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Tribunal do júri: Instrumento de participação democrática

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4. TRIBUNAL DO JÚRI: INSTRUMENTO DE PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA

No Brasil, a Constituição da República de 1988 estabelece em seu artigo 1º que, a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (I) a soberania; (II) a cidadania; (III) a dignidade da pessoa humana; (IV) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (V) o pluralismo político. Já em seu parágrafo único, pontifica que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Mais adiante, no artigo 14, a Constituição estabelece que a soberania popular será exercida pelo sufrágio (poder) universal e pelo voto (instrumento) direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante (I) plebiscito; (II) referendo e (III) iniciativa popular. Estes são os instrumentos de participação popular nos assuntos do Estado, o voto, o plebiscito, o referendo e a participação popular na elaboração de leis.

Como se nota, o Tribunal do Júri não está inserido nesse rol do artigo 14, mas naquele do artigo 5º, em seu inciso XXXVIII. Nem por isso o Júri deixa de ser um instrumento de participação democrática nos assuntos do Estado. Todavia, tratase de um instrumento específico de participação popular e democrática na administração da justiça, possibilitando ao cidadão comum, maior e capaz, portador de conduta ilibada o poder de compor um conselho que tem atribuição de julgar os delitos mais graves previstos no ordenamento, os crimes dolosos contra a vida, consumados e tentados, cuja vis atractiva atrai a competência para o julgamentos dos demais crimes conexos.

Para ser possível a afirmação da natureza democrática do Tribunal do Júri, necessário buscar na fonte de Norberto Bobbio a exata compreensão da expressão Democracia. Para Bobbio, a Democracia evidencia-se na construção sistêmica de um conjunto de regras fundamentais que estabelecem a competência para a tomada de decisões coletivas e o respectivo procedimento38. A concepção liberal de Democracia, enquanto participação no poder político, tida como elemento caracterizante do regime democrático, resulta de uma das liberdades individuais que o cidadão reivindicou e conquistou contra o Estado absoluto.

A participação é também redefinida como manifestação daquela liberdade particular que indo além do direito de exprimir a própria opinião, de reunir-se ou de associar-se para influir na política do país, compreende ainda o direito de eleger representantes para o Parlamento e de ser eleito. Mas se esta liberdade é conceptualmente diversa das liberdades civis, enquanto estas são meras faculdades de fazer ou não fazer, enquanto aquela implica a atribuição de uma capacidade jurídica específica, em que as primeiras são chamadas também de liberdades negativas e a segunda de liberdade positiva, o fato mesmo de que a liberdade de participar, ainda que indiretamente, na formação do Governo esteja compreendido na classe das liberdades, mostra que, na concepção liberal da Democracia, o destaque é posto mais sobre o mero fato da participação como acontece na concepção pura da Democracia (também chamada participacionista), coma ressalva de que esta participação seja livre, isto é, seja uma expressão e um resultado de todas as outras liberdades.39

Na teoria política contemporânea, segundo Norberto Bobbio, em países de tradição democrático-liberal, as definições de Democracia resolvem-se num elenco relativamente amplo de regras procedimentais ou de procedimentos universais, dentre as quais: (I) o órgão legislativo máximo deve ser composto de membros eleitos pelo povo; (II) em simbiose com esse órgão, deve existir outras instituições com dirigentes eleitos, como os órgãos da administração inferior ou o chefe de estado; (III) devem ter direito ao voto todos os cidadãos maiores e capazes, sem distinção de raça, religião, censo ou sexo; (IV) o voto deve ter valor igual para todos os eleitores; (V) cada eleitor deve ter assegurada a liberdade de voto, de acordo com sua própria opinião formada livremente; (VI) deve ser observado o critério da maioria numérica nas eleições; (VII) a formação da maioria não deve eliminar os direitos da minoria, nem ser capaz alijá-la do direito de eventualmente se tornar maioria, em paridade de condições; (VIII) o órgão governamental deve gozar de confiança do Parlamento ou do chefe do poder executivo, eleito pelo povo.40

A estrutura do Tribunal do Júri brasileiro amoda-se parcialmente a essas regras universais mencionadas por Norberto Bobbio, porque os jurados, que representam o povo e gozam de credibilidade perante a sociedade, vota em igualdade de condições, com voto de valor igual, não por unanimidade, mas por maioria, com a mais ampla liberdade e garantia de formação dessa maioria, segundo as próprias consciências e os ditames da jutiça, sem interferência ou pressão externa, e sem qualquer ofensa ao direito da minoria se tornar maioria em casos análogos, ou mesmo em votação de quesito subsequente.

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Assim, no Tribunal do Júri pátrio, insculpido no artigo 5º, XXXVIII da Constituição da República Federativa do Brasil, a competência para decidir sobre a existência do crime e a imputabilidade do acusado, as chamadas materialidade e autoria, e agora, a cláusula obrigatória da absolvição trazida pela reforma do Código de Processo Penal pela Lei 11.689/2008, é exclusiva dos jurados, pessoas que representam a sociedade em que ocorreu o crime e que decidem monossilábica e secretamente. Este é seu elemento específico, que o individualiza e o caractegoriza como forma de participação popular nos julgamentos.

Os jurados devem ser pessoas maiores e capazes, de reconhecida idoneidade, moradores da comarca onde ocorreu o fato a ser submetido a julgamento, que serão selecionadas de uma lista anual previamente formulada pelo juiz com o auxílio de autoridades locais, associações de classe e de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros núcleos comunitários, que, por requisição judicial, indicam pessoas que reúnam as condições para exercer a função de jurado. Dessa lista anual, composta de 80 a 1.550 jurados, conforme a população da comarca, são selecionados 25 jurados para as sessões de julgamento periódicas. Dessa relação de 25 jurados, são escolhidos 7 para compor o conselho de sentença que julgará o crime doloso contra a vida submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri.

Portanto, o Conselho de Sentença, apesar de não ser eleito democraticamente por voto popular, é selecionado entre pessoas do povo que habitam a comarca em que o fato ocorreu, de reputação ilibada e conduta moral irrepreensivel, para exercer a função de julgar o fato criminoso, representando a comunidade local, como forma de participação democrática ou popular na administração da justiça.

Observe-se que no Tribunal do Júri, como regra, não pode o juiz presidente tomar parte na decisão sobre a existência do delito e muito menos sobre a autoria. Não pode o juiz presidente deixar transparecer sua opinião acerca do fato, nem pressionar de qualquer modo os jurados para que decidam em um ou outro sentido. O juiz, ao lavrar a sentença apenas se reporta às respostas que os jurados deram aos quesitos formulados, aplicando a pena e estabelecendo o regime inicial de cumprimento da reprimenda, segundo o que foi ali decidido, ou decretando a absolvição, conforme o caso. O juiz presidente também decide fundamentadamente acerca da necessidade ou não de decretação de prisão preventiva ou de outra medida cautelar diversa.

Um detalhe que humaniza os julgamentos pelo Tribunal do Júri, é a utilização de argumentos sociológicos, filosóficos, principiológicos, psicológicos, morais, religiosos, dentre tantos outros, por parte doa atores da acusação e da defesa, que possibilitam ao jurado a formulação de sua decisão secreta de acordo com as próprias consciências e os ditames da justiça, e quiçá com maior acerto do que se obtém com as decisões monocráticas do juízo singular, que jaz escorado na fria letra da lei, porque é o Tribunal do Júri o soberando assegurador das garantias constitucionais que detém o cidadão acusado.

Como visto, desde os surgimento de seus resqícios históricos entre os Hebreus ou os Gregos, passando pela sua origem histórica na Inglaterra e na França, até os dias atuais, o Tribunal do Júri tem se mostrado como um importante mecanismo de participação popular na administração da justiça.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo buscou analisar a origem histórica do Tribunal do Júri enquanto instrumento de participação democrática na administralção da justiça criminal, dentro de um determinado espaço territorial estatal, num específico sistema jurídico, em que é deferido a uma classe de cidadãos o poder de julgar colegiadamente um semelhante por crimes graves, visando evitar o arbítrio e demais mazelas decorrentes dos julgamentos monocráticos. Como visto, o julgamento criminal por tribunais populares não é mecanismo recente, porque sua origem remota se perde nas areias do tempo.

Verificou-se que a doutrina tradicional afirma as raízes dos julgamentos populares na lei mosaica, entre os Hebreus, e posteriomente na Grécia antiga e em Roma. Constatou-se que a origem mesma do Tribunal do Júri, como hoje conhecemos, remonta ao Jury da Inglaterra surgido com a abolição das Ordálias ou julgamentos de Deus em 1215, pelo IV Concílio de Latrão, e posteriormente na França, por ocasião da revolução francesa, período em que os membros do terceiro estado não confiavam mais nos juízes monocráticos, que se encontravam corrompidos pelo poder e ganancia. Concluíu-se que a estrutura do Tribunal do Júri brasileiro assemelha-se ao sistema francês, que possui número impar de jurados, que decidem monossilabica e secretamente, sem comunicação interna colegiada, acerca do fato apenas (materialidade e autoria), cabendo ao juiz presidente aplicar a lei à decisão dos jurados, estabelecendo a quantidade e natureza da pena, fixando o regime inicial de cumprimento da reprimenda e decidindo acerca da necessidade ou não de decretação de prisão preventiva, ou outra medida cautelar diversa.

A análise foi realizada à luz de vasta obra processualística criminal, além de normas constitucionais e processuais penais, e teve por marco teórico a obra de Norberto Bobbio, segundo o pensamento acerca da caracterização da expressão Democracia, para se concluir pela natureza eminentemente democrática da participação popular nos julgamentos perante o Tribunal do Júri.

Para chegar a compreensão referida, o trabalho utilizou o método bibliográfico, e a análise do texto constitucional, da legislação vigente e de diplomas internacionais de direitos humanos, além de obras doutrinárias.


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Sobre os autores
Rovilson Marques de Carvalho Júnior

Graduado em Administração de Empresas pela FAI - Faculdade de Administração e Informática de Santa Rita do Sapucaí (1996) e em Direito pela FDSM - Faculdade de Direito do Sul de Minas (2001). É pósgraduado em Direito Público pela PUC/MG - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e na mesma área pela ANAMAGES - Associação Nacional dos Magistrados Estaduais. Pósgraduado em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Paulista de Direito - EPD, aprovado com nota máxima em todas as matérias. Cursa Pósgraduação lato sensu em Direito Penal e Processo Penal na PUC/SP. É Advogado Criminalista com especialidade no Tribunal do Júri. Atua na área Civil e Administrativa - Escritório de Advocacia Rovilson Carvalho.Foi membro do grupo de pesquisa em Direito Penal "Razão Crítica e Justiça Penal" da FDSM, coordenado pelo Prof. Pós-Doutor Edson Vieira da Silva Filho.

Hamilton da Cunha Iribure Jr.

Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP Docente do Mestrado e da Graduação da Faculdade de Direito do Sul de Minas Parecerista e consultor jurídico Advogado

Informações sobre o texto

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