2. Efeitos cíveis da sentença penal absolutória
O efeito da sentença penal absolutória é eminentemente declaratório, nega-se o jus puniendi do Estado. Por isso, "vários efeitos começam a ser produzidos, não importando o fato de haver adquirido a imputabilidade, de sorte que seu cumprimento se faz de imediato" [60]. Os efeitos da sentença variam conforme o seu conteúdo.
Vale esclarecer que "como a responsabilidade civil independe da criminal, certo é que o ato penalmente ilícito não pode ser considerado lícito fora dos domínios penais. A sanção penal exsurge para complementar e reforçar o ilícito extrapenal" [61].
Mirabete [62] mostra uma grande diferença na utilização de fundamentos diversos para a sentença absolutória. Para ilustrar, apresenta a jurisprudência:
Existe diferença jurídica entre a absolvição por falta de prova e por não constituir o fato infração penal, pois, na primeira, restará sempre a dúvida da prática de um crime que não se logrou provar, enquanto que, na segunda, tem-se a certeza de que o fato imputado não constitui infração penal (RJDTACRIM 22/394).
Outro exemplo são os incisos II, IV e VI que tratam de hipóteses de falta de provas e ensejam "o ajuizamento, na esfera cível, de ação de reparação de dano. Não possibilitam a ação de regresso ao trabalho de funcionário público" [63].
Diante à grande diferença na utilização de cada um dos incisos do artigo 386 do Código de Processo Penal e como a sentença penal absolutória não impede a propositura da competente ação indenizatória no juízo civil" [64], vale observar os possíveis efeitos cíveis gerados pelos fundamentos da sentença penal absolutória.
2.1. Provada a inexistência do fato
Provada a inexistência do fato, exclui-se, além da responsabilidade penal, a responsabilidade civil do acusado. Para Fernando Capez, "o inciso I (inexistência do fato) possui importante repercussão na esfera cível, na medida em que impossibilita o ajuizamento de ação civil ex delicto para reparação do dano (CPP, art.66)" [65].
Tourinho Filho também afirma que "se o Juiz absolver o réu, alegando a inexistência do fato, a ação civil não pode ser proposta (CPP, art. 66)" [66]. No mesmo sentido, o entendimento de Eugênio Raul Zaffaroni: "também faz coisa julgada no cível a sentença absolutória que reconhece, de maneira categória, a inexistência material do fato (...)" [67]. Cita-se também José Frederico Marques "nessa hipótese, a sentença absolutória torna impossível a responsabilidade civil (...) indubitável é que ele reconheceu categoricamente a inexistência material do fato" [68].
Diante disso, doutrina e jurisprudência são unânimes nos sentido de que "reconhecido que não houve o fato material, que nada tem a ver com os elementos subjetivos e normativos do tipo, fica impedida a via civil de reparação do dano" [69].
2.2. Ausência de prova da existência do fato
Na ausência de prova da existência do fato permite-se "o ajuizamento de ação civil para debater-se o ilícito em outra esfera do direito" [70].
2.3. O fato não constituiu infração penal
Permite-se o ajuizamento de ação civil para debater-se o ilícito em outra esfera do direito é no caso do fato não constituir infração penal porque "um fato pode não ser considerado criminoso, mas constituir ilícito civil" [71]. Por isso, "absolvido o réu, nada obsta ao exercício da ação civil, pois o fato, embora não constitua ilícito penal, pode constituir ilícito civil. É o que determina o art. 67, III, do CPP" [72].
Marques [73] manifesta-se a respeito dos efeitos cíveis da absolvição fundada no inciso III:
Claro está que essa decisão em nada influirá na que deva ser proferida no juízo civel: uma conduta pode não ser penalmente ilícita e constituir, no entanto, ilícito civil. Diz, por isso, o art. 67 que a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime, não impedirá a propositura da ação civil.
Vale ressaltar que "o erro de tipo, excluindo apenas a tipicidade e, assim, subsistindo a antijuridicidade, não impede a ação civil da reparação do dano (CP, art. 20, caput). É necessário, contudo, que seja essencial e escusável" [74]. Diante do exposto e nos termos no artigo 67, inciso III, do Código de Processo Penal, não se exclui a responsabilidade civil quando o fato imputado ao réu for atípico, pois a conduta poderá ser civilmente ilícita.
2.4. Não há prova do ter réu concorrido para a infração penal
Tourinho Filho ensina que, se o Juiz penal reconhecer, categoricamente, não ter sido o réu o autor do fato criminoso "a propositura da ação civil encontra empecilho no art. 935 do CC" [75]. Damásio de Jesus [76] apresenta a hipótese:
Suponha-se que o sujeito seja processado por crime de peculato-furto (CP, art. 312, §1°), apresentando defesa no sentido de que não se encontrava no local no momento de sua ocorrência. Suponha-se que o réu não consiga prova suficiente do conteúdo da defesa, nem a acusação consiga provar que se encontrava no local no instante do crime. O réu deve ser absolvido, nos termos do artigo 386, IV, do CPP. E face de o juiz não ter negado, categoricamente, a existência do fato, materialidade e a autoria (CC, art. 1.525; CPP, art.66), fica livre a esfera civil para o exercício da reparação do dano.
Diante do exposto, se o Juiz reconhecer a negativa de autoria, com fundamento no inciso IV, do artigo 386 do Código de Processo Penal, caberá a ação civil.
2.5. Existência de circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena
Não há na doutrina regra absoluta em relação aos efeitos cíveis da sentença penal absolutória fundamentada no inciso V, artigo 386, do Código de Processo Penal. Na grande maioria dos casos, na presença de alguma causa excludente da ilicitude ou da culpabilidade, a sentença penal absolutória faz coisa julgada no civil (artigo 65 do Código de processo Penal). Contudo, há casos em que poderá gerar efeitos na esfera cível.
Nas palavras de Jesus esta sentença absolutória "em regra exclui o exercício da ação civil de reparação do dano. Só não o exclui quando a lei civil, embora reconhecendo a ilicitude do fato, determina a obrigação do ressarcimento do dano" [77] . A respeito do tema, Fernando da Costa Tourinho Filho [78] explica:
Absolvido o réu com fundamento numa causa excludente de ilicitude, essa decisão exerce notável influência na jurisdição civil, no campo da satisfação do dano ex delicto, podendo até impedir a propositura da ação civil tal como previsto no art. 65 do CPP, salvo as exceções estabelecidas nos arts. 929 e 930 do CC.
Zaffaroni, a respeito das excludentes da antijuridicidade, preceitua que "faz coisa julgada no cível a sentença criminal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, no estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito (...)" [79].
Como observamos, ausente a ilicitude ou culpabilidade deve o réu ser absolvido porque inexiste crime. Na ocorrência da legítima defesa "fecha-se a porta para o pleito de indenização cível" [80]. Contudo, Damásio de Jesus [81] explica que se a legítima defesa for putativa, cabe ação civil de reparação de dano, pois subsiste a ilicitude, não se aplicando o disposto no artigo 65 do Código de Processo Penal.
Na hipótese de legítima defesa com erro na execução ou com resultado diverso do pretendido, "o agente responde pela indenização contra o lesado, tendo, todavia, ação regressiva contra o agressor (art. 930 do CC/2002) ou contra o terceiro, quando agiu em legítima defesa deste (art. 930, parágrafo único, do CC/2002)" [82].
Ainda em relação a legítima defesa vale destacar a jurisprudência: "A legítima defesa exclui a responsabilidade pelo prejuízo causado se, com uso moderado de meios necessários, alguém repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem (RT, 701:126)" [83].
No estado de necessidade jurisdicionalmente reconhecido, "o autor do fato, todavia, deve indenizar o prejudicado quando este não for o causador da situação de perigo [84]. Já no estado de necessidade, contra terceiro causador do perigo "cabe ação regressiva, bem como a favor daquele que atuou em estado de necessidade" [85]. Por isso, na ocorrência de estado de necessidade há possibilidade de discutir a responsabilidade civil conforme infere-se do exemplo de Capez [86]:
Para desviar de um pedestre imprudente, o motorista destrói um carro que estava regularmente estacionado. Apesar de beneficiar-se do estado de necessidade na esfera criminal, o motorista deverá indenizar o dono do veículo destruído (terceiro inocente), para depois voltar-se regressivamente contra o pedestre criador da situação de perigo. Não está livre, portanto da responsabilidade por uma demanda cível.
Marques também entende que "mesmo em estado de necessidade, mesmo praticado um ato lícito, o causador do prejuízo deve repará-lo, porque assim o determina o Código Civil" [87].
Da mesma forma, se alguém praticar ato em estado de necessidade excedendo aos limites necessários à remoção do perigo, deverá responder civilmente pelo referido excesso" [88].
Se alguém lesar outrem no exercício regular de um direito reconhecido, "não terá qualquer responsabilidade pelo dano, por não ser um procedimento ilícito. Quem usa de um direito seu não causa dano a ninguém (qui iure suo utitur neminem laedit). Só haverá ilicitude se houver abuso do direito ou seu exercício irregular ou anormal" [89].
Dessa forma, em regra, sentença absolutória baseada em causa excludente de ilicitude exclui o exercício da ação civil de reparação do dano, salvo quando a lei civil determina a obrigação do ressarcimento do dano.
2.6. Ausência de prova suficiente para a condenação
A absolvição por falta de provas não induz qualquer índice de culpabilidade do acusado. Entretanto, assim como nas hipóteses de aplicação dos incisos II, III e IV, "logicamente, neste caso, há possibilidade de se propor ação indenizatória na esfera cível" [90].
Como se pôde observar, nos casos de absolvição com fundamento nos incisos II, III, IV e VI do artigo 386 do Código de Processo penal, há possibilidade de propor ação de indenização na esfera cível. Logo, nestes casos, questiona-se a existência de sucumbência e a possibilidade do réu absolvido recorrer para alterar o fundamento da sentença. Para compreender isso, torna-se imprescindível destacar alguns aspectos sobre o recurso.
3. Recurso Criminal
3.1 Fundamento, conceito, objetivo e natureza jurídica
Capez conceitua recurso como o meio pelo qual se obtém reexame de uma decisão: "recurso é a providência legal imposta ao juiz ou concedida à parte interessada, consistente em um meio de se obter nova apreciação da decisão ou situação processual, com o fim de corrigi-la, modificá-la ou confirmá-la" [91].
O homem não se conforma perante uma única decisão. Por isso, os fundamentos do recurso estão na necessidade psicológica do vencido "na falibilidade humana e no combate ao arbítrio" [92].
Vale destacar que as razões históricas do próprio direito também o fundamentam, haja vista que "os recursos foram sempre admitidos na história do Direito, em todas as épocas e em todos os povos. O sentido de sua existência é possibilitar o reexame das decisões proferidas no processo" [93]. Santiago [94] ensina que "os recursos há muito fazem parte do direito dos povos civilizados, sempre com a finalidade que lhe é inerente: provocar um reexame da decisão em virtude do prejuízo sofrido pela parte interessada em defender seu direito"
Em regra, o recurso visa "sanar os defeitos substanciais da decisão, ou seja, suas injustiças decorrentes da má apreciação da prova, bem como da errônea interpretação das pretensões da parte ou dos fatos das circunstâncias" [95].
Dessa forma, fundamentado na necessidade psicológica do vencido, na falibilidade humana do julgador, nas razões históricas do direito e no combate ao arbítrio, o objetivo do recurso é desfazer as imperfeições da sentença.
3.2. Pressupostos e requisitos
O cumprimento dos pressupostos do recurso são essenciais para o seu exame. Mirabete [96] afirma que, para o recurso ser examinado pelo juízo ou tribunal ad quem é necessário que se cumpram todos os pressupostos, que são as exigências legais para que seja ele conhecido.
Os pressupostos podem ser objetivos e subjetivos. Os objetivos são: cabimento, tempestividade, regularidade e inexistência de fato impeditivo ou de fato extintivo. Já os pressupostos subjetivos são: legitimidade para recorrer e interesse jurídico.
Entretanto, como veremos a seguir, o pressuposto lógico e fundamental de todo e qualquer recurso é a sucumbência, que "se consubstancia na lesividade do vencido. Sem esta não há de cogitar de interesse de recorrer" [97].
3.2.1. Interesse e sucumbência
A sucumbência "sempre traduz a existência de um prejuízo que a parte entenda ter-lhe produzido a decisão contra a qual recorre" [98]. Silva [99] entende a sucumbência como uma "desconformidade entre o que a parte pretendia obter e o que lhe foi dado".
A sucumbência nasce do direito na reforma ou modificação do despacho ou sentença, do interesse no recurso. Mirabette traduz sucumbência como "lesividade de interesse, gravame, prejuízo, vale dizer: a sucumbência nada mais é senão aquela desconformidade entre o que foi pedido e o que foi concedido" [100].
A sucumbência caracteriza-se como "a desconformidade entre o que a parte pediu e o que ficou decidido. Esse prejuízo deve ser resultante da parte dispositiva da decisão, da conclusão da sentença impugnada e não de seus motivos ou fundamentos" [101]
O interesse processual decorre da necessidade do recurso para a parte obter uma situação processual mais favorável. Entretanto, é preciso que tenha havido sucumbência [102]. Desse modo, nas palavras de Capez, "só há interesse em recorrer quando a parte pretende algo no processo que lhe tenha sido negado pelo juiz, gerando-lhe prejuízo" [103].
Mirabete explica que o pressuposto lógico do recurso é a existência de sucumbência de uma decisão. Contudo, "o exercício do direito de recorrer está subordinado à existência de um interesse direto na reforma ou modificação do despacho ou sentença. Tem interesse apenas aquele que teve seu direito lesado pela decisão" [104].
Dependendo dos interesses atingidos, a sucumbência pode ser: única, múltipla, paralela ou recíproca. Mirabete [105] explica cada uma delas:
A sucumbência pode ser única, se o gravame é de apenas uma das partes, ou múltipla, se atinge vários interesses e é denominada paralela se atinge interesses idênticos (de dois co-réus, p. ex) e recíproca, se atinge interesses opostos (v.g. da defesa, pela condenação do réu, a da acusação porque o pedido foi julgado procedente apenas em parte, desclassificando-se a infração para delito menos grave).
Além disso, fala-se em sucumbência direta ou reflexa. "Diz-se direta quando atinge uma das partes da relação processual. Quando alcança pessoas que estejam fora da relação processual, ela se diz reflexa" [106]. A sucumbência também pode ser total ou parcial. Esta ocorre quando o pedido é atendido apenas em parte, aquela quando o pedido é rejeitado integralmente.
Por tudo isso, Mirabete esclarece que "o recurso pode abranger a decisão em sua integralidade (...) ou a reforma parcial da sentença (...). Pode ainda ter como objeto um incidente ou a mudança de uma situação processual" [107]. Mirabete [108] entende que:
Não há interesse quando a decisão impugnada não é suscetível de ocasionar prejuízo ao acusado, como ocorre, por exemplo, na absolvição por falta de provas em ilícito que não pode gerar pedido de indenização, na que rejeita embargos declaratórios em sentença absolutória, na impronúncia quando o delito que lhe é imputado etc.
Assim sendo, tanto os efeitos cíveis provocados pela sentença absolutória criminal, tanto quanto os morais e sociais, podem ser considerados como uma possibilidade de sucumbência.
3.3. Classificação dos recursos
O Código de Processo Penal apresenta as seguintes espécies de recursos: recurso em sentido estrito, apelação, protesto por novo júri, embargos, revisão, recurso extraorinário, carta testemunhável e habeas corpus. Neste artigo, o enfoque será dado à apelação, senão vejamos.