2. INTER-RELAÇÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS DO PROCESSO ARBITRAL
2.1. Conflitos e hierarquia entre os princípios
A ordem jurídica internacional, analisada como um sistema, contém um repertório normativo que é estruturalmente organizado e que deve operar harmonicamente obedecendo a uma hierarquia de valores, ou seja, a um conjunto de relações estabelecidas conforme regras de subordinação e de coordenação250 251.
Dentro desse sistema, os princípios gerais de direito são normas jurídicas que estão no topo dessa hierarquia, servindo de embasamento para a criação e vigência de outros preceitos subordinados que os desenvolvem ulteriormente em termos mais específicos e detalhados252 253. Assim, os princípios gerais na sua forma indefinida são aquelas provisões largamente aceitas pela comunidade internacional e que pela sua generalidade e importância, compõem a estrutura essencial para a consolidação dessa ordem jurídica.
Em face desses argumentos, os princípios gerais do processo arbitral podem ser qualificados como a razão, origem e justificativa existencial de todas as demais normas que regulam a matéria processual da arbitragem internacional. Assim, não surgem quaisquer dificuldades, quando ocorrem divergências entre o sentido de um princípio e o conteúdo de uma norma ordinária, haja vista que, aquele sempre prevalecerá. Questionamentos erigem contudo, quando um princípio entra em antinomia com um dos seus pares. Nessa circunstância, qual é o princípio que deverá preponderar?
Ora, sabemos que nenhuma situação fática pode escapar aos auspícios do direito. Quando um tribunal qualquer se defronta com uma situação em particular, em que concorrem dois princípios processuais que são antinômicos sobre um determinado ponto, precisará buscar a melhor solução optando entre aplicar um ou outro. Ao fazê-lo, estará atribuindo valores a cada um deles e conseqüentemente admitindo a existência de uma hierarquia. Entendo contudo, que os fundamentos utilizados para o reconhecimento dessa hierarquia podem e devem ser baseados em critérios objetivos, os quais procurarei revelar agora sucintamente, a partir do laborioso estudo que já foi realizado na primeira parte.
Para a resolução do problema, estabelecerei uma hierarquia entre os princípios do processo arbitral e em seguida tratarei de explanar as razões que me levaram a fixá-la dessa forma. Portanto, partindo do mais importante princípio, a seqüência é a seguinte: 1.° igualdade das partes; 2.° contraditório e ampla defesa; 3.° autonomia das partes; 4.° autonomia do processo arbitral; 5.° flexibilidade e celeridade; 6.° confidencialidade.
O princípio da igualdade das partes surge em primeiro lugar. Consoante foi demonstrado, esse princípio desfruta de reconhecimento e proteção universal. A igualdade das pessoas perante a lei e o processo, está esculpida na Declaração Universal dos Direitos do Homem e constitui um dever imposto pelo jus cogens do direito internacional, a todos os ordenamentos jurídicos estatais. A sua violação não constitui apenas uma afronta às normas de ordem pública dos direitos nacionais, mas sobretudo uma ofensa às normas imperativas do direito internacional. Destarte, em face dessa violação, o laudo arbitral é suscetível de ser impugnado ex officio pelo órgão judicial competente.
Em segunda posição vêm os princípios do contraditório e da ampla defesa. Sua subordinação ao princípio da igualdade das partes pode ser claramente observada, porquanto que a sua concepção tradicional evoluiu para exigir como requisito indispensável, a manutenção dessa igualdade. Assim, o contraditório se desenvolveu para além de mera participação e contradição das partes no processo, sendo atualmente exigido que essa atividade seja empregada com igualdade de condições para ambos os litigantes. Já a ampla defesa, garante igualmente às partes a possibilidade de terem à sua disposição todos os meios legalmente utilizáveis para que possam provar os seus direitos. A violação desses princípios também pode ensejar a anulação do laudo, sendo contudo necessário que a parte que se sentiu lesada a requeira, provando que não foi devidamente notificada da nomeação dos árbitros ou do processo arbitral, ou ainda que, por outras razões lhe foi impossível apresentar as suas alegações sobre a causa.
Em terceira colocação aparece o princípio da autonomia das partes. Apesar da inegável liberdade que as partes têm na arbitragem para definir as regras processuais e outras questões, essa liberdade encontra limites na igualdade das partes, a qual também é projetada nos princípios do contraditório e da ampla defesa. O pressuposto de que as partes precisam ser tratadas com igualdade, opera como restrição à sua própria autonomia, na medida em que impede a convenção de regras procedimentais ou a conferência de poderes ao tribunal arbitral que possam colocar uma delas em situação mais vantajosa do que a outra, como por exemplo, permitir somente a uma das partes a sustentação oral da sua tese de defesa. Igualmente como ocorre nos princípios do contraditório e da ampla defesa, a inobservância do princípio da autonomia das partes é causa de anulabilidade da decisão arbitral.
O princípio da autonomia do processo arbitral advém em quarto lugar. A autonomia tutelada por este princípio existe fundamentalmente em relação ao controle dos ordenamentos legais e à ingerência dos órgãos judiciais nacionais. Embora ela seja ampla, não é ilimitada, uma vez que existem nos diversos instrumentos normativos de arbitragem, disposições expressas que prevêem as situações específicas em que o processo arbitral está sujeito às intervenções externas. Algumas dessas intervenções são realizadas pelos órgãos judiciais a título de controle, através da anulação do laudo arbitral, com o intuito de salvaguardar certos valores da ordem jurídica que são reputados mais importantes do que a autonomia do processo, dentre os quais se inserem os princípios anteriores: igualdade das partes; contraditório e ampla defesa; e autonomia das partes. A violação do princípio em pauta prejudica o regular desenvolvimento do processo arbitral, considerando que, a excessiva e arbitrária intervenção judicial prolongam o processo demasiadamente e impedem que o tribunal arbitral exerça com liberdade e eficiência as suas funções.
Em seguida, ocupando a quinta posição vêm os princípios da flexibilidade e celeridade. Esses princípios constituem uma vantajosa característica da arbitragem. Todavia, quem determina o grau de complexidade dos procedimentos processuais e a velocidade de sua marcha são as partes, a quem compete também a fixação do prazo para a prolação do laudo arbitral. Assim, a flexibilidade e a celeridade do procedimento devem atender os anseios das partes e ao mesmo tempo proporcionar oportunidades suficientes para que elas possam provar os seus direitos com a indispensável amplitude e profundidade. Infere-se daí que, esses princípios não poderão resumir as fases processuais a ponto de afetar o regular exercício do contraditório e da ampla defesa, bem como não poderão se insurgir contra a vontade das partes. Situam-se na seqüência hierárquica logo abaixo do princípio anteriormente versado, pois dificilmente haverá flexibilidade e celeridade sem autonomia processual. Ocorre também que, diferentemente do princípio da autonomia do processo, o princípio em epígrafe demonstra ser mais uma vantagem inerente à arbitragem do que uma garantia essencial para o sucesso do instituto. A lentidão processual indesejada pelas partes opera efeitos jurídicos, se o processo for conduzido fora do prazo por elas convencionado, haja vista que, decorrido tal prazo, cessam imediatamente os poderes jurisdicionais delegados ao tribunal.
O princípio da confidencialidade emerge em última colocação. Esse princípio vinha sendo indiscutivelmente aceito como uma característica intrínseca da arbitragem internacional, no sentido de que impõe tanto às partes como ao tribunal, o dever de não divulgar ou publicar dados, informações ou quaisquer outros detalhes que tenham tomado conhecimento através do processo. Entretanto, com julgamento do caso Esso/BHP v. Plowman pela Suprema Corte da Austrália, consolidaram-se entendimentos contrários. Embora a compreensão majoritária continua sendo que a confidencialidade é um atributo essencial da arbitragem, a corrente doutrinária e jurisprudencial minoritária que se formou a partir do julgamento do referido caso, colocou à prova a indispensabilidade desse princípio. Os efeitos que derivam da sua violação não se manifestam dentro do processo, mas sim fora dele, no âmbito da responsabilidade civil.
Observa-se do exposto que, dentro da ordem jurídica internacional em que estão inseridos, os princípios do processo arbitral coexistem harmonicamente. Essa harmonia somente é possível porque há uma hierarquia entre tais princípios, a qual serve para delinear os limites em que cada um deles deve operar.
CONCLUSÕES
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A arbitragem internacional segue princípios e normas que definem a forma instrumental utilizada com o fim de solucionar uma controvérsia e tornar efetivo um direito. A essa forma instrumental na arbitragem chamamos de processo arbitral, o qual pode ser qualificado então, como o conjunto de atos sucessivos e organizados que imprimem forma e movimento a demanda submetida à arbitragem.
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Nos principais diplomas de direito internacional sobre arbitragem e na legislação portuguesa, verifica-se nitidamente a presença de princípios estruturantes e disciplinadores do processo arbitral. Suas características se manifestam reiteradamente de forma explícita ou implícita ao longo desses textos normativos.
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O princípio da autonomia das partes garante àqueles que estão envolvidos numa determinada controvérsia, a faculdade de escolher o meio mais apropriado para a sua resolução. Quando a escolha recai sobre a arbitragem, ele assegura às partes no processo, uma ampla liberdade para estabelecer as regras procedimentais e outras questões, moldando-as conforme as suas particulares necessidades. A autonomia das partes justifica-se pela circunstância dos interesses presentes no processo serem de caráter privado, atinentes a direitos disponíveis e também pelo fato de que ninguém pode saber melhor do que os seus próprios titulares como deve tratá-los.
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O princípio da autonomia do processo tem como objetivos assegurar que o tribunal arbitral exerça as suas funções apropriadamente, impedir o prolongamento desmesurado do processo arbitral em virtude de incidentes judiciais consecutivos e manter de modo efetivo a vontade das partes, garantindo que as legislações ou cortes nacionais não venham a modificar ou invalidar aquilo que o Estado quis justamente subtrair da sua jurisdição. Existe assim, fundamentalmente em relação ao controle dos ordenamentos legais e à ingerência dos órgãos judiciais nacionais.
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O princípio da igualdade das partes deve ser compreendido como a equiparação das partes relativamente à fruição e ao exercício de direitos, assim como a sujeição a deveres e obrigações no processo. Logo, o tribunal arbitral deve dispensar tratamento igualitário a ambos os litigantes, com o escopo de conduzir a resultados efetivamente justos. A igualdade existente no processo arbitral é aquela tomada na sua acepção substancial ou realista, a qual considera as condições pessoais das partes, os poderes econômicos, a qualidade das suas representações e os meios de que dispõem para estabelecer o enfrentamento, para que, havendo desigualdades, o tribunal arbitral dispense-lhes tratamento que atinja o equilíbrio e a isonomia.
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O princípio do contraditório significa a garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de toda a demanda, através da possibilidade de influírem, com condições de igualdade, em todos os elementos que estejam relacionados com o objeto da causa e que, em qualquer fase do trâmite processual, figurem como potencialmente relevantes para o convencimento do órgão julgador. Destarte, ao passo que o contraditório diz respeito à garantia de participação no processo, em nível de ação e de defesa, a ampla defesa corresponde à extensão do exercício dessa participação. A defesa a que se refere este princípio é o conjunto de provas que ambas as partes podem produzir e juntar ao processo, buscando convencer o tribunal arbitral de que sua argumentação é correta.
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O princípio da flexibilidade está relacionado com a considerável autonomia das partes na arbitragem. É a capacidade de ajustamento do processo arbitral através da definição da matéria da causa, da determinação da quantidade de árbitros, da eleição das regras procedimentais, da designação do lugar da arbitragem, da indicação da língua que será utilizada e da escolha da lei aplicável ao mérito da causa. Por sua vez, o princípio da celeridade está associado à obtenção de um maior resultado no processo arbitral, com o emprego mínimo de tempo e de atividade jurisdicional. Para se obter um processo arbitral célere, é preferível que ele seja simplificado e informal, ou seja, que abranja essencialmente os procedimentos indispensáveis para a obtenção de uma garantia elementar de segurança jurídica e que esteja desatrelado a formalismos processuais exacerbados.
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O princípio da confidencialidade tem como fim a manutenção do segredo em questões profissionais, patrimoniais ou pessoais que foram debatidas, investigadas e reveladas no curso do processo arbitral, as quais as partes não querem que sejam expostas publicamente. A preservação do sigilo de informações relacionadas a certas transações comerciais é um fator importantíssimo para as empresas, no jogo da competição e concorrência pelos diversos mercados mundo afora.
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Existe uma hierarquia de valores entre os princípios do processo arbitral que, partindo do mais importante, segue a seguinte seqüência: 1.° igualdade das partes; 2.° contraditório e ampla defesa; 3.° autonomia das partes; 4.° autonomia do processo arbitral; 5.° flexibilidade e celeridade; 6.° confidencialidade.
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Dentro da ordem jurídica internacional em que estão inseridos, os princípios do processo arbitral coexistem harmonicamente. Essa harmonia somente é possível porque há uma hierarquia entre tais princípios, a qual serve para delinear os limites em que cada um deles deve operar.
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