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Releitura da fraude contra credores à luz da teoria da ineficácia relativa

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Agenda 25/03/2006 às 00:00

5 A Natureza jurídica da sentença na ação pauliana

A doutrina costuma apresentar diversas classificações com relação às sentenças no processo civil. Dentre as referidas classificações, a mais utilizada é a que classifica tais decisões de açodo com seu conteúdo.

Tradicionalmente, as sentenças podem ser classificadas em: declaratória, constitutiva ou condenatória. Há, ainda, os que adicionam a tal classificação as sentenças mandamental e executiva lato sensu, contudo, essas duas últimas espécies não são adotadas de modo unânime na doutrina, pois há quem entenda que as mesmas são simplesmente sentenças condenatórias. [08]

Em se adotando a teoria da ineficácia relativa, no que se refere à natureza jurídica da sentença que julga procedente o pedido na ação pauliana, a divergência supra não tem relevância prática, haja vista que nessa seara a discussão doutrinária reside em saber se se trata de uma sentença constitutiva ou declaratória.

Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 387) e Alexandre Freitas Câmara entendem tratar-se de uma sentença constitutiva, tendo em vista que só a partir da sentença é que operaria a ineficácia relativa da alienação em fraude pauliana. Aduzem, pois, que tal ineficácia seria "sucessiva", e não "originária":

"O que se busca aqui é saber o seguinte: praticado o ato em fraude contra credores, é ele ab origine incapaz de produzir efeitos (ineficácia originária), ou será o ato capaz de produzir efeitos até que seja proferida sentença pauliana (ineficácia sucessiva)? Sendo correta a primeira resposta, a sentença pauliana será meramente declaratória; correta a segunda, será constitutiva. [...] A pergunta a ser respondida, assim, é a seguinte: pode ser penhorado um bem que tenha sido alienado em fraude pauliana independentemente da propositura da ‘ação pauliana’? A nosso juízo a resposta é negativa. O bem alienado em fraude contra credores sai do patrimônio do devedor e, por conseguinte, fica fora do campo de incidência do art. 591 do CPC." (CÂMARA: 2004, p. 215)

Contudo, data maxima venia, entendemos tratar-se de uma sentença declaratória. Com efeito, o simples fato de a ineficácia relativa do negócio jurídico fraudador depender de uma sentença que a reconheça, não é, por si só, capaz de indicar tratar-se de um provimento de natureza constitutiva.

A sentença que reconhece a fraude pauliana não tem o condão de criar nenhuma nova relação jurídica de direito material, como o fazem as sentenças constitutivas, a novidade introduzida pela mesma é de incidência processual tão-somente, no âmbito da penhorabilidade. "A fraude ocorreu antes do processo e fez, por ela mesma, com que o adquirente tivesse de suportar, a partir de então, a garantia patrimonial pelos débitos que o alienante insolvente deixou a descoberto" (THEODORO JÚNIOR: 2001, p. 240)

É o ordenamento jurídico que impõe a imprescindibilidade do manejo da ação para reconhecimento de certas situações. Contudo, o fato de o processo judicial ser imprescindível, não muda a natureza do provimento judicial, que continua a ser meramente declaratório como, por exemplo, no caso das sentenças que julgam procedente o pedido nas seguintes ações: investigatória de paternidade (sentença declaratória de paternidade), consignação em pagamento (sentença declaratória de que se extinguiu determinada obrigação), usucapião (sentença declaratória de que houve aquisição da propriedade em decorrência da prescrição aquisitiva).

Na fraude pauliana ocorre o mesmo, tendo em vista que o ordenamento jurídico impõe a obrigatoriedade do manejo da ação pauliana, conforme explica Humberto Theodoro Júnior (2001: p. 241-242):

"Esse acertamento somente pode ser feito pela sentença, por imposição da lei, não pra criar ou modificar situação jurídica entre as partes, mas sim e apenas para assentar os fatos e suas conseqüências já operadas no plano do direito material.

Tanto não é a sentença que cria a responsabilidade executiva do terceiro adquirente que este, antes da ação pauliana, pode elidir seus eventuais efeitos, depositando em juízo, à ordem dos credores, o preço da aquisição do bem alienado pelo devedor insolvente (CC, art. 108) [atual art. 160]. Também, voluntariamente, pode o credor extinguir a pauliana já em curso mediante resgate do crédito do autor, independentemente de sentença de reconhecimento da fraude. Em tais situações, os efeitos da fraude, sem dúvida, terão operado, no plano do direito material, sujeitando o terceiro adquirente a suportar a responsabilidade patrimonial pela dívida do alienante, sem o pressuposto do acertamento por via de sentença judicial. Evidencia-se, assim, que não é a sentença que gera sua responsabilidade, mas o fato mesmo da aquisição do bem de alguém que se achava em estado de insolvência."

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Salvo melhor juízo, talvez o motivo para que alguns doutrinadores, não obstante serem adeptos da teoria da ineficácia relativa, defendam a natureza constitutiva da sentença de reconhecimento da fraude pauliana, decorre do intuito de se buscar manter a sistematização do Código Civil.

Pois bem, o fato de o referido Codex ter adotado literalmente a teoria da anulabilidade, implicou no estabelecimento de prazo decadencial para a propositura da ação pauliana (art. 178), o qual seria "preservado" caso de admitisse que a sentença na ação pauliana, mesmo em se adotando a teoria da ineficácia relativa, teria natureza constitutiva.

Contudo, como nos parece mais lógico e razoável que a sentença na referida ação tem natureza meramente declaratória, inevitavelmente o reconhecimento da fraude pauliana não estaria sujeito a nenhuma espécie de prazo, seja prescricional ou decadencial. Devendo ser peremptoriamente desconsiderado o dispositivo que impõe prazo decadencial para o manejo da ação pauliana.

Todavia, apesar da imprescritibilidade da ação pauliana, há de se reconhecer que não haveria interesse processual no seu manejo caso o crédito dos credores já estivesse prescrito. Daí que se pode concluir que o manejo eficaz da ação pauliana depende da existência contra o devedor-alienante de crédito defraudado e não prescrito.


6 CONCLUSÃO

O vigente Código Civil ficou muito tempo em tramitação legislativa, fato este que lhe foi muito prejudicial, haja vista que em diversos temas já entrou em vigor fora de sintonia com a sociedade que pretende regular. Sem desmerecer as várias inovações positivas do referido estatuto civil, em diversos pontos, contudo, o mesmo não foi capaz de reproduzir o desenvolvimento jurídico visualizado no cenário internacional. Como exemplo, podemos citar a conservação do mesmo regramento contido no Código Civil de 1916 no que concerne à fraude contra credores stricto sensu (fraude pauliana).

Promulgado o Código Civil de 2002, ao intérprete compete a tarefa de buscar, dentro das possibilidades, atualizar a sua leitura, com respeito à Constituição Federal, bem como aos paradigmas norteadores do Direito Civil moderno (eticidade, operatividade e socialidade).

No que tange à fraude pauliana, uma interpretação meramente gramatical, pela qual se adotaria a teoria da anulabilidade, não é a que melhor se adequa ao ideal de justiça e de repulsa às práticas fraudulentas, mormente tendo em vista os princípios constitucionais, tais como o da boa-fé (implícito na CF/88), o da função social da propriedade (art. 5º, XXIII e art. 170, III, ambos da CF/88), bem como o da solidariedade social (art. 3º, III, CF/88).

Ademais, todos os princípios constitucionais supra-mencionados promovem a eticidade (v.g. princípio da boa-fé), socialidade (v.g. princípios da boa-fé, da função social da propriedade e da solidariedade social), além da operatividade (conceitos abertos, que devem ser concretizados, prudentemente, pelo intérprete, que os atualiza de acordo com as conjunturas sociais).

Conforme visto, o art. 165 do Código Civil deve ser interpretado de modo a conferir à fraude pauliana o efeito de tornar os negócios jurídicos, fraudulentamente praticados, ineficazes perante os credores que obtiverem êxito no manejo da ação pauliana.

Outrossim, em se adotando a teoria da ineficácia relativa, chega-se à conclusão de que a sentença na ação paulina é meramente declaratória. Deve-se abandonar a tese de que se trataria de uma sentença constitutiva, como pregam alguns, talvez visando preservar a idéia de que a ação pauliana está sujeita ao prazo decadencial de quatro anos do art. 178.

Um jurista que se propõe a dar maior operabilidade ao Código Civil deve, por vezes, desconsiderar dispositivos que contrariem a lógica jurídica, como, por exemplo, o art. 178 que impõe prazo decadencial para o exercício de uma ação de caráter nitidamente declaratório tão-somente.

As fraudes estão, cada vez mais, sendo aperfeiçoadas por aqueles que buscam se esquivar do cumprimento dos deveres a todos impostos pelo ordenamento jurídico. Deve o jurista, igualmente, aperfeiçoar as interpretações das leis vigentes, de modo a operacionalizá-las no sentido de que possam ser aplicadas eficazmente na repressão a tais condutas. Para tanto, mister se faz despir-se de preconceitos e lançar mão de métodos interpretativos que vão além da simples compreensão gramatical, pois o Direito tem de evoluir!


REFERÊNCIAS

CAHALI, Yussef Said. Fraude Contra Credores. 2. ed. São Paulo: RT, 1999.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. v. 1.

______. Lições de Direito Processual Civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. v. 2.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. v. 4.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1999;

______. Curso de Direito Civil Brasileiro.. São Paulo: Saraiva, 2000. v. 1.

FARIAS, Cristiano Chaves de.; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil – Teoria Geral. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

FIUZA, César. Direito Civil: Curso Completo. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v. 1.

JORDÃO, Eduardo Ferreira. Repensando a Teoria do Abuso de Direito. Salvador: JusPODIVM, 2006.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 4. ed. São Paulo: RT, 2005.

NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Anotado e Legislação Extravagante. 3. ed. São Paulo: RT, 2005.

VENOSA, Silvio Salvo. Direito Civil. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. v. 1.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 38. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. v. 1.

______. Curso de Direito Processual Civil. 34. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. 2.

______. Dos Defeitos do Negócio Jurídico no Novo Código Civil: Fraude, Estado de Perigo e Lesão. Disponível em <http://www.preparatorioaufiero.com.br/art/art8.doc>. Acesso em: 12/10/2005. Abril, 2002.

______. Fraude Contra Credores: a Natureza da Sentença Pauliana. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.


NOTAS

01 "A sonegação de bens da herança por parte do herdeiro é um ilícito cujo efeito é a perda do direito que lhe cabe. É o que se depreende do art. 1992 do código civil: ‘O herdeiro que sonegar bens da herança, não os descrevendo no inventário quando estejam sem seu poder, ou, com o seu conhecimento, no de outrem, ou que os omitir na colação, a que os deva levar, ou que deixar de restituí-los, perderá o direito que sobre eles lhe cabia’".

02 "A renúncia à decadência prevista em lei é um ilícito cujo efeito é a nulidade do ato praticado, por força de previsão expressa do art. 209 do código civil: ‘É nula a renúncia à decadência fixada em lei’".

03 "A ingratidão do donatário é um ilícito cujo efeito é a autorização, ao doador, para revogar a doação. É o que se depreende do art. 557 do código civil: ‘Podem ser revogadas por ingratidão as doações: (i) se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele; (ii) se cometeu contra ele ofensa física; (iii) se o injuriou gravemente ou o caluniou; (iv) se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava’".

04 Art. 42. A alienação da coisa ou do direito litigioso, a título particular, por ato entre vivos, não altera a legitimidade das partes.

[...]

§3º A sentença, proferida entre as partes originárias, estende os seus efeitos ao adquirente ou ao cessionário.

05 Divergindo em parte, por não considerar a lesão e o estado de perigo como sendo vícios de consentimento, FIÚZA (2004, p. 227 e 230): "A vontade do lesado embora, sem dúvida prejudicada, não nasce viciada por engano quanto às circunstâncias, nem por violência ou esperteza de terceiro. Não se pode equiparar a lesão aos vícios do consentimento, mesmo porque, o fundamento da invalidade do negócio não é a dissonância entre a vontade real e a vontade declarada. [...] O estado de perigo é bastante semelhante à lesão e à usura. Na verdade, o que diferencia os três institutos é que naquele o perigo é mais pujante, quase sempre imediato."

06 São adeptos da teoria clássica da anulabilidade, dentre outros: Maria Helena Diniz (2000, p. 315), Silvio Rodrigues (2003, p. 238), Silvio Salvo Venosa (2005, p. 489), Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery (2005, p. 251).

07 Adotam a tese da ineficácia relativa, por exemplo: Humberto Theodoro Júnior (2002, p. 01-02), Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 387), Alexandre Freitas Câmara (2004, p. 211), Carlos Roberto Gonçalves (2005, p. 419), Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2006, p. 457), Yussef Said Cahali (1999, p. 385).

08 Considerando a sentença mandamental e a executiva lato sensu como espécies autônomas da sentença condenatória: Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2005, p. 408-409). Contra, advogando a tese de que há somente três espécies de sentenças: Alexandre Freitas Câmara (2003, p. 437).

Sobre o autor
Frederico Garcia Pinheiro

Mestre em Direito Agrário e Especialista em Direito Civil pela UFG. Especialista em Direito Processual pelo Axioma Jurídico. Master of laws em Direito Empresarial pela FGV. Palestrante da Escola Superior de Advocacia da OAB/GO. Ex-Presidente da Comissão de Direito Empresarial a OAB-GO (2013-2015). Associado fundador do Instituto de Direito Societário de Goiás (IDSG). Procurador do Estado de Goiás. Advogado, sócio do Pinheiro & Fortini Escritório de Advocacia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO, Frederico Garcia. Releitura da fraude contra credores à luz da teoria da ineficácia relativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 997, 25 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8162. Acesso em: 5 nov. 2024.

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