direito e Razão. P.727
25 Cademartori, S U.; Xavier, Marcelo Coral. Apontamentos iniciais acerca do garantismo. Artigo disponível na página do Programa Especial de Treinamento do curso de Direito da UFSC na Internet (http://www.ccj.ufsc.br/~pet).
26 Cademartori, S U.; Xavier, Marcelo Coral. Apontamentos iniciais acerca do garantismo. Artigo disponível na página do Programa Especial de Treinamento do curso de Direito da UFSC na Internet (http://www.ccj.ufsc.br/~pet).
27 Cademartori S. Estado de direito e legitimidade, p. 164
28 Neste sentido, esclarece Bobbio: "... o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, (...), mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados", p. 25.
29 Cademartori, Estado de direito e legitimidade, p. 171