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O caráter normativo dos princípios jurídicos

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Agenda 22/03/2006 às 00:00

3 – O direito entre faticidade e validade: uma crítica à opção metodológica pela jurisprudência de valores

3.1 – Algumas considerações de Jürgen Habermas acerca da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann

Para Habermas, o direito moderno cumpre as funções de integração social que as ordens sociais já não conseguem alcançar. Utilizando-se da ação comunicativa, o potencial de racionalidade da linguagem é explorado com aquele desiderato. Habermas (1998, p. 105) salienta que na medida em que se toma consciência do conteúdo ideal da validade do direito ocorre um choque entre o mesmo e as exigências de uma economia regulada pelo mercado e de um poder administrativo; nesse ínterim, a mesma autocompreensão normativa é posta em jogo por uma crítica das ciências sociais. Tal crítica parte de dois flancos:

- de um lado o direito tem que sustentar a pretensão de que nem o subsistema econômico e nem o sistema regulado pelo poder administrativo podem fugir de uma integração social mediada por uma consciência social global;

- de outro lado, a sociologia vê tal pretensão justamente como vítima de desencantamento.

O que procede de uma crítica à ideologia e de uma crítica ao poder é a mediatização de tal contradição no seio da sociedade. Teorias sociológicas, voltadas para a oposição entre pretensão e realidade, só são analisadas por Habermas (1998, p. 105/106) na medida em que se formam na objeção de que um direito já periférico deve despojar da aparência de normatividade se quiser cumprir suas funções na complexa sociedade hodierna. Antes de mais nada, segundo Habermas (1998, p. 106), a aceitação desse imperativo como correto retiraria parte do fundamento de uma teoria discursiva do direito que se conecta a uma autocompreensão normativa do direito, a limine descolado de uma realidade "cínica". Por outro lado, teorias filosóficas do direito voltam-se decididamente para o conteúdo moral das instituições jurídicas modernas. Elas formulam princípios para uma sociedade que se pretenda bem ordenada, mas de uma forma tão desgarrada da realidade que tal empresa enfrenta dificuldades de implementação.

A teoria dos sistemas supera o realismo marxista com seu conceito de sociedade descentrada, formada por vários subsistemas que se auto-observam e observam uns aos outros, mas que não se intervêm mutuamente, adotando uma atitude reflexiva acerca dessa relação. As capacidades transcendentais de sujeitos-consciência monadicamente concebidos por Husserl tornam-se propriedade de sistemas despidos da subjetividade das mônadas [14] da consciência, mas monadicamente encapsulados sobre si mesmos (HABERMAS, 1998, p. 110). De antemão, essa é uma afirmação de Habermas facilmente refutada pelas considerações tecidas acima acerca da teoria dos sistemas de Luhmann. Habermas parece não levar em conta conceitos como o de irritação presente na teoria luhmanniana, além do modo como, através do acoplamento estrutural, sistemas se observam e utilizam operações de outros para reconduzi-las no seu próprio código.

No caso do sistema do direito, sua diferenciação tem por base fundamental a possibilidade de diferenciar as expectativas "normativas" das expectativas do tipo "cognitivo". As expectativas têm um caráter de norma ou de conhecimento em função da forma que lhe serve de base para absorver a incerteza. A autocriação do sistema jurídico é normativamente fechada pelo fato de que só este sistema pode conferir um caráter juridicamente normativo a seus elementos e, desta forma, constituí-los como elementos (a normatividade não tem outra finalidade ulterior). Mas, ao mesmo tempo, e em relação a esse fechamento, o sistema jurídico é cognitivamente aberto. Em cada um de seus elementos e na correspondente reprodução destes, ele depende de sua capacidade de determinar se certas condições encontram-se, ou não, preenchidas. A cooperação entre o caráter normativo e o caráter cognitivo do sistema é uma condição para sua constante reprodução; desta combinação resulta a própria unidade do sistema. Enquanto o caráter de norma serve para a autocriação do sistema, à sua continuidade, na medida em que o diferencia do meio ambiente, o caráter cognitivo serve para a coordenação deste processo com o meio ambiente do sistema. (NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, 1998, p. 86-87)

Para Habermas (1998, p. 110), Luhmann é o sucessor da fenomenologia transcendental da perspectiva da teoria dos sistemas, tendo ele dado um giro sobre a filosofia do sujeito e colocando-a sobre um objetivismo radical. Tal como Lévi-Strauss, Althusser e Foucault, os sujeitos perdem seu lugar e o direito de intencionalmente se integrar através de suas própria consciências. Todos vestígios hermenêuticos seriam apagados de uma teoria da ação que partisse da autocompreensão dos atores. A visão se abre para a gama de variação, contingência, pluralidade e diversidade das sociedades complexas.

O sistema do direito recupera a autonomia que a crítica da ideologia o fizera perder (HABERMAS, 1998, p. 111). Passa a ser um sistema ou discurso dentro de uma pluralidade desordenada de sistemas e discursos. Numa linguagem articulada objetivamente, a autocompreensão dos atores e seu saber intuitivo são ignorados. O observador, ele mesmo ambiente, artificialmente visualiza todo fragmento da vida social como que congelado, uma espécie de segunda natureza que não se acessa hermeneuticamente; o máximo que se pode obter é o saber contra-intuitivo próprio das ciências da natureza.

Todas essas teorias e controvérsias colocam em jogo o direito como categoria central da teoria da sociedade. A teoria de Luhmann passa a ser o ponto de referência de Habermas (1998, p. 112) nessa seara. Em tal teoria, o direito é entendido unicamente desde o ponto de vista funcional da estabilização de expectativas de comportamento. Nos casos de conflito ele decide de acordo com o código binário "justo" jurídico/ "injusto" jurídico. Em sentido amplo, o sistema jurídico em conjunto compreende todas comunicações que se orientam pelo direito. Em sentido estrito compreende todos atos jurídicos que alteram situações jurídicas, se retro-alimentando de procedimentos jurídicos institucionalizados, normas jurídicas e considerações da dogmática jurídica. Tais considerações só têm sentido mediante a suposição de que a diferenciação do sistema jurídico realiza sua autonomização, convertendo-o num sistema autopoiético (HABERMAS, 1998, p. 112). Ele se desliga de seus ambientes, com os quais se relaciona apenas mediante observações.

Com isso, o sistema jurídico não mantém um intercâmbio direto com os ambientes internos à sociedade, nem tampouco pode agir regulativamente sobre eles. O contato com os fatos para além desse sistema só tem o condão de fazer com ele aja sobre si próprio. Funções de controle relativas à sociedade global são vedadas, podendo o direito regulá-la apenas num sentido metafórico: ao se modificar ele se apresenta a outros subsistemas como um ambiente modificado, momento em que aqueles podem reagir de forma indireta (HABERMAS, 1998, p. 113).

O direito vem a ser reduzido, por uma interpretação empirista, a sua aplicação. Perde-se a conexão entre o direito e a organização do poder político no Estado democrático de direito. A comunicação que se efetua através do código binário direito/não direito, apenas dentro da construção meramente autopoiética – saliente-se –, ignora a conexão de normas e ações jurídicas com a suposição de processos de entendimento racionalmente motivados que constituem a comunidade jurídica, não obstante seja condição da diferenciação do sistema (HABERMAS, 1998, p. 114). Argumentos jurídicos passam a servir apenas para diminuir o valor de surpresa de decisões motivadas por outras vias e de aumentar sua aceitação. Do ponto de vista do observador o que era fundamentação para os participantes passa a ser ficção necessária. As argumentações são, para a teoria dos sistemas, meras formas de comunicação especial que resolvem diferenças de opiniões sobre como utilizar o código binário. Dentro da teoria dos sistemas, apenas têm sentido os efeitos perlocucionários da argumentação; as razões são meios com os quais o sistema jurídico se convence de suas próprias decisões (HABERMAS, 1998, p. 114). Mas se as razões não possuem mais a força intrínseca de motivar racionalmente, a cultura da argumentação se converte num enigma.

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Se Habermas opõe tais críticas severas a Luhmann, num ponto ele concorda e aceita a teoria luhmanniana: o sistema do direito opera através de um código binário, não gradual. Só podem ser incluídas dentro do sistema jurídico decisões que operem nesta lógica.

3.2 – Jurisprudência de valores: o impacto e a recepção de teoria de Robert Alexy pelo Judiciário

A chamada jurisprudência de valores consiste numa opção metodológica, de origem na Corte Constitucional Alemã, para a argumentação e justificação de decisões judiciais. Robert Alexy (2003, p. 2) delineia a assunção pela Corte Constitucional Alemã de um quadro de regras e princípios nos quais se constituiriam os direitos fundamentais, pela primeira vez, na decisão proferida junto ao caso Lüth, em 1958. Lüth teria incitado e convocado o povo alemão a boicotar os filmes produzidos por Veit Harlan, uma vez que eles divulgariam idéias nazistas. No caso, haveria uma situação típica do conflito de princípios, em que o princípio da liberdade de expressão, que estaria amparando a divulgação do boicote, estaria se chocando com o princípio constitucional de política pública que permite restrições à liberdade de expressão. Para tanto seria necessária por parte da Corte a utilização de um balanceamento ou sopesamento: no caso, o princípio da liberdade de expressão se sobreporia à considerações constitucionais concorrentes.

Na decisão do caso Lüth há três idéias que serviram para moldar fundamentalmente o Direito Constitucional Alemão. A primeira idéia foi a de que a garantia constitucional de direitos individuais não é simplesmente uma garantia dos clássicos direitos defensivos do cidadão contra o Estado. Os direitos constitucionais incorporam, para citar a Corte Constitucional Federal, "ao mesmo tempo uma ordem objetiva de valores". Mais tarde a Corte fala simplesmente de "princípios que são expressos pelos direitos constitucionais". Assumindo essa linha de raciocínio, pode-se de dizer que a primeira idéia básica da decisão do caso Lüth era a afirmação de que os valores ou princípios dos direitos constitucionais aplicam-se não somente à relação entre o cidadão e o Estado, muito além disso, à "todas as áreas do Direito". É precisamente graças a essa aplicabilidade ampla que os direitos constitucionais exercem um "efeito irradiante" sobre todo o sistema jurídico. Os direitos constitucionais tornam-se onipresentes (unbiquitous). A terceira idéia encontra-se implícita na estrutura mesma dos valores e princípios. Valores e princípios tendem a colidir. Uma colisão de princípios só pode ser resolvida pelo balanceamento. A grande lição da decisão do caso Lüth, talvez a mais importante para o trabalho jurídico cotidiano, afirma, portanto, que: "Um ‘balanceamento de interesses’ torna-se necessário" (ALEXY, 2003, p. 3-4)

O caso Lüth, portanto, teria fixado as bases de uma jurisprudência valorativa ao conceber a Constituição como uma "ordem concreta de valores". Princípios possuem o mesmo caráter de valores: eles podem ser relativizados na sua aplicação ao caso concreto, cedendo em parte diante de outro princípio ou cedendo totalmente. A lógica de Alexy e da Corte Constitucional Alemã permite retirar a muralha de fogo que constitui a qualidade deontológica dos princípios em prol de uma decisão que pode, no extremo dos casos, definir um terceiro princípio do conflito entre outros dois. Princípios, diferentemente de regras, são mandados de otimização que pretendem que se realize algo na maior medida possível, consideradas as possibilidades jurídicas e fáticas (ALEXY, 1993, p. 27).

Alexy (2003, p. 5) busca justificar a racionalidade da ponderação de valores através do uso de um princípio abrangente: o princípio da proporcionalidade. Tal princípio envolve outros três subprincípios: princípio da adequação, princípio da necessidade e princípio da proporcionalidade em sentido estrito. Todos abarcam a idéia da otimização. O princípio da adequação se refere ao que é factualmente possível, avaliando qual das medidas propostas por cada princípio é a mais idônea. O princípio da necessidade requer que, na presença de dois meios para dar curso ao mesmo princípio, seja escolhido o menos gravoso ou o que gere menos interferência nos princípios em concorrência. Por fim, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito expressa a própria máxima da ponderação, ao pretender a otimização em relação às possibilidades jurídicas: quanto mais intensa for a interferência num princípio, maior tem que ser a realização de outro.

Com isso estaria satisfeita a necessidade de racionalização e de justificação das decisões que ponderassem direitos. Ou seja, direitos são tratados como bens passíveis de uma mensuração e qualificação.

A proposta de Robert Alexy vem ganhando adeptos na teoria constitucional brasileira. Para além de nomes como Daniel Sarmento [15], Luís Roberto Barroso [16], entre outros, recentemente, o próprio Supremo Tribunal Federal tem recorrido inúmeras vezes ao método da ponderação para justificar suas decisões. Para ficar em um exemplo, a decisão no Habeas Corpus nº 82.424/RS incorpora, com o voto do Min. Gilmar Ferreira Mendes, as idéias da doutrina tedesca:

A máxima da proporcionalidade, na expressão de Robert Alexy (Theorie der Grundrechte, Frankfurt am Main, 1986), coincide igualmente com o chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais concebido de modo relativo – tal com o defende o próprio Alexy. Nesse sentido, o princípio ou máxima da proporcionalidade determina o limite último da possibilidade de restrição legítima de determinado direito fundamental. A par dessa vinculação aos direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade alcança as denominadas colisões de bens, valores ou princípios constitucionais. Nesse contexto, as exigências do princípio da proporcionalidade representam um método geral para a solução de conflitos entre princípios, isto é, um conflito entre normas que, ao contrário do conflito entre regras, é resolvido não pela revogação ou redução teleológica de uma das normas conflitantes nem pela explicitação de distinto campo de aplicação entre as normas, mas antes e tão-somente pela ponderação do peso relativo de cada uma das normas em tese aplicáveis e aptas a fundamentar decisões em sentidos opostos. Nessa última hipótese, aplica-se o princípio da proporcionalidade para estabelecer ponderações entre distintos bens constitucionais.

3.3 – A crítica de Jürgen Habermas a jurisprudência de valores: o código binário do direito e sua validade deontológica

Jürgen Habermas, partindo da constatação de que a razão prática (razão preocupada com a ação) não oferece mais soluções normativas diretas para o direito e para a moral, apenas uma medida crítica para as práticas constitucionais, propõe que a teoria do agir comunicativo tente explicar a reprodução da sociedade no frágil solo das pretensões de validade transcendentes. A razão comunicativa, não adstrita a nenhum ator singular nem a um macrossujeito sóciopolítico (HABERMAS, 1997, p. 20), possibilitada pelo medium lingüístico, dá vazão à apropriação e reapropriação crítica de resultados que pretendem validade. Com isso, o princípio do discurso (que exige que a fundamentação imparcial leve em conta a participação e aceitação de suas conseqüências por todos os envolvidos) comprova-se no campo individual, ético e moral. A moral pós-convencional de princípios depende, no entanto, da complementação do direito positivo.

As normas desse direito possibilitam comunidades extremamente artificiais, mais precisamente, associações de membros livres e iguais, cuja coesão resulta simultaneamente da ameaça de sanções externas e da suposição de um acordo racionalmente motivado. (HABERMAS, 1997, p. 25)

Habermas transporta a tensão entre facticidade e validade presente no seio da linguagem para a estrutura do direito. Ele pretende alcançar uma resposta satisfatória para a questão da integração social em sociedades extremamente complexas, onde a pluralidade de mundos da vida e de formas de vida não permite mais o apelo a fundamentações metafísicas em nível arcaico.

O Direito e a organização política pré-modernas

encontravam fundamentação, em última análise, em um amálgama normativo indiferenciado de religião, direito, moral, tradição e costumes transcendentalmente justificados e que essencialmente não se discerniam.
(CARVALHO NETTO, 1999, p. 476) (grifos do autor)

Para Kant, a relação entre facticidade e validade apresenta-se como uma relação interna entre coerção e liberdade fundada pelo direito. O direito está autorizado ao uso da coerção; mas isso só é possível quando ele se opõe aos abusos da liberdade de cada um. Essa relação interna se manifesta na pretensão de validade do direito. "Embora pretensões de direito estejam ligadas a autorizações de coerção, elas também podem ser seguidas, a qualquer momento, por "respeito à lei", isto é, levando em conta sua pretensão de validade normativa" (HABERMAS, 1997, p. 49). Normas de direito são, ao mesmo tempo, leis da coerção e leis da liberdade. Há um entrelaçamento entre aceitação (referente a fatos sociais) e aceitabilidade exigida por pretensões de validade, presente já no agir comunicativo, sob a forma de tensão entre facticidade e validade, e intensificada no direito. Como o direito se interliga às três fontes de integração social (dinheiro, poder administrativo e solidariedade), é preciso manter essa tensão através da positividade discursiva.

Se Habermas se aproxima de Kant para relacionar facticidade/validade e coerção/liberdade, dele se afasta ao não derivar o direito da moral, mas estabelecer uma complementariedade entre estes e a política. Segundo ele, o direito moderno não deve apenas satisfazer às exigências funcionais de uma complexa sociedade econômica, mas deve também atender às condições precárias de integração social satisfeitas por sujeitos que agem comunicativamente, ou seja, através da aceitabilidade racional de pretensões de validade.

O direito moderno tira dos indivíduos o fardo das normas morais e as transfere para as leis que garantem a compatibilidade de liberdades de ação [...]. Estas obtêm sua legitimidade através de um processo legislativo que, por sua vez, se apoia no princípio da soberania do povo. (HABERMAS, 1997, p. 114-115)

Direito e moral não se confundem. Ambos se referem à definição de normas de ação, sendo que normas morais regulam relações interpessoais e conflitos entre pessoas naturais, que se reconhecem reciprocamente como membros de uma comunidade concreta e como indivíduos insubstituíveis; ao passo que normas jurídicas regulam relações interpessoais e conflitos entre atores que se reconhecem como membros de uma comunidade abstrata, criada através de normas do direito. "Em sociedades complexas, a moral só obtém efetividade em domínios vizinhos quando é traduzida para o código do direito" (1997, p. 144). Essa tradução se dá através do princípio da democracia que poderá fazer com que se externem conteúdos morais em comunidades jurídicas. Isso sob a égide do princípio do discurso, que dá validade a essas relações intersubjetivas (São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais).

Estabelecida a legitimidade dos direitos, Habermas passará a definir a legitimidade de uma ordem de dominação através da relação do poder político com o direito. Para a tradição do direito racional, o direito surgia da renúncia à violência e servia para a canalização de uma força equiparada ao poder. Ao diferenciar poder e violência, Hannah Arendt elimina essa oposição, no dizer de Habermas (1997, p. 188, grifos do autor): "O direito se liga naturalmente a um poder comunicativo capaz de produzir direito legítimo". Assim o direito dará forma às normas reguladoras de conflitos; mas também deve ele impor, através da formação discursiva da opinião e da vontade, restrições à realização de fins coletivos.

É assim que, absorvendo e transformando a herança kantiana, Habermas fará a diferenciação entre os usos pragmático, ético e moral da razão prática.

Questões pragmáticas colocam-se na perspectiva de um ator que procura os meios apropriados para a realização de fins e preferências que já são dados.

[...]

Questões ético-políticas colocam-se na perspectiva de membros que procuram obter clareza sobre a forma de vida que estão compartilhando e sobre os ideais que orientam seus projetos comuns de vida [...].

Em questões morais, o ponto de vista teleológico, que nos permite enfrentar problemas por meio de uma cooperação voltada a um fim, desaparece por trás do ponto de vista normativo, sob o qual nós examinamos a possibilidade de regular nossa convivência no interesse simétrico de todos. (HABERMAS, 1997, p. 200-203)

Essa diferenciação é crucial para a determinação do código binário do direito e da moral, bem como o código gradual, afeito à ética.

Para fazer frente ao problema da indeterminação do direito, Habermas recorre à teoria hermenêutica construtivista de Ronald Dworkin. Superando as propostas de standards dos costumes dos hermeneutas, das determinantes extrajurídicas do realismo e do tributo ao arbítrio do juiz presente no positivismo, Dworkin aposta na premissa de que há pontos de vista morais relevantes na jurisprudência. Distinguindo argumentos de política (que se formam em discursos éticos ou pragmáticos) e argumentos de princípio (formados em discursos jurídicos ou morais), Dworkin tem em mente que direitos merecem reconhecimento sob pontos de vista da justiça. Direitos são "trunfos" num jogo de baralho. Isso implica dizer que há uma resposta correta e que será ela encontrada pelo esforço hermenêutico do juiz Hércules em realizar o conceito de integridade. Habermas substitui, então, o solipsismo de Hércules pelo princípio do discurso, pelo agir comunicativo que permite ao juiz assumir a perspectiva do outro. Nesse espectro, paradigmas funcionam como redutores de complexidade e auxiliam na elaboração participativa do discurso de aplicação numa "sociedade aberta de intérpretes da Constituição" (HÄBERLE).

Nesse diapasão, o tribunal não pode funcionar como único e último intérprete da Constituição. Elaborando uma crítica à opção metodológica da Corte Constitucional Alemã por uma jurisprudência de valores, Habermas irá acentuar a diferenciação normativa de Dworkin entre regras e princípios, reforçando aquele caráter para esses últimos. A Constituição não é uma "ordem concreta de valores", mas um conjunto coerente de princípios e regras (os princípios são abertos e precisam ser densificados com os elementos do discurso de aplicação; as regras contêm em si, na maioria das vezes, os elementos suficientes de sua aplicação, trabalhando em uma lógica de sim/não) constituído num processo discursivo de formação da opinião e da vontade que garanta a autonomia pública (soberania popular) e privada (direitos fundamentais) do cidadão.

Discriminando o que sejam normas e valores, Habermas se opõe à proposta argumentativa de Robert Alexy. Aqui instaura-se a grande controvérsia entre Habermas e Alexy sobre a devida compreensão dos princípios e seu caráter deontológico. A tese de Robert Alexy leva a uma confusão entre discursos de justificação (referentes à validade das normas) e discursos de aplicação (referentes a adequabilidade das normas) (GÜNTHER, 2004), permitindo que o controle de constitucionalidade acabe se tornando, em última análise, num tipo de legiferação.

Princípios ou normas mais elevadas, em cuja luz outras normas podem ser justificadas, possuem um sentido deontológico, ao passo que os valores têm um sentido teleológico. Normas válidas obrigam seus destinatários, sem exceção e em igual medida, a um comportamento que preenche expectativas generalizadas, ao passo que valores devem ser entendidos como preferências compartilhadas intersubjetivamente. Valores expressam preferências tidas como dignas de serem desejadas em determinadas coletividades, podendo ser adquiridas ou realizadas através de um agir direcionado a um fim. Normas surgem com uma pretensão de validade binária, podendo ser válidas ou inválidas; em relação a proposições normativas, como no caso de proposições assertóricas, nós só podemos tomar posição dizendo "sim" ou "não", ou abster-nos do juízo. Os valores, ao contrário, determinam relações de preferência, as quais significam que determinados bens são mais atrativos do que outros; por isso, nosso assentimento a proposições valorativas pode ser maior ou menor. A validade deontológica de normas tem o sentido absoluto de uma obrigação incondicional e universal: o que deve ser pretende ser igualmente bom para todos. Ao passo que a atratividade de valores tem o sentido relativo de uma apreciação de bens, adotada ou exercitada no âmbito de formas de vida ou de uma cultura: decisões valorativas mais graves ou preferências de ordem superior exprimem aquilo que, visto no todo, é bom para nós (ou para mim) [...]. (HABERMAS, 1997, p. 316-317)

Se Habermas discorda da posição dita objetivante de Luhmann no que concerne às possibilidades de integração social que o direito pode levar adiante, por outro lado, é explícita sua incorporação e reafirmação da idéia do último relativa à operacionalização do direito como um sistema. O direito é, ao mesmo tempo, sistema de ação e sistema de valores. Seu modo de operar é a distinção direito/não direito, justo/injusto, e não um código gradual relativizante que permite ao Judiciário refazer o que o Poder Legislativo havia empreendido no âmbito de fundamentação ou justificação das normas [17].

Habermas esclarece que o próprio termo deontológico se refere, em primeiro lugar, a um caráter obrigatório codificado de maneira binária. Mesmo que se restrinja a universalidade de normas a um campo específico localizado social e temporalmente, como sói ocorrer com as normas jurídicas, não se viola o código binário, código este que possui pretensão de verdade análoga a de mandamentos que variam entre "certo" e "errado" e nem é ultrajada a incondicionalidade de sua reivindicação normativa de validação (HABERMAS, 2002, p. 356).

A maneira de avaliar nossos valores e a maneira de decidir o que "é bom para nós" e o que "há de melhor" caso a caso, tudo isso se altera de um dia para o outro. Tão logo passássemos a considerar o princípio da igualdade jurídica meramente com um bem entre outros, os direitos individuais poderiam ser sacrificados caso a caso em favor de fins coletivos; no caso de uma colisão, deixaria de ocorrer o "recuo" de um direito em relação a outros, sem que ele tivesse que com isso perder sua validade. (HABERMAS, 2002, p. 356)

O problema que surge da concepção de Luhmann, se tomada realmente como uma concepção objetivante, está na irrelevância que a argumentação assume na tarefa de justificar o direito moderno. Com ressalta Klaus Günther (2004, p. 382), Luhmann concebe as normas a partir de um dever coativo e da única e exclusiva função de sinalizar a recusa de aprendizagem, não podendo elas ser universalmente fundamentadas e nem adequadamente aplicadas. Além disso, a aplicação de normas a casos isolados significa não mais que uma decisão orientada por critérios internos; da ótica externa, a decisão é somente a correlação de uma expectativa de comportamento com o código direito/não direito. Argumentos não têm mais do que uma função retórica e encobrem a dupla contingência (condições de conhecimento limitado e tempo infinito) do sistema jurídico (GÜNTHER, 2004, p. 383). Essa concepção joga por terra qualquer tentativa de conceber o direito de uma perspectiva racional, pós-convencional [18], que possibilite, ao menos no nível da aceitabilidade racional, que os destinatários das normas possam se entender como seus autores; mesmo que saiam vencidos nos procedimentos de adjudicação, eles devem poder, no mínimo, ter o próprio procedimento como legítimo. Talvez isto não esteja distante da legitimação procedimental luhmanniana. Mas tal desaparece na medida em que em sociedades democráticas, dificilmente argumentos podem ser colocados de lado quando criticados.

Prevalece, contudo, em Luhmann, que o código binário do direito deve ser respeitado, caso não se pretenda romper com autonomia do sistema. E isto é mantido por ele mesmo quando ele reconhece a abertura do sistema do direito em relação a outros códigos. Apenas os programas [19], e não os códigos, possuem o instrumental para aceitar mudanças. Não obstante a crítica de Günther, que acusa de precária a teoria de Luhmann por não ser possível desvincular a argumentação de adequação dos programas relativos aos códigos, podemos entender, com Habermas, a questão da seguinte maneira: só tem acesso e validade nos discursos jurídicos de aplicação os argumentos que, sejam eles de ordem moral, pragmático-política ou ética, foram filtrados pelo código do direito nos discursos de fundamentação das normas.

Sobre o autor
Emílio Peluso Neder Meyer

Professor Adjunto de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG (Graduação e Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado). Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Mestre em Direito Constitucional pela UFMG. Membro do IDEJUST – Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEYER, Emílio Peluso Neder. O caráter normativo dos princípios jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 994, 22 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8126. Acesso em: 22 nov. 2024.

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